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Poemas rupestres, de Manoel de Barros

by Lucas Gomes

Nesta obra, Poemas rupestres, Manoel de Barros recorre
às lembranças de Mato Grosso, e de seus primeiros passos no Pantanal, para dar
novos significados às palavras. O livro oferece uma oportunidade de apresentar
aos leitores a vida de um dos mais importantes poetas contemporâneos. Um autor
que surpreende, ao mesmo tempo em que intriga e comove ao leitor, com o despojamento
de seus versos, tirados de chão, árvore, bicho, água e pedra.

Poemas Rupestres, como inscritos nas paredes das cavernas de todos nós,
traz a voz sábia da infância, de uma falsa inocência estonteante cuja leitura
escorre como riacho tantas vezes visitado por esta poética que nos torna meninos
de novo que de tão a custo a gente se segura pra não sair pra rua pra fazer travessuras
com o olhar de passarinho. Mas de repente, num verso, vem aquele travo amargor
com gosto de vida real e o encantamento resvala pra consciência “vira mundo” e
a poesia se transforma no road movie do poeta sábio que com sua experiência revela
o que há pra ver por trás das palavras simples, das imagens claras.

O que essa poética tem é a capacidade de ver e traduzir um essencial tão ao avesso
do colosso artificial da atual era do simulacro, fulcro de uma civilização medida
por tonelada consumida. Ao se jeito de audição, de estória contada, se faz tato
para a alma, já que “o tato é mais que o ver / é mais que o ouvir / é mais
que o cheirar”
e o êxtase táctil, mas também auditivo e visual , que o menino
Manoel de Barros nos transmite com as suas poesias rupestres, que ficam pintadas
em nossas retinas e na nossa memória muito depois de termos lido este livro.

Em Poemas rupestres, ele retorna aos elementos que marcam seu trabalho
desde a primeira publicação, em 1937: a paisagem do Pantanal, a infância, a
relação misteriosa que existe entre as coisas e os nomes que damos a elas.

Análise dos poemas

– Escritos na terra. A terra é o elemento primordial.

– Os mais elementares traços do homem querendo eternizar o tempo, o momento.

– A infância do homem, o seu retorno eterno na aprendizagem.

– Escritos primitivos jogados na terra como elemento primordial e convivente
com o homem.

– Primeira relação reflexa mais elaborada. Sintomas da saída do nível instintivo
para o reflexivo.

– Capacidade de retratar o elementar embutido no sentido valendo-se da força
da terra e da capacidade primitiva.

– Fuga do controle do sistema límbico para a grande passagem para o neo-córtex
cerebral.

– As atividades de sobrevivência cavalgam para a memória para sobreviver no
tempo.

– As técnicas elementares do homem primitivo como expressão da força criadora.

– As margens dos percursos criativos, imaginativos denotam o seu percurso criador
ou as técnicas à disposição.

– Rupestres indicam as paredes, as encostas, os painéis que a natureza oferece
sem concorrência da elaboração humana. A oferta da natureza como possibilidade
para o mundo imaginativo do homem das hordas.

– Rupestres, de ambíguas faces: dadas, impostas pela convivência e duradouras
por sua natureza constitutiva. Com muita força porque imponente e difícil. Caráter
de difícil acesso, de fixação da relação, mas promissora quanto à duração.

– Rupestres, pois não denotam que duas vertentes de influência: a natureza áspera
e gritante; a “primevidade”, vale dizer, sem a mão ou presença de qualquer outro
que não seja aquele que conseguiu atingir aquele lugar e soube ter acesso de
convivência tão intenso que a natureza aceitou a sua firma, o seu sinete, mesmo
que impessoal. Lá está e estará enquanto outro artista não transfigurar a natureza
primitiva.

– Trata-se de um percurso longo às reações e percepções ancestrais para surpreender
o segredo do lúdico, do primordial, do estado vital antes do primeiro reflexo.

– Assim cabe mesmo registrar que o poeta percorreu e atingiu um processo, uma
época, um estágio que se mostrou inaugural, por sua origem e percurso.

“Rupestres” caracterizam um sonho do estado primordial quando nenhum gesto feito
tinha sido fixado na memória, nos sentidos ou na reflexão do homem. Então o
poeta convive com os albores do dizer humano tornado arte. Visão primordial
oferecida em poemas que surgiram dos berços primitivos, da rusticidade intuitiva
com que o poeta tratou as palavras e a vida.

“Rupestres” porque serão lembrados como revelações da ludicidade do poeta em
estado de homem primitivo em completa sintonia e apreensão pela força da natureza,
em estado de grande ludicidade também.

Primera Parte

CANÇÃO DE VER

Canção aqui é igual a um poema a ser proclamado ou cantado. Assim a canção “canta”
o seu conteúdo, proclama a voz do ser que se expressa e se desdobra em cada
verso; expressa também, a canção, sua harmonia nos sons das palavras e nas tonalidades
suscitadas.

Canção, harmonia de um conjunto que se revela em tonalidades sonoras até e em
cenários. A canção se refere aos sons como tais e aos tons – tonalidades – que
compõem as frases da harmonia temática. A canção concretiza tonalidades das
emoções enquanto se refere ao coração, às paisagens descobertas se refere à
imaginação. Por fim, na combinação de vozes das palavras se se refere aos ouvidos
como portadores do receptáculo do coração.

O autor/poeta combina canção com outro sentido muito claro e definido: o olhar.
Compõe ele, canções para se ver. Admite e recria o sentido compondo-lhe canções
que o educam e o tornam novo, capaz de harmonias pelas palavras vistas em si ou
por imagens que os sons, os processos e as imagens constróem como cenários. Esses
cenários para o poeta cantam canções para o olhar; oferece-se ao leitor como caminho
e harmonia, como novidade e percurso que incluiu o leitor pelo olhar fantástico
que a imaginação lhe oferece, integrando-o como um todo que participa e é percorrido
pelo poema a partir do olhar.

O olhar passa a ser a porta que recebe o mundo inaugurado pelo poeta rupestre.
A ludicidade envolve o leitor que se deixar levar pelo percurso, já se verá outro,
o poema o transformou.

O olhar envolveu-o todo em estado de revelação.

1.

Por viver muitos anos dentro do mato
moda ave
O menino pegou um olhar de pássaro —
Contraiu visão fontana.
Por forma que ele enxergava as coisas
por igual
como os pássaros enxergam.
As coisas todas inominadas.
Água não era ainda a palavra água.
Pedra não era ainda a palavra pedra.
E tal.
As palavras eram livres de gramáticas e
podiam ficar em qualquer posição.
Por forma que o menino podia inaugurar.
Podia dar às pedras costumes de flor.

O menino e os pássaros vivem em igualdade de natureza por ter vivido muitos
anos dentro do mato. Dessa nova modalidade de se viver, resultou uma maneira
de ver – “contraiu visão fontana”.

O que é uma “visão fontana?” “Por forma que ele enxergava as coisas por igual
/ como os pássaros enxergam.”
A primeira resposta é que a visão de um pássaro
é uma visão Fontana, isto é, de uma variabilidade muito grande quanto ao ponto
de partida e de um foco especial que os pássaros usam para seus vôos ou para sua
sobrevivência.

As coisas e os pássaros são inominados. Os elementos da natureza antes de serem
nomeados pelo homem – virgens da palavra / marca / identificação dada pelo homem.
Assim antes ‘água’ não era água / ‘pedra’ não era pedra / ‘e tal’ = tudo era
sem nome.

