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Poemas de Deus e do Diabo, de José Régio

by Lucas Gomes

Foi em
seu primeiro volume de poesia, Poemas de Deus e do Diabo, que José Maria
dos Reis Pereira usou pela primeira vez o pseudônimo José
Régio
.

Poemas de Deus e do Diabo não é um livro reconfortante. José
Régio instaura logo nessa obra um
tipo de linguagem poética que se desenvolve de forma luxuriante, nitidamente
contrária a uma retórica epigramática e enxuta. Régio é, no entanto, um escritor
obsediado por um núcleo de questões relativamente restrito, cujas diretrizes
essenciais são definidas no livro inaugural. O trabalho de escrita é, assim,
elaborado de forma expansiva, no sentido de uma profundidade que permite desmontar
as falácias de uma visão do mundo alicerçada em modelos que restringem e falsificam
a complexidade do real. A poesia de José Régio é, nos seus melhores momentos,
um documento humano e, por isso mesmo, o seu discurso afasta-se da simplificação
superficialmente otimista e eufórica.

Na poesia de José Régio há, com efeito, a construção de uma
linha de sentido que põe em relevo a face menos reconfortante da condição
humana. Logo no texto inicial de Poemas de Deus e do Diabo as figuras
assimiláveis a Cristo e ao Demônio são vistas segundo uma perspectiva
deformadora que cria uma imaginística fantasmagórica e aterradora. A primeira
estrofe do poema começa com um ritmo narrativo, parecendo indicar a continuação
de um discurso que já vinha sendo mentalmente elaborado e instaurando um
processo de narrativização de que as duas figuras fazem parte como personagens.
O núcleo de história que subjaz ao poema é ainda completado pela transformação
do “eu lírico” em personagem, que faz conjunto com as duas figuras. E as três
personagens são tocadas pela mesma atmosfera de estranhamento que faz oscilar as
coordenadas do mundo. A contemplação do divino corpo, sangrando “devastado”,
provoca no “eu” sentimentos confusos e desorientados.

No que diz respeito à figura do Diabo, é usado o mesmo
processo de intensificação de elementos expressivos que agigantam
desmesuradamente pormenores que seriam anódinos num contexto menos sombrio.

Poema escolhido:

Cântico Negro

“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
– Sei que não vou por aí!

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