Poesias Incompletas
faz uma retrospectiva da produção literária de Antônio Girão Barroso,
começando com “Alguns poemas” (de 1938). Reúne, praticamente, toda a sua produção, cuja linguagem, sem
sombra de dúvidas, é ponto de destaque em estética, com acento ao português popular, coloquial, pleno de
brasileirismos, de neologismos, expressões populares e emprego irregular dos sinais de pontuação.
“Estação do Trem” é dedicado ao poeta Manoel Bandeira – que, vê-se, tem influência preponderante na
poesia de Barroso. Antônio Girão Barroso, à semelhança de Bandeira (a quem dedica esse poema,
ressaltando a intertextualidade com “Trem de ferro”, do poeta pernambucano) sabe, muito bem, unir humor,
calor humano e ritmos sugestivos. É o poema de abertura, onde Antônio Girão Barroso já aponta a sua
intenção em romper – particularmente aqui, no Ceará – com os padrões tradicionais da poesia, que se
impuseram como verdadeiros cânones antes do advento do Modernismo: do ponto de vista formal, há o livre
emprego de versos longos e curtos, sem métrica regular, bem como a presença apenas de rimas ocasionais,
a dessacralização da linguagem por meio da fala matuta vem danado pra chegá – aqui, estabelece-se
uma intertextualidade com Ascenso Ferreira, poeta pernambucano, autor dos versos:
Vou danado pra Catende
com vontade de chegá
e a exploração de recursos sonoros:
Lá-e-vem o trem
lá-e-vem
com seu apito tão fino
vem danado pra chega
Pacatú-b-a-bá
Paratú-b-a-bá
Corre, menina
teu pai chegou
o trem das nove
não já apitou?
Banana seca é o pau que rola.
Lá-e-vem o trem
lá-e-vem
com seu apito tão fino
vem danado pra chegá
Pacatú-b-a-bá
Paratú-b-a-bá
Donde vem esse povo?
Vem do Ceará!
Pacatú-b-a-bá
Paratú-b-a-bá
Seu moço, me dê uma esmola
pelo santo amor de Deus…
esse cego tá fazendo verso?
O trem vinha puxando noventa
Ah trem espritado!
Um bando de colegiais
tão fazendo sururu na vila.
Tem um bebendo até cachaça
o Acarape é tão perto
cachaça é quase de graça
contudo ele já gastou seiscentos reis…
Fiu…
O trem partiu
Pacatuba sumiu.
(Mas que vontade de voltar…)
Pacatú-b-a-bá
Ainda deste primeiro livro, um certo desencanto existencial
a vida todinha
eu passo dizendo
me acudam me acudam
e a consciência do tempo que passa (como no poema “Inútil dizer”), além de recordações da infância
sertaneja – em “Menino”, o pedido na procissão para Nossa Senhora: “faça de mim um homem bem-bom”. E,
claro, há o amor e suas inquietudes, num recorte pró-feminino:
todas as mulheres são iguais
e os homens também.
A influência de Bandeira e Drummond fica explícita em “Canção do noivo aflito”, um rondó para a noiva
“raquitinha” que morreu:
minha noiva não vá não
senão me jogo no mar.
E em versos de sutil densidade lírica, como no poema “Imagem simples”: eu também espero pelo sol que
é você.
Vemos ainda o poeta e sua consciência do mundo, um olhar sobre a cidade e os homens calados, que
“espreitam o bonde das onze e cinco”. Em “Único poema proletário”, Antônio Girão Barroso dá forma
estética ao “drama cotidiano da fábrica de tecidos”. E a uma cena praiana no Pirambu. Em “Nihil”, o
poeta deseja não pensar em nada, “ser apenas um animal que pobremente se alimenta”. Mas, adiante, diz:
a vida me convida
a de novo mover minha imaginação.
A segunda parte do livro traz poemas de “Os hóspedes”, publicado em 1946. O que ressalta é o sentimento
da solidão, a angústia derramando-se no papel branco, mas há o sonho de um mundo melhor. Em “Moscou”, por
exemplo, onde “então ouviremos falar do mago Lenine”.
Mas o poeta finca versos é na esquina de sua rua, espia os arrabaldes, a chuva (sinônimo da esperança),
derrete-se de amor:
meu coração, bate devagar
pode bater devagarinzinho,
diz em “Poeta moderno arranja namorada”. Mas a lírica não empana o drama real da vida, e por isso ele
registra o sofrimento do sertanejo, em mais um momento de seca e retirada:
os pobres sofrem, Maria, porque às vezes
falta-lhes a água e sobra-lhes o sol.
Em “Novos poemas” (de 1950), o poeta ainda louva o amor, mesmo sem rimas, o “que é difícil, mano!”, e
canta loa à mulher latino-americana,
dançando rumba e valsa
num mundo de cinema pintura e organdis.
Há até, no “Soneto de bodas”, uma experiência de poema concreto com o nome da amada, Hermelinda.
Em “Trinta poemas para ajudar”, de 1964, nenhum deles tem título. O poeta Antônio Girão Barroso está em
sua melhor forma. Há, aqui, ecos de surrealismo:
a eurritmia do verso
e o fragor das batalhas
o cardume de peixes
e a donzela morta
o moço suicida
(num punho de rede)
e o laço de fita.
Em “Poesia” (simultânea) com o sol e a lua, a mescla da quadrinha popular com o espírito jocoso cearense
resulta num quase haikai:
o sol é lindo
como um limão
A lua é uma grande traficante.
De “Universos”, publicado em 1972, a metalinguagem do poema Obrigado, poesia – porque posso carregar
fantasmas a tiracolo. E mais experiências concretistas.
Em “Os dias preguiçosos”, um poema decantando a semana, o belo ócio e a leitura dos jornais:
as manchetes nos alimentam mais do que o pão
porém quando chega no fim do dia
vemos que havia muita coisa errada nas manchetes.
E arremata: a filosofia é esta, conversar é bom e beber é melhor. No “Último poema”, a profissão
de fé do poeta, seu compromisso primordial – com
o homem e sua vida
sua sobrevida
sua suada subvida.
Dispensando a rima e incorporando o cotidiano, Girão bem representa o impacto do modernismo nas letras
cearenses.