Ao lado dos elementos / coisas da natureza, as palavras estavam livres e soltas
em relação às regras gramaticais e significados fixos. Palavras eram coisas /
elementos inominados, Palavras sem designação.

O menino de posse do olhar dos pássaros, vendo tudo sem nome e sem nexos, tornava-se
um Menino / Poeta, podia inaugurar. Segundo o autor, o poeta tem que se voltar
ao estado lúdico (infante) para se capacitar do mundo das coisas inominadas
e então, após pertencer ao mundo da natureza em estado puro ou virgem em relação
ao homem – de posse dessas condições ele torna-se poeta e inaugura.

Dessa forma o autor expõe o que ele entende ser um poeta e o que é fazer poemas.
Inaugurar é sair da lógica e do sentido fixado, assim pedra = flor ou canto
= sol.

O caminho para a reinauguração é introduzir-se na palavra em estado de coisa:
“abrir a palavra abelha e entrar dentro dela. Esse percurso para o poeta representa
repristinar a “infância da língua”.

O poeta inaugura quando se volta par o estado coisal, para a linguagem livre
e virgem das coisas e das palavras. Para isso é necessário voltar ao estágio
lúdico da infância. Da mesma forma, propõe o poeta, é necessário então voltar-se
para a Infância da língua. Inaugura enquanto infante.

Poesia é a inauguração da linguagem. No poema o autor propõe o seguinte processo
para se obter um poema:

a – voltar à natureza virgem coisal,
b – voltar à infância, ao estado lúdico,
c – descobrir a infância da língua,
d – saber que a infância da língua proclama que se deve ser livre das regras
da gramática,
e – atinge-se a infância da palavra quando se deixar entrar dentro dela – ‘abrir
a palavra abelha e entrar dentro dela’.

Para o poeta é necessário:

1 – atingir o mundo da natureza sem especificação para poder imaginar,
2 – considerar que nesse estágio as coisas são inanimadas,
3 – e que as palavras ainda não estão ligadas entre si, brincam soltas.

Portanto:
“Poesia é a inauguração do universo das palavras. Para isso o poeta tem que
adquirir uma visão fontana!”

2.

A de muito que na Corruptela onde a gente
vivia
Não passava ninguém
Nem mascate muleiro
Nem anta batizada
Nem cachorro de bugre.
O dia demorava de uma lesma.
Até uma lacraia ondeante atravessava o dia
por primeiro do que o sol.
E essa lacraia ainda fazia uma estação de
recreio no circo das crianças
a fim de pular corda.
Lembrava a tartaruga de Creonte
que quando chegava na outra margem do rio
as águas já tinham até criado cabelo.
Por isso a gente pensava sempre que o dia
de hoje ainda era ontem.
A gente se acostumou de enxergar antigamentes.

Poema existencial à moda de Carlos Drummond em que se descreve o tempo parado
e a vida preguiçosa a ponto de ‘as águas criarem cabelo’. Nesse lugar as coisas
se repetem na mesmice de sempre. Tudo é nem e tudo é parado: ‘o dia demorava
de uma lesma’.

Neste poema, a pasmaceira ou o tempo são medidos pela unidade do ser das coisas
demoradas e insignificantes, assim o tempo é enorme comparado com a movimentação
da lesma ou de uma lacraia. Exagerando a velocidade do dia, o poeta afirma:
‘até a lacraia é mais veloz que o sol. Dessa forma ele consegue obter uma densidade
forte da morosidade do tempo.

Apesar da morosidade, o lúdico aparece em comparações envolvendo coisas e crianças,
capazes de reinventar a vida.

Outras dicotomias na afirmação do poeta prolongam a percepção da morosidade:
‘a tartaruga de Creonte… as águas teriam criado cabelo. Pensava que o hoje
era ontem… antigamentes’; são expressões que conseguem conferir densidade
e muita morosidade ao tempo relacionado à vida das pessoas. Tempo relativo à
morosidade na qual se vive ou se constroem as relações expressivas da vida.

Nessa perspectiva, a do poema, o tempo se volta para o mais fundo do passado,
para a vida em um lugar sempre parado – existencialmente parado – e o momento
somente é portador de uma demora sem fim do passado.

3.

Por forma que o dia era parado de poste.
Os homens passavam as horas sentados na
porta da Venda
de Seo Mané Quinhentos Réis
que tinha esse nome porque todas as coisas
que vendia
custavam o seu preço e mais quinhentos réis.
Seria qualquer coisa como a Caixa Dois dos
prefeitos.
O mato era atrás da Venda e servia também
para a gente desocupar.
Os cachorros não precisavam do mato para
desocupar
Nem as emas solteiras que despejavam correndo.
No arruado havia nove ranchos.
Araras cruzavam por cima dos ranchos
conversando em ararês.
Ninguém de nós sabia conversar em ararês.
Os maridos que não ficavam de prosa na porta
da Venda
Iam plantar mandioca
Ou fazer filhos nas patroas.
A vida era bem largada.
Todo mundo se ocupava da tarefa de ver o dia
atravessar.
Pois afinal as coisas não eram iguais às cousas?
Por tudo isso, na Corruptela parecia nada
acontecer.

Neste poema está presente uma tentativa do poeta de, perante uma vida veloz
e apressada dos dias de hoje, trazer a vivência de um lugar onde a velocidade
era medida pela coisas que perpetuavam a mesmice. A importância ou função de
relevância das coisas/acontecimentos é referenciada a alguns acontecimentos
que mostram a movimentação da vida neste lugar.

Assim as particularidades indicam as expressões para a vida e estas são medidas
ou percebidas por estas particulares.

Dessa forma:

1 – o lugar de concentração da vida acontece ao redor da venda do Seo Mané Quinhentos
Réis;
2 – os homens sentados na porta da venda sem fazer nada dão a dimensão do tempo
e do paradão da vida ali;
3 – o mato atrás da venda se torna referência para as necessidades dos homens
e dos animais, menos para os cachorros e para as emas;
4 – o povoado era de nove ranchos;
5 – o barulho das araras indica e prolonga a quietude;
6 – as atividades dos trabalhadores concorrem para sublinhar a falta de novidade
ou a mesmice da vida ali: plantar mandioca ou fazer filhos.

O poema quer mostrar a vida em um tempo espichado e parado em uma vila do interior
–‘A vida era bem largada!’

Existem palavras com significados próprios, como ‘ocupar ou desocupar’. E uma
tarefa muito difícil era ver o dia atravessar, pois tudo / nada acontecia.

4.

Por forma que a nossa tarefa principal
era a de aumentar
o que não acontecia.
(Nós era um rebanho de guris.)
A gente era bem-dotado para aquele serviço
de aumentar o que não acontecia.
A gente operava a domicílio e pra fora.
E aquele colega que tinha ganho um olhar
de pássaro
Era o campeão de aumentar os desacontecimentos.
Uma tarde ele falou pra nós que enxergara um
lagarto espichado na areia
a beber um copo de sol.
Apareceu um homem que era adepto da razão
e disse:
Lagarto não bebe sol no copo!
Isso é uma estultícia.
Ele falou de sério.
Ficamos instruídos.

Neste poema que segue expondo a temática dos anteriores, o poeta tenta mostrar
o olhar sobre o tempo ou ainda como o tempo é vivido ou percebido pelas pessoas.

