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Poemas Completos, de Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

by Lucas Gomes

Neste livro, Fernando
Pessoa, com o heterônimo de Alberto Caeiro, faz uma poesia voltada para a realidade
e as sensações. Caeiro, um homem com uma visão de mundo ingênua e instintiva,
recusa o pensamento e a interpretação do real como doenças que se devem evitar,
e, no entanto, defende uma teoria: o real é o que há.

Poemas Completos
traz um prefácio de Ricardo Reis (outro heterônimo de Fernando Pessoa) que
salienta o seguinte:

“Ignorante da vida e quase ignorante das letras, quase sem convívio nem
cultura, fez Caeiro a sua obra por um progresso imperceptível e profundo, como
aquele que dirige, através das consciências inconscientes dos homens, o
desenvolvimento lógico das civilizações. Foi um progresso de sensações, ou,
antes, de maneiras de as ter, e uma evolução íntima de pensamentos derivados de
tais sensações progressivas. Por uma intuição sobre-humana, como aquelas que
fundam religiões para sempre, porém a que não assenta o título de religiosa, por
isso que como o sol e a chuva, repugna toda a religião e toda a metafísica, este
homem descobriu o mundo sem pensar nele, e criou um conceito do universo que não
contém meras interpretações. Pensei, quando primeiro me foi entregada a empresa
de prefaciar estes livros, em fazer um largo estudo, crítico e excursivo, sobre
a obra de Caeiro e a sua natureza e destino fatal. Tentei com abundância
escrevê-lo. Porém não pude fazer estudo algum que me satisfizesse. Não se pode
comentar, porque se não pode pensar, o que é directo, como o céu e a terra; pode
tão-somente ver-se e sentir-se. Toda obra fala por si, […] quem não entende
não pode entender, e não há pois que explicar-lhe.”

Ainda, no prefácio, Reis afirma que a obra é dedicada, por desejo do próprio
autor, à memória de Cesário Verde.

Os poemas de Alberto
Caeiro compõem-se de três partes:

1. O Guardador
de Rebanhos

I

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes,
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias
Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé de uma janela aberta
Uma cadeira predilecta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural –
Por exemplo, a árvore antiga
Á sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

II

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo comigo
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo…
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender…
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar…

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar…

Comentários: os dois poemas apresentados acentuam a importância dos
sentidos, viga mestra da poesia de Caeiro, e refutam o “pensar”.

V

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso

Que ideia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre Deus e a alma
E sobre a criação do mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

“Constituição íntima das cousas”…
“Sentido íntimo do universo”…
tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, é como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

Comentários: a definição de Deus nesse poema aproxima-se do panteísmo,
doutrina filosófica segundo a qual só o mundo é real e Deus é a soma de todas as
coisas e nelas se manifesta. Assim, as flores, as árvores, os montes, o sol e o
luar são manifestações da própria divindade. Pode-se, assim, falar de uma
verdadeira “religião da Natureza”.

IX

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

X

“Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?”

“Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?”

“Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram.”

“Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.”

XX

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, Mas o Tejo não é
mais belo que o rio que corre pela minha aldeia Porque o Tejo não é o rio que
corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

Comentários: no poema XX, a oposição entre o mundo imaginado (o Tejo) e o
mundo real (o rio que corre pela minha aldeia), entre o imaginário e o real,
constrói-se através de uma linguagem poética próxima da prosa. A construção
anafórica (reiteração de O Tejo…) equilibra-se pela sucessão de epístrofes
(repetições de fim de verso: “pela minha aldeia”, nos três primeiros versos, e
“o rio da minha aldeia”). Apesar da aparente simplicidade, há uma arquitetura
equilibrada e complexa nas relações ocultas sobre as quais se sustenta a
oposição mundo real e mundo imaginado.

XXIV

O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seriam iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

2. O Pastor
Amoroso

V

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo. Mesmo a ausência dela
é uma coisa que está comigo. E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas. Mas se a vejo tremo,
não sei o que é feito do que sinto na ausência dela. Todo eu sou qualquer força
que me abandona. Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela
no meio.

VI

Passei toda a noite, sem saber dormir, vendo sem espaço a figura dela E
vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela. Faço pensamentos
com a recordação do que ela é quando me fala, E em cada pensamento ela varia de
acordo com a sua semelhança. Amar é pensar. E eu quase que me esqueço de sentir
só de pensar nela. Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão
nela. Tenho uma grande distracção animada. Quando desejo encontrá-la, Quase que
prefiro não a encontrar, Para não ter que a deixar depois. E prefiro pensar
dela, porque dela como é tenho qualquer medo. Não sei bem o que quero, nem quero
saber o que quero. Quero só pensar ela. Não peço nada a ninguém, nem a ela,
senão pensar.

Comentários: embora pareça perturbado diante do amor, ele não se esquece
do sentir, “quase” se esquece.

3. Poemas
Inconjuntos

a) Se eu morrer
novo,
Sem poder publicar livro nenhum,
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.

Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.

Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi coisa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.

Não desejei senão estar ao sol ou à chuva –
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo
(E nunca a outra coisa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.

Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão –
Porque não tinha que ser.

Consolei-me voltando ao sol e à chuva,
E sentando-me outra vez à porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados Como para os que o
não são. Sentir é estar distraído.

b) Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, Não há nada
mais simples. Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte. Entre
uma e outra cousa todos os dias são meus.

Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma. Nunca tive um desejo que não
pudesse realizar, porque nunca ceguei. Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um
acompanhamento de ver. Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes
umas das outras; Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.

c) Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.
Ambos existem, cada um como é.

d) Todas as opiniões que há sobre a Natureza
Nunca fizeram crescer uma erva ou nascer uma flor.
Toda a sabedoria a respeito das cousas
Nunca foi cousa em que pudesse pegar, como nas cousas.
Se a ciência quer ser verdadeira,
Que ciência mais verdadeira que a das cousas sem ciência?
Fecho os olhos e a terra dura sobre que me deito
Tem uma realidade tão real que até as minhas costas a sentem. Não preciso de
raciocínio onde tenho espáduas.

(ditado pelo poeta no dia de sua morte)

É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus.
Fiz sinal de gostar de o ver ainda, mais nada.

Comentários:
Alberto Caeiro reforça a postura do poeta dos sentidos, sem filosofias, sem
metafísica, que tem consciência das coisas do jeito como elas são, sem rodeios
ou artificialismos. E embora pareça perturbado diante do amor, ele não se
esquece do sentir, “quase” se esquece.

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