A imagem de Cora Coralina, como escritora, está associada, sobretudo, aos seus livros de poesia,
notadamente a Poemas dos Becos de Goiás e Estórias mais, primeiro livro da autora, publicado em
1965, quando Cora tinha 76 anos.
Nesses poemas, a autora quebra a fusão lírica entre o eu e o mundo para contar
estórias que viveu, observou, aprendeu de ouvido, estórias que ela comunica não
com a impessoalidade do gênero narrativo, mas impregnadas com a sua substância
mais íntima, vez que as faz antes “transitar pelo coração vidente”.
No livro Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, tempo, geografia e
memória compõem o tecido textual, numa delicada, amorosa e singela entrega poética.
O eu-poético funde-se à sua terra, alimentando-se de suas raízes e das suas histórias.
Os versos, marcados pelo cotidiano, permitem que as emoções aflorem a partir de
objetos e de cenas familiares. Os muros da cidade são prisões nas quais mal se
contém um eu-lírico angustiado por libertar-se.
Existe na obra a presença de confessionalismo e memorialismo; há o recurso
anafórico e uma relação estreita entre prosa e poesia. Nota-se também uma insistência
em descrever a ação do tempo sobre os rios, sobrados e pessoas.
A estreita relação entre a prosa e a poesia, a própria autora
nos diz:
Versos… não
poesia…
Um modo diferente de contar velhas histórias.
Calmamente, gestos e coisas simples vão sendo transformados em poesia.
Na primeira página do livro, a poeta revela as motivações da sua escrita ao leitor:
AO LEITOR
Alguém deve rever, escrever e assinar os autos do Passado
antes que o Tempo passe tudo a raso.
É o que procuro fazer, para a geração nova, sempre
atenta e enlevada nas estórias, lendas, tradições, sociologia
e folclore de nossa terra.
Para a gente moça, pois, escrevi este livro de estórias.
Sei que serei lida e entendida.
Na página seguinte, faz uma “ressalva”:
RESSALVA
Este livro foi escrito
por uma mulher
que no tarde da Vida
recria e poetiza sua própria
Vida.
Este livro
foi escrito por uma mulher
que fez a escalada da
Montanha da Vida
removendo pedras
e plantando flores.
Este livro:
Versos
Não
Poesia
Não
um modo diferente de contar velhas estórias.
A memória é o fio que Cora Coralina utiliza para esboçar o plano do livro: a poeta acredita na memória
capaz de recuperar o passado coletivo, mas reconhece que essa tarefa é desempenhada a partir de uma
perspectiva particular: a memória da mulher, da mulher velha, da mulher que escreve para “recriar e
poetizar sua própria vida”.
“Presidiários”, também de veio rememorativo, de feição doméstica, é a primeira parte de Poemas dos becos
de Goiás e estórias mais.
Já a segunda parte é dedicada ao aspecto social que ela observava e desejava retratar,
através de poemas para lavadeiras, lavradores, mulheres da vida, crianças abandonadas
e presidiários, a quem deseja levar palavras de amor e compreensão. Cora Coralina
canta a beleza das lavadeiras e trabalhadoras comuns, como em “Estas mãos”, poema
a seguir, em que a poeta procede à estetização das mãos de modo que essas, profundamente
identificadas com a matéria do trabalho, vão assumindo os atributos do ofício:
Olha para estas mãos
de mulher roceira,
esforçadas mãos cavouqueiras.
Pesadas, de falanges curtas,
sem trato e sem carinho.
Ossudas e grosseiras.
Mãos que jamais calçaram luvas.
Nunca para elas o brilho dos anéis.
Minha pequenina aliança.
Um dia o chamado heróico emocionante:
Dei Ouro para o Bem de São Paulo.
Mãos que varreram e cozinharam.
Lavaram e estenderam
roupas nos varais.
Pouparam e remendaram.
Mãos domésticas e remendonas.
Íntimas da economia,
do arroz e do feijão
da sua casa.
Do tacho de cobre.
Da panela de barro.
Da acha de lenha.
Da cinza da fornalha.
Que encestavam o velho barreleiro
e faziam sabão.
Minhas mãos doceiras…
Jamais ociosas.
Fecundas, imensas e ocupadas.
Mãos laboriosas.
Abertas sempre para dar, ajudar,
unir e abençoar.
Mãos de semeador afeitas
à sementeira do trabalho.
Minhas mãos raízes
procurando a terra.
Semeando sempre.
Jamais para elas
os júbilos da colheita.
Mãos tenazes e obtusas,
feridas na remoção de pedras e tropeços,
quebrando as arestas da vida.
Mãos alavancas
na escava de construções inconclusas.
Mãos pequenas e curtas de mulher
que nunca encontrou nada na vida.
Caminheira de uma longa estrada.
Sempre a caminhar.
Sozinha a procurar,
o ângulo perdido, a pedra rejeitada.
ESTÓRIAS DO APARELHO AZUL
Minha bisavó – que Deus a tenha em bom lugar
inspirada no passado sempre tinha o que contar.
Velhas tradições. Casos de assombração.
Costumes antigos. Usanças de outros tempos Cenas da
escravidão.
Cronologia superada
onde havia banguês.
Mucamas e cadeirinhas.
Rodas e teares. Ouro em profusão,
posto a secar em couro de boi.
Crioulinho vigiando de vara na mão
pra galinha não ciscar.
Romanceiro. Estórias avoengas…
Por sinal que uma delas embalou minha infância.
Era a estória de um aparelho de jantar?