A afirmação do autor – ‘a principal tarefa era aumentar o que não acontecia’
– torna-se, de fato, sua tarefa principal enquanto, neste trabalho, polariza
as interpretações: olhar o tempo sob a perspectiva das coisas e olhá-lo racionalmente.

Dessa forma:
1 – Seleciona quem tem a aptidão de aumentar o que não acontecia. Os guris e
um colega que tinha olhar de pássaro eram os melhores em aumentar o que não
acontecia. Atrás desta postura, todos os versos indicam uma vida desejada como
pura expressão do lúdico, do imprevisível ou ainda uma vida independente de
qualquer lógica ou seqüência lógica como são normalmente os acontecimentos.
2 – O colega que tinha ganho um olhar de pássaro mostrou o modo ideal de aumentar
o que não acontecia: “um lagarto espichado na areia a beber um copo de sol.”
Assim o mundo reinventado a partir do olhar dos pássaros era uma grandeza incomum.
3 – O homem adepto da razão com sua insistência sobre a lógica de fácil demonstração
racional acabou com o encantamento da vida e eles ganharam a chancela negada
pelo poeta: ‘ficamos instruídos!’ Esse rótulo marca a força do racional sobre
um mundo poético se o sujeito, o poeta ou outra pessoa somente movida pela ludicidade
de repente perde tudo, pois instrução aí é deixar a vida ser organizada em termos
de conhecimentos pela razão. Vale somente um conhecimento que se proclama racional.
Ao passo que o poeta mostra outra maneira de entender e conhecer a vida e a
realidade, poeticamente. Tudo deve ser reinventado a partir de outro olhar sobre
o mundo, no caso, pelo olhar de um pássaro.
3 – Assim o poema é de profunda ironia entre a lógica da razão e a linguagem
ou percepção poética da vida – a lógica inaugura um mundo oposto ou de valores
opostos ao da instrução racional; vale para o poeta ser desinstruído racionalmente
e sábio ‘no que não acontecia’.
4 – O mundo inaugurado pelo poeta é a percepção do des(acontecer), aquilo que
não é susceptível de entendimento racionalmente; todo esse conhecimento provém
da imaginação, da fantasia e da sensibilidade. Bem como aponta outro caminho
de conhecimento, a incorporação sensual e lúdica.
5 – Dessa forma, instruídos racionalmente é estar aprisionado pela lógica e
pelas seqüências em tudo na vida. Ao passo que instruídos pelo des(acontecer)
indica que a pessoa goza de pura liberdade do inaugurar, do perceber e do sentir.
Liberdade para criar outras relações que encantam e dão prazer pelo sensorial
e pelo imaginário.

5.

Com aquela sua maneira de sol entrar em casa
E com o seu olhar furado de nascentes
O menino podia ver até a cor das vogais –
Como o poeta Rimbaud viu.
Contou que viu a tarde latejas de andorinhas.
E viu a garça pousada na solidão de uma pedra.
E viu outro lagarto que lambia o lado azul do
silêncio.
Depois o menino achou na beira do rio uma pedra
canora.
Ele gostava de atrelar palavras de rebanhos
diferentes
Só para causar distúrbios no idioma.
Pedra canora causa!
E um passarinho que sonhava de ser ele também
causava.
Mas ele mesmo, o menino
Se ignorava como as pedras se ignoram.

Neste poema, através da criação poética, o autor continua sua linha de teorização
sobre a poesia e vai exemplificando em cada verso o conceito de teoria poética.
Aprofunda sua teoria da arte poética pelo exercício do fazer e acontecer poético.

Em cada verso se manifestam teoria e prática poéticas. O poeta, como o menino
do poema, instaura um mundo poético, seus elementos e percepções novas de um
mundo ao revés, por meio da reversibilidade dos sentidos. Os sentidos em estado
de reinaugurações (várias e múltiplas) permitem a expressão e o acesso aos horizontes
novos continuamente inaugurados.

Em especial o olhar, assumido referencialmente como ponto de partida, assume a
capacidade de todos os sentidos e dá suporte para a lógica poética das inaugurações.
O novo sentido aparece a cada momento, em cada afirmação poética que o olhar,
sentido ampliado, lhe oferece inúmeras possibilidades. Os atos inaugurais congregam
um alto nível de exuberância vital, de expressividade do que já tinha sido dado,
concedido, para a novidade da próxima expressão, da próxima inauguração. Ao percorrer
o encadeamento lúdico das inaugurações, ou os versos portadores das novidades,
o conjunto se manifesta como um roteiro de alegres surpresas, de percursos apelativos
e atraentes concretizando o jogo das novidades que se oferecem com espontaneidade
e graça, com leveza e forte atração, de tal forma que ao final do percurso o leitor
se vê aberto, outro e criativo também.

A lógica do poema produz outros atos criativos e o primeiro é a auto-percepção
modificada do próprio leitor que se deixou inaugurar pelo lúdico caminho inaugural
do poema.

A inauguração central – “Olhos furados de nascentes” – mostra que o sentido
do olhar em seu estado de amplitude se recria e torna-se fonte de tantas percepções:
‘furado de nascentes!’ Normalmente, na lógica racional, furado é para dentro,
para se ver o de dentro; aqui o olhar se estende pelos jorros criativos que
furam os olhos da lógica e oferecem outras percepções. Além disso, na mitologia,
Édipo Rei fura os próprios olhos e descobre outros sentidos, outra visão da
realidade – vê mais que a aparência. Então o poeta fura os olhos por jorros
de nascentes que oferecem outras visões, outras dimensões do real. Aqui a metáfora
sugere outros sentidos além da lógica racional. Com os olhos furados – ver em
profundidade – de nascentes – para criar, não só constatar ou perceber – o poeta
supera o mito grego que somente propôs compreensão e novas visões do real. Aqui
o poeta jorra em nascentes criativas, em visões capazes de inaugurar os dizeres
não ditos nem sugeridos que gritam por nascentes. O olhar do poeta se auto-define
como olhar de diversas vertentes criativas para além do que já se imaginou.
Daí sua arte ser original.

O poema propõe sua teoria poética e a concretiza:

– O poeta / menino inaugura a cor das vogais. Viu a tarde latejar de andorinhas
(pulsar de vida) – Viu também a solidão da garça.
– Viu o lagarto que lambia o lado azul do silêncio (viu a cor das vogais).
– Achou na beira do rio uma pedra canora (viu, o olhar se ofereceu aos ouvidos).

– Atrelava palavras de rebanhos diferentes para ofender a lógica do idioma (contra
a gramática racionalizada).
– Brinca com a lógica racional: ‘pedra canora causa!’ Causa o quê? Som? Barulho?
Tropeço? Alicerce? Afinal é uma chance para o leitor criar também.
– O passarinho que se oferecia ao menino sonhava ( O menino já contaminara o
pássaro que se tornara criador) – Causa. Tornara-se capaz de tudo!
– E o menino incorpora-se ao mundo excluindo-se do domínio do racional: ‘ignorava-se
como uma pedra se ignora!’

Essa última metáfora é a expressão máxima do poeta que assume o ato criador,
nele aconteceu a entrega total. Não mais se vê, somente se ignora para perder
o uso da razão lógico-reflexiva, pois seu olhar dinamizado pelo liberdade e
pela forte capacidade de imaginar suplantou a repetição – somente se vê em estado
de novidade. É o mesmo sempre se reinaugurando. A palavra pedra pode assim se
desprender do que lhe atribuíram ou lhe fixaram como significado para poder
ser ela em um estado de outros significados.

O poeta/menino está no máximo de sua capacidade criativa, perde-se para ser
sempre o outro, a reinauguração constante de si mesmo. O percurso poético poderá
ser reinventado porque ele já perdeu a memória da fixação do sentido, poderá
criar continuamente, pois terá percepções de si e do mundo nunca repetidas,
pois sua plataforma de olhar e sua plataforma de percepção serão sempre novas.

Esse é o ápice do poeta, não repetir, estar em estado de novidade, de percepção
criativa constante, de si e do mundo. Arrebatado pelo dinamismo criador o poeta
só é, só se percebe na novidade, no ato criador.

Não poderia haver poema que melhor exemplificasse o que é poética e poema, além
de mostrar como é um processo criador indicando o efeito em quem o assume: o
poema inaugura o mundo, as coisas, as pessoas e o próprio poeta!

6.

Desde sempre parece que ele fora preposto a pássaro.
Mas não tinha preparatórios de uma árvore
Pra merecer no seu corpo ternuras de gorjeios.
Ninguém de nós, na verdade, tinha força de fonte.
Ninguém era início de nada.
A gente pintava nas pedras a voz.
E o que dava santidade às nossas palavras era
a canção do ver!
Trabalho nobre aliás mas sem explicação
Tal como costurar sem agulha e sem pano.
Na verdade na verdade
Os passarinhos que botavam primavera nas palavras.

Continua a proposta, concretizada neste poema, da construção poética pela auto-entrega
do poeta aos objetos, às coisas, às palavras, emprestando o seu ser ao ser das
coisas para que elas possam expressar as suas vozes. Torna-se uma batalha para
o poeta que caminha e se expões na abrangência do caminho ou percurso proposto:
o olhar.

Entregue, completamente, ao aprendizado da linguagem das coisas e dos pássaros,
anela “merecer em seu corpo ternuras de gorjeios”, porém não passara pela instância
de ser árvore. Vale dizer, para adquirir no corpo as ternuras dos gorjeios,
era necessário ter adquirido a habilidade de se entregar completamente, a ponto
de ser “árvore”. Uma dimensão inusitada e sem linguagem lógica para dizer que
“ser árvore” é perder-se, entregar-se ao processo para ser fonte criadora e
inaugural. Dessa forma o poema teoriza o percurso da invenções, das inaugurações
poéticas. Não basta ter o desejo sem se desprender, sem se libertar da própria
voz para ser apropriado pelas vozes e estados das coisas, e no caso, de ser
‘árvore’.

Neste poema acontece a confissão do empobrecimento da criação poética: “Ninguém
tinha força de fonte, Ninguém era início de nada!”
– Uma vez constatado o estado
de indigência do fluxo criador ou inaugural, o poeta parte para outra dimensão
do processo poético assumido.

“O que dava santidade às nossas palavras era a canção do ver!”

O tema da santidade abre um horizonte amplo: “Só Deus é santo!” Existem pessoas
santas por aproximação ou por imitação ou por semelhança, quando assumem em
sua limitação uma parte ou participa do fluxo criador (Santidade) de Deus. Santos
criam, inventam, inauguram estágios de entrega e amor; criam por generosidade
horizontes de integridade interior e beleza, testemunham a entrega do amor criativo.
Assim são os santos e Deus sempre inaugura tudo. Santidade é a novidade da criação,
do elo participativo do poder criador de Deus. Ele inaugura e o homem pode inaugurar
também, dependendo de sua capacidade de entrega, de se deixar iluminar por um
poder fontal que assumido torna o homem também fontal.

Aqui o processo de olhar e ver abre uma perspectiva de coerência no processo do
poema desde que a inauguração tenha algo de pressuposto, de materialidade da palavra.
Sendo vista, recebe outros sentidos inaugurais.

O poeta se entrega ao processo de “canção do ver”, mas não se entende – titubeia
entre a lucidez própria e a entrega à luz/processo criador da santidade. Confessa
que não entende, não sabe explicar.

Ao constatar que a santidade é inaugural a partir de um pressuposto – a palavra
– salta e proclama-se indigente passando a fonte para os passarinhos.

Estes sim, “botavam primavera nas palavras” – Estes levavam as palavras aos
brotos, aos recomeços, aos rebentos de uma nova expressão, de um novo sentido.
A fonte dos brotos, do renascer das palavras tinha origem nos pássaros. O poeta
encolhera-se e não quis se entregar à santidade da ‘canção do olhar!’

Conclui-se que as coisas, os pássaros não amedrontam a capacidade de entrega
do poeta, são cúmplices. Quando se trata de um fluxo inaugural mais límpido,
sem substrato, o poeta recua e escolhe a fonte das coisas. Quando a oferta de
uma entrega ao próprio jorro inaugurante – a santidade – lhe é oferecido, ele
procura a fonte cuja dinamicidade ele conhece. São escolhas processuais e poéticas,
ambas inauguram.

7.

A turma viu uma perna de formiga, desprezada,
dentro do mato. Era uma coisa para nós muito
importante. A perna se mexia ainda. Eu diria que
aquela perna, desprezada, e que ainda se mexia,
estava procurando a outra parte do seu corpo,
que deveria estar por perto. Acho que o resto da
formiga, naquela altura do sol, já estaria dentro
do formigueiro sendo velada. Ou talvez o resto
do corpo estaria a procurar aquela perna
desprezada. Ninguém viu o que foi que produziu
aquela desunião do corpo com a perna desprezada.
Algumas pessoas passavam por ali, naquele trato
de terra, e ninguém viu a perna desprezada. Todos
saímos a procurar o pedaço principal da formiga.
Porque pensando bem o resto da formiga era a
perna desprezada. Fomos à beira do rio mas só
encontramos pedaços de folhas verdes carregados
por novas formigas. Achamos a seguir que as novas
formigas que carregavam as folhas nos ombros, elas
estavam indo para assistir, no formigueiro, ao
velório da outra parte da formiga. Mas a gente
resolveu por antes tomar um banho de rio.

Poema em prosa poética?

Continua o mesmo argumento de o poeta atingir o ponto inaugural.

O centro do poema parte de uma coisa muito insignificante e difícil de ser individualizada
em meio ao universo/cenário apresentado: “uma perna de formiga, desprezada,
dentro do mato”
.

Tal achado foi julgado muito importante pela turma, pois ainda se mexia e de
acordo com a ludicidade infantil pensavam que ela procurava o resto de seu corpo.
Ou ainda este corpo estaria procurando a própria perna.

As conjecturas lúdicas tecem o corpo do poema e fazem tudo girar ao redor de
uma coisa minúscula mas julgada muito importante pela turma: a perna desprezada
e sem corpo.

Para aumentar a importância do “desimportante”, afirma que várias pessoas passavam
por ali e ninguém percebia o achado da turma: a perna da formiga.

O “desimportante” move a turma a descobrir as outras formigas, mas com o jogo
completo de pernas. Inauguravam suposições sobre as formigas: “iam as formigas,
para o velório da formiga sem perna.”
?

Quando a turma percebeu que não iam resolver a questão da perna da formiga desprezada
– quando o mundo das formigas ia complicar e tornar-se importante para eles,
tomaram uma decisão bem lúdica: “vamos tomar banho no rio!”

Assim o “desimportante” teve seu foco, moveu o “jogo” e retornou a seu ritmo
de desimportante; ao passo que a turma escolheu o trivial, outro desimportante,
sem complicação: “tomar banho no rio”, onde tudo é gratuito e nada se repete.
Ali no banho, cada movimento ou posição na água é sensivelmente mutável e inaugurável.

8.

Fomos rever o poste.
O mesmo poste de quando a gente brincava de pique
e de esconder.
Agora ele estava tão verdinho!
O corpo recoberto de limo e borboletas.
Eu quis filmar o abandono do poste.
O seu estar parado.
O seu não ter voz.
O seu não ter sequer mãos para se pronunciar com
as mãos.
Penso que a natureza o adotara em árvore.
Porque eu bem cheguei de ouvir arrulos de passarinhos
que um dia teriam cantado entre as suas folhas.
Tentei transcrever para flauta a ternura dos arrulos.
Mas o mato era mudo.
Agora o poste se inclina para o chão — como alguém
que procurasse o chão para repouso.
Tivemos saudades de nós.

Este poema apresenta a volta à infância como estado inaugural contínuo, ao jogo
com expressão do fortuito e lúdico. O jogo tira a pessoa do compromisso com
o reflexivo, com a lógica racional.

A raiz do lúdico, com referência da entrega no jogo é, no poema, o “Poste”,
ao redor do qual os jogos aconteciam no tempo inaugural. Tudo, no jogo dos infantes,
é inaugural porque, em cada instante, ninguém aprisiona o acontecimento. Qualquer
posição ou caminho será novo a cada passo.

O tempo reflexivo e a idade tornaram-no(o poste) precário, em estado de abandono
pela falta de vida inaugural ao seu redor.

Está, o poste, em estado de inanição = limo verde, borboletas… que somente
se inauguram em seus vôos enfeitados… ao redor do poste agora tudo está parado
e sem vida.

O poeta se surpreende com o estado de inanição do poste: “O seu estar parado
/ O seu não ter voz / não ter mais contato ou referência das mãos!”
. Aliás as
mãos teriam sua voz e seu valor inaugural de deixar livre ou terminar o jogo
mudando de condição: livre/preso.

O poeta inaugura o mundo possível, futurível que poderia ter tido: a voz das
mãos seria substituída pelos arrulhos dos pássaros pousados entre suas folhas.
A ternura dos arrulhos sonhados / inaugurados também se constituem na fugacidade
do imaginar. A mudez retomada do poste inaugura a sua verdade crua: o mato era
mudo. Então o poeta mostra-lhe a vocação atual: “o poste se inclina para o chão
– como alguém que procurasse o chão para repouso!”

“Tivemos saudades de nós” – inclui-se no fecho do poema a saudade do brilho
do poste e da vida ao seu redor. O inaugural proporcionou um retorno à infância
como tempo ideal para se viver no enlevo lúdico, na sucessão do impensado e
do não calculado. Vivia-se a entrega ao momento que tecia a alegria e a expansão
inaugural de cada um na imprevisibilidade do inocente jogo de meninos. Estes
se encantavam tendo como referência o poste. Hoje o carcomido poste trouxe a
beleza do tempo em que a entrega à vida acontecia sem pejo. Em tal época a vida
resplandeceu… Agora sua memória a trouxe com sentimento de saudade.

9.

E agora
que fazer
com esta manhã desabrochada a pássaros?

O poema celebra a vida em flor viva, de pássaros; estes são capazes de escrever
aquilo que ainda não foi vivido e reinventar a vida a cada momento. Dessa forma
a manhã de per si já é um florescimento e aqui se abre em flor de pássaros que
embelezam o dia e o mundo. O encanto do poeta não tem resposta, fica meio perplexo
e interroga-se com vontade de segurar o momento. Assim a pessoa se expõe ao
encanto, deixa-se enlevar e percebe que o momento se eterniza dentro dele, mas
não o pode reter, será sempre “esta manhã desabrochada a pássaros?” Sempre perdurará
a interrogação no anseio de a passar a todos que não a viram desabrochar. Somente
o poema será o registro desta beleza.

Segunda Parte

DESENHOS DE UMA VOZ

1.

SE ACHANTE
Era um caranguejo muito se achante.
Ele se achava idôneo para flor.
Passava por nossa casa
Sem nem olhar de lado.
Parece que estava montado num coche
de princesa.
Ia bem devagar
Conforme o protocolo
A fim de receber aplausos.
Muito achante demais.
Nem parou para comer goiaba.
(Acho que quem anda de coche não come goiaba.)
Ia como se fosse tomar posse de deputado.
Mas o coche quebrou
E o caranguejo voltou a ser idôneo para
mangue.

O poema mostra as conjecturas do poeta sobre a honestidade de um caranguejo
‘se achante’.

– a novidade é a voz do poeta emprestada ao caranguejo mas sob o ponto de vista
e perspectiva do poeta.

– “Se achante” é o reverso do louvor do poeta à majestade do caranguejo. Devido
a essa majestade, o poeta desdobra-se em explicitá-la.

No poema está clara a tentativa de o poeta solenizar o que é desprezível – a
majestade de um caranguejo.

Assim o caranguejo:

– é idôneo para flor
– andava sem olhar de lado
– montado num coche de princesa
– andava devagar/ Conforme o protocolo (solene para) receber aplausos
– Muito achante demais.
– Nem parou para comer goiaba.
– Ia como se fosse tomar posse de deputado.
– Acabou a fantasia – O coche quebrou!

Após emprestar ao caranguejo todos os trejeitos de pessoas solenes e dadas ao
mundo das passarelas e aplausos, ao mundo das pessoas movidas a aplausos…

Conclui-se que: “O caranguejo (devolvido a si mesmo) voltou a ser idôneo para
o mangue – sua verdadeira glorificação!”

Neste poema aparece a voz do poeta para proclamar a lealdade e idoneidade da
beleza de cada coisa com a configuração do seu meio. Será esplendorosa para
quem souber ver e proclamar essa beleza de que todas as coisas, em seu meio,
são portadoras. E o poeta diz a beleza de um caranguejo “se achante” pra valer.

2.

SONATA AO LUAR

Sombra Boa não tinha e-mail.
Escreveu um bilhete:
Maria me espera debaixo do ingazeiro
quando a lua tiver arta.
Amarrou o bilhete no pescoço do cachorro
e atiçou:
Vai, Ramela passa!
Ramela alcançou a cozinha num átimo
Maria leu e sorriu.
Quando a lua ficou arta Maria estava.
E o amor se fez
Sob um luar sem defeito de abril.

É uma história de amor em tempo de lua ‘arta’ – “Lua arta” é uma expressão da
cultura.

O cachorro tornou-se um ‘veículo’ muito interessante ou correio.

Quanto o tempo se completou a sinfonia chegou ao auge – E o amor se fez.

Sonata é feita de quadros e tempos: tempos reais, tempos supostos e tempos intensos.

Estrutura da Sonata:

– Introdução: Sombra Boa não tinha e-mail. Escreveu um bilhete;
– Tema recorrente ou conteúdo: Maria me espera debaixo do ingazeiro/ quando
a lua estiver arta.
– Variação do tema ou tempo de espera ou de suspiro ou um dueto: amarrou o bilhete
no pescoço do cachorro/ e atiçou: / Vai Ramela, passa!/ Ramela alcançou a cozinha
num átimo!

– Volta ao tema central/principal, com intensidade: Maria leu e sorriu.
– Intermezzo lírico – addaggio – choroso: Quando a lua ficou arta Maria estava.

– Volta ao tema central – Vibrante e Fortíssimo: E o amor se fez.
– Final suave e amoroso: Sob um luar sem defeito de abril.

Música da vida: – a voz da engenhosidade
– a voz do amor
– a voz cúmplice da natureza (luar) embelezando o amor.

3.

EMAS

Elas ficam flanando no pátio da fazenda.
A gente sabe que as emas comem garrafas
abotoaduras freios pedras alicates e tais.
Nossa mãe tinha medo que uma ema
Comesse nosso cobertor de dormir e os
vidros de arnica da vó.
Eu tinha vontade de botar cabresto em uma
ema
E sair pelos campos montado na bicha a
correr.
A gente sabia que a ema quase voa no correr.
Que a ema racha o vento no correr.
Eu tinha era vontade de rachar o vento
no correr.

A voz das emas – a voz do poeta ante o vento!

– Elas ficam flanando no pátio da fazenda.
– Mostra o que são as emas e suas proezas de digestão.
– A voz do poeta, ele quer ‘flanar’ numa ema. Apropria-se da voz da ema no vento.

– Velocidade da ema: …a ema quase voa ao correr/ Que a ema racha o vento no
correr.

Apropriação da voz da ema pelo poeta: “Eu tinha vontade de rachar o vento no
correr”
. Assim a ema torna-se o termo de comparação capaz de expressar o grande
desejo do poeta, ou superar o vento como as emas fazem, racham o vento. O poeta
quer correr, voar, ser mais veloz que o vento.

De fato as emas deram suporte à imaginação do poeta, são fortes, flanam, poderosas
na digestão, capazes e rachar o vento. Nelas se materializou a voz do sonho
do poeta: ser muito veloz!

4.

VENTO

Se a gente jogar uma pedra no vento
Ele nem olha para trás.
Se a gente atacar o vento com enxada
Ele nem sai sangue da bunda.
Ele não dói nada.
Vento não tem tripa.
Se a gente enfiar uma faca no vento
Ele nem faz ui.
A gente estudou no Colégio que vento
é o ar em movimento.
E que o ar em movimento é vento.
Eu quis uma vez implantar uma costela
no vento.
A costela não parava nem.
Hoje eu tasquei uma pedra no organismo
do vento.
Depois me ensinaram que vento não tem
organismo.
Fiquei estudado.

O poema mostra o confronto entre o lúdico e o racional. Estrutura-se na luta
entre as percepções e o raciocínio.

O infante é retratado em ações concretas e próprias da percepção material ou
“coisal” como é do feitio do poeta. Esse encontro de opostos perceptivos é poetizado
justamente valendo-se de um elemento ambíguo que se deixa perceber, mas não
se vê, somente se sente e é constatado sensorialmente. Da mesma forma a definição
racional do vento é clara, mas não constatada, a não ser sensorialmente.

Nessa circunstância, o infante tenta de várias formas constatar a materialidade
do vento; vê todas as suas tentativas se frustrarem. Ao fim dá-se por vencido
e se proclama vencido pelo racional: “Fiquei estudado!”

A cada ação proposta pelo poeta, aguardava-se um resultado ou reação do vento.
Nenhuma, conforme o poeta, se verificou. Nesse processo acontece uma conceituação
poética do vento:

– Ele existe mas não olha para trás quando atingido por uma pedra.
– Atingido por uma enxadada não sai sangue.
– Não sente dor.
– Não tem tripa.
– Não tem corpo sensível a facadas.
– Ele é ar em movimento.
– Ele não aceita o suporte de uma costela.
– Mesmo assim o poeta o apedrejou sem resultado.
– Disseram-lhe que o vento não tem organismo.

Mas o vento existe e dele o poeta extraiu esse poema! Não lhe escutou a voz
porque não tem organismo. Não pode falar por si mesmo — somente quando em atrito
com obstáculos como as árvores ou saliências do terreno.

Confessa o poeta que a racionalidade acabou possuindo-o: “Fiquei estudado!”

5.

ANTÔNIO CARANCHO

Me chamam de Antônio Carancho:
Carancho é por maneira que eu ando de pé virado
Moda carancho mesmo.
Pra bobo eu não sou condicionado.
Sou mais garantido de cantor.
Porém meu canto é fechado.
Lastreadamente sou Antônio Severo dos Santos.
Carancho é de caçoada.
Tenho vareios no olhar as coisas.
Chego de ver vaidade nas garças.
Eu ouço a fonte dos tontos.
Pedra tem inveja aos lírios.
Isso eu sei de espiar.
Eu combino melhor com árvores.
Totalmente ao senhor eu falo:
Quem ouve a fonte dos tontos não cabe mais
dentro dele.
Outra pessoa desabre.

A voz do poema define o poeta ou Antônio Carancho. Neste poema constitutivo,
a teoria do poema explicita o seu autor.

Proclama-se: Antônio Carancho. Carancho por causa da ave de rapina de ‘ pé virado’
e jeito semelhante ao andar da ave.

Proclama-se cantor de um canto fechado, e “tenho vareios no olhar as coisas”.
Por “Vareios” subentendem-se as diferenças, as modalidades e a capacidade de
um olhar descomum que vê outras realidades não normalmente percebidas pelos
mortais comuns!

O poeta exemplifica os “vareios” no olhar as coisas:

– Chego de ver vaidade nas garças.
– Eu ouço a fonte dos tontos.
– Pedra tem inveja aos lírios.

São realidades transferidas às coisas, percebidas somente por um olhar especial
que vê além das aparências, que capta os revérberos das coisas em suas relações
coisais.

Também o poeta Antônio Carancho se revela em suas preferências:

– Eu combino melhor com árvores.

E estabelece o limite ou parâmetro ideal para a percepção do Belo: “ouvir a
fonte dos tontos!”; quem aí chegar não “cabe mais dentro dele!” Em outras palavras,
“a fonte dos tontos”, segundo o poeta, tem propriedades engrandecedoras da realidade
oculta não acessível à razão. Justamente afirma o poeta, na “fonte dos tontos”
jorra outra água. Pois os tontos têm a propriedade de inaugurar as coisas conforme
a própria fonte, a tontice. Esta é julgada como bobeira pelo justo julgar racional.
O poeta que acessou ou abeirou-se da fonte da Tontice, percebe o mundo, as coisas,
um universo diversificado e ilógico, mas capaz de transbordar e engrandecer,
pois afirma seu ser. Sua capacidade de inaugurar extrapola, pois cria ou vê
sempre as mesmas coisas em outra perspectiva e o mundo cresce até o poeta concluir:
“Não (se) cabe mais dentro dele!”

Essa perspectiva de abeirar-se à “fonte dos tontos” é um achado do poeta, sua
grande descoberta na variabilidade de ir além do real ou das aparências racionais
das coisas.

O mundo jorrante da “fonte dos tontos” tem a propriedade inaugural vertiginosa,
vai além de todos os seus limites e extravasa, expande o seu mundo e o seu ‘eu’.
Abeirar-se da força da “fonte dos tontos” transforma o ‘eu’ do poeta, aumenta
sua capacidade de percepção a ponto de ele não mais se perceber como era, é
outro. A “fonte dos tontos” o transforma em seu olhar e ele é construído para
estar em estado de expansão para a beleza lúdica do universo e das coisas a
partir de seu percurso poético.

E ele, não se identificando mais consigo mesmo, afirma que é outro e que o poema
o construiu; tornou-se outro ao percorrer o universo inaugurado pela água da
“fonte dos tontos”.

Assim concluiu sua inauguração fechando o poema: “OUTRA PESSOA DESABRE!”

O poema contém a teoria em seu caminho inaugural. A proposta do acesso “Fonte
dos Tontos” criou o autor, o ‘eu’ do poeta.

O que é a FONTE DOS TONTOS no poema?

Vários traços compõem a resposta:

– Fonte dos Tontos é o campo oposto ao racional e ao fotografável;
– Fonte dos Tontos é um campo não perceptível à narrativa linear, mas habitada
pelo surpreendente, pelo inesperado e pelo lúdico;
– Fonte dos Tontos é o lado não manifesto da linearidade das palavras, das sintaxes.

– Fonte dos Tontos é o desprezível, o abjeto, tudo que a pessoa comum não aprecia.

– Fonte dos Tontos é o universo das coisas, dos bichos, das árvores, dos vermes
insignificantes, dos insetos, dos moluscos nojentos…
– Fonte dos Tontos é a expressividade dos pequenos, dos sem voz, das coisas
já usadas e que foram jogadas fora.
– Fonte dos Tontos é a falta de lógica para a racionalidade que não deixa sair
dos trilhos, pois ela não tem trilhos.
– Fonte dos Tontos é a oferta das coisas, dos pássaros, dos insetos ao homem
desprezível também, ao imbecil, ao fora do prumo, ao não apto ao fechamento
das idéias racionais; em compensação aberto às surpresas, às solenidades dos
pequenos e desprezíveis, aos escondidos das coisas, às sintaxes inaugurantes
e às imagens de contra-mão.

Todo esse conjunto exige um “eu” capaz de ser acessado, de entrar na clareira
do ser objeto na suspeita de sua reinvenção. Quando opera o estado de vigília,
o poeta atravessa para o outro universo e é construído pela sucessão inaugural
desses objetos, situações e percepções novas. Afinal é outro homem, outra pessoa,
pois “Outra pessoa desabre”!

Para isso ele venceu o percurso que o poema lhe oferece:

– Antônio Carancho
– não é bobo
– tenho voz – sou garantido de cantor/ Mas meu canto é fechado!
– Tenho vareios no olhar as coisas e vejo: vaidade nas garças, ouço a Fonte
dos Tontos, a inveja da pedra
– combino bem as árvores
– ouço a Fonte dos Tontos,

E ao final do percurso, está repleto pela Fonte dos Tontos e está construído
– é outra pessoa. Seu “eu” brotou no percurso apresentado pelo poema em etapas
distintas e constitutivas.

Nota-se que o poema se estende com percurso que por sua vez também se apresenta
no próprio desdobramento como oferta de cada parte que se coordena na dialética
e complementaridade da parte com o todo; sendo que o conjunto, o todo, atrai
e congrega as partes, as etapas do percurso do poema de acordo com a ‘dynamis’
que traz e sustenta a fonte do sentido. Dessa forma, as partes, os conjuntos
de versos se coadunam entre si pela força que os conduz ao todo que sustenta
e apresenta o sentido do poema.

O sentido do poema Antônio Carancho é disposto nas partes para surgir com evidente
estruturação depois de receber a contribuição das partes de forma a realçar
a conclusão e o seu sentido máximo: a construção das percepções e constatação,
mediante a entrega do poeta ao processo antecipa o desenlace bem disposto; ao
fim o poeta foi construído pelo percurso. Por outro lado, também a teoria poética
se construiu na exclusividade do percurso suscitado pelo poema!

6.

NA GUERRA

Prefeito despachou estafeta a cavalo com
uma carta ao Imperador.
A carta anunciava a invasão da cidade por
tropas paraguaias
E pedia recursos.
Dois meses depois o estafeta entregava a
carta ao Imperador.
Quando os recursos chegaram os paraguaios
não estavam mais.
Levaram quinze moças louçãs e um pouco
de mantimentos
Para comer na viagem.
Acho que comeram tudo.
(Corumbá é uma cidade cuja população
é bem mesclada de paraguaios.)

Poema narrativa e piada. Jocosamente o poema constrói, valendo-se da história
de uma narrativa com forte carga de “ambigüidade”; centraliza-se o sentido no
verbo “comer” – Também quer explicar a origem de tantos corumbaenses de ascendência
paraguaia.

A leveza do poema une as partes e sustenta a evidente conclusão histórica!

7.

NO SÍTIO

A gente morava no Sítio, duas léguas da Capital.
Na estrada de terra que passava no Sítio só tinha
três vacas vadias, três cabras vadias, um
bandarra velho e a égua Floripa.
Meu avô queria passear na Capital.
Mandou encilhar Floripa. E saiu.
No meio da estrada o avô desamontou para verter
água. Verteu.
No intervalo Floripa virou a cara pro lado do
Sítio. E parou.
Meu avô amontou de novo e apertou a marcha.
Logo Floripa estacou em frente de nossa casa.
Meu avô entrou e disse: Gostei de ver a Capital.
Já tem até vaca na rua!
É fruto de progresso.
Floripa estava parece que rindo na porta.

De forma semelhante ao poema anterior, o poeta constrói o percurso deste a partir
da ambigüidade da expressão “virar a cara” e determinar o fecho do poema conforme
às circunstâncias da viagem do avô que a tornaram meio histriônica.

Talvez outra expressão que alicerça o sentido hílare do poema surge na afirmação
do avô:

-“Gostei de ver a capital!”. Essa circunstância tem o seu valor correlacionado
à cultura rural do Pantanal em tempo de fundações das fazendas. Época em que
predominando uma cultura rural, “ver a capital!” serviria para confrontar e
suscitar intercâmbio de perspectivas. O poema conota essas perspectivas culturais.

8.

OS DOIS

Eu sou dois seres.
O primeiro é fruto do amor de João e Alice.
O segundo é letral:
E fruto de uma natureza que pensa por imagens,
Como diria Paul Valéry.
O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu
e vaidades.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades
Frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.

Este poema, em tom jocoso, descreve ou apresenta como o autor se vê.

No confronto consigo mesmo, ser poeta aponta duas vertentes e tenta explicitar
a constituição de cada uma. Apresenta suas origens paternas e suas origens poéticas
interligadas indistintamente em seu ser, em sua pessoa. Pai e mãe lhe deram
a vida humana; talvez Paul Valéry lhe tenha dado o rumo da construção de seu
ser poeta: “uma natureza que pensa por imagens”.

O filho de João e de Alice se vê como pessoa qualquer. De roupa e chapéu e vaidades.
Ao passo que descendente de Paul Valéry ou das imagens, se vê cheio de letras
e palavras. Ambos têm em comum uma propriedade que não se vê mas confere qualidade
e postura, ambos estão cheios de vaidades.

Esse elo entre os dois segmentos do poeta traz-lhe consistência e fortalece-lhe
o desejo de ser forte em ambos: ser um homem vaidoso e um poeta vaidoso. A vaidade
é sua consistência.

Ele o confessa com leveza e muita ironia. Neste ato vê-se também com complacência
e agrado; não hesita e reitera a força da vaidade humana e poética que o anima:
“Aceitamos que você empregue o seu amor em nós!”

Neste poema existe uma confissão velada da vaidade que anima o poeta – em especial
a vaidade surge, alimenta-se do reconhecimento obtido e do esperado.

Tanto o homem como o poeta confessam-se vaidosos. Assume a vaidade de modo ambíguo
e universal; declara-se também vaidoso, mas com uma pitada de auto-ironia!

9.

TEOLOGIA DO TRASTE

As coisas jogadas fora por motivo de traste
são alvo da minha estima.
Prediletamente latas.
Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas.
Se você jogar na terra uma lata por motivo de
traste: mendigos, cozinheiras ou poetas podem pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes, por
exemplo, do que as idéias.
Porque as idéias, sendo objetos concebidos pelo
espírito, elas são abstratas.
E, se você jogar um objeto abstrato na terra por
motivo de traste, ninguém quer pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes.
A gente pega uma lata, enche de areia e sai
puxando pelas ruas moda um caminhão de areia.
E as idéias, por ser um objeto abstrato concebido
pelo espírito, não dá para encher de areia.
Por isso eu acho a lata mais suficiente.

Idéias são a luz do espírito — a gente sabe. Há idéias luminosas — a gente sabe.

Mas elas inventaram a bomba atômica, a bomba
atômica, a bomba atôm……………………………
………………………………………………….. Agora
eu queria que os vermes iluminassem.
Que os trastes iluminassem.

No título estampam-se os horizontes que o poeta quer para o poema: a matéria
mais ínfima e a transcendência. Se o traste recebe esta denominação oriunda
do cenário das atividades do homem quando se posiciona perante si, perante a
natureza e perante os outros homens, com algo que não mais vai lhe servir. Assim
o homem capaz de se construir como tal, referencia-se também com algo que está
além dele e a que atribui todo o poder que o transcende. Dessa forma esse horizonte
que transcende é tomado e integrado ao traste, a tudo aquilo que o homem já
desprezou. Assim se compreende o título TEOLOGIA DO TRASTE – Deus e o traste.
Para o homem racional que constrói as idéias e os mundos a partir do abstrato,
ele, poeta, contrapõe até o transcendente como imanente ao Traste. Aquilo que
é desprezível ao homem cujo padrão principal seja a medida da utilidade, ele
contrapõe o desprezível tomado pelo transcendente. Teologia do Traste aproxima
os opostos e dignifica o traste conferindo-lhe sublimidade à sua concretude
desprezível; para o poeta acontece assim a reversibilidade dos opostos: o que
é desprezível torna-se sublime e consagrado como tal pelo poder de Deus que,
principalmente e ali, está presente conferindo a sublimidade das mudanças e
transformações visíveis não racionais. Para o poeta acontece a reversibilidade
dos padrões: o racional pode ser poderoso mas não consegue ter a força do traste
em contínua mutação visível.

Tudo o que é traste é objeto da estima do poeta que confessa sua fraqueza pelas
latas em estado de deterioração. Define-as ironicamente a partir dos conceitos
racionais: “Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas!” Aqui a palavra
que segura o sentido — “Pessoas léxicas”— como sendo pessoas capazes de estabelecer
relações e capazes de criar sentidos ou significados a partir da razão, ao se
referirem às latas, se empobrecem, uma vez que não sabem tirar metáforas do
concreto.

As pessoas que gostam de latas são os amigos do poeta por serem simples: mendigos,
cozinheiras ou poetas. Esse é o horizonte de valor proposto pelo poeta. Proclama
outra capacidade inerente às latas: “elas são muito suficientes”! ou mais suficientes
que as idéias. Seguindo o poeta o seu raciocínio, demonstra que os objetos concebidos
pelo espírito não podem ser “pegos” pelos mendigos ou cozinheiras, ao passo
que as latas são melhores que as idéias porque “A gente pega uma lata, enche
de areia e sai puxando pelas ruas moda um caminhão de areia.”
Ao passo que as
idéias não podem ser tomadas e serem transformadas como uma lata que pode virar
ou se transformar em um caminhão de areia. O abstrato das idéias uma vez estabelecido
não se muda ou se transforma, ao passo que uma lata pode se transformar naquilo
que um inventor como o poeta a quiser transformar. Assim declara o poeta: “Por
isso eu acho a lata mais suficiente”…
pode-se fazer com ela um mundo lúdico
e de felicidade. Ao passo que as idéias utilitárias podem ser o berço de uma
bomba atômica, o que é muito desastroso.

Por outro lado, afirma que “Idéias são a luz do espírito” e imediatamente contrapõe
sua posição quanto à luz do espírito: “Eu queria que os vermes iluminassem./
Que os trastes iluminassem.”
Pois estes não construiriam, mesmo iluminados,
a bomba atômica. Os vermes sabem oferecem um mundo mais transformador e iluminado.
Inaugurado em muita luz na simplicidade que um traste é capaz de anunciar.

O poeta aqui retoma o seu tema predileto em livros anteriores: tudo o que for
desprezível é bom para a poesia. Assim as pequenas coisas, o traste e os objetos
desprezíveis são ótimos para um sentido muito amplo da vida, servem para se
contemplar a criação, a invenção poética.

10.

GARÇA

A palavra garça em meu perceber é bela.
Não seja só pela elegância da ave.
Há também a beleza letral.
O corpo sônico da palavra
E o corpo níveo da ave
Se comungam.
Não sei se passo por tantã dizendo isso.
Olhando a garça-ave e a palavra garça
Sofro uma espécie de encantamento poético.

O poema “GARÇA” exemplifica a relação do poeta com as palavras. Usa a natureza,
a própria ave como ponto referencial da palavra; a elegância da ave se consubstancia
na ‘beleza letral’ da palavra. Para o poeta as belezas se comungam e transferem
a arte, a beleza ou leveza do ser para o ser do poema com a elegância e altivez
de uma ave/garça.

Ao descobrir a integração do belo no verbo e na ave o poeta confessa seu estado
de gozo estético ou encantamento. Tanto uma como a outra são portadoras de uma
configuração com que preenchem as exigências da verdade de suas belezas ou de
uma única beleza simbiótico-verbal.

Para que esse encantamento acontecesse alguns traços se intercalam e compõem
o cenário integrado expressivo do belo. Se por um lado a garça/ave se lança
ao olhar com altivez, postura e leveza, por outro apresenta presteza, atenção,
elegância e certa ferocidade com que, através do bico longo e pontiagudo, ataca
a presa com rapidez, precisão e elegância. A garça permanece em sua postura
de distinção, de solenidade e de traços muito bem precisos, não se inserindo
no cenário com simulações, ao contrário, com sua silhueta muito clara e talhada,
escultural.

Da mesma forma a palavra GARÇA tem uma base bem clara e definida os sons de
suas duas vogais elementares e abertas; esses ‘as’ dão suporte à palavra em
termos de extensão e abertura. A pronúncia da palavra sustém a boca em estado
de abertura e a imaginação em ângulo que abarque o universo ou o horizonte.
Da mesma forma o ‘g’ – minúsculo – combina com a esbelteza e altura anatômica
da ave; o som do ‘ç’ pode indicar um apoio e suavidade, ao passo que o ‘r’ pode
indicar a sua qualidade de rapina. O ‘r’ combina com capacidade de matar para
sobreviver, associa-se à qualidade de “rapina” e integra o

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