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Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo

by Lucas Gomes

Exemplo de romance afro-brasileiro, falando da identidade negra, Ponciá Vicêncio,
de Conceição Evaristo, vai de encontro à tese segundo a qual a escrita
dos descendentes de escravos estaria restrita ao conto e à poesia. Além de estabelecer
um saudável contraponto com o abolicionismo branco do século XIX e com o negrismo
modernista de um Jorge Amado, um José Lins do Rego ou Josué Montello, Ponciá
Vicêncio
remete ao Isaías Caminha, de Lima Barreto; em menor escala, ao Brás
Cubas, de Machado de Assis; e, com certeza, ao memorialismo de Carolina Maria
de Jesus e ao Ai de vós, de Francisca Souza da Silva, entre outros.

Em todo o romance percebe-se a prosa recheada de linguagem poética. A obra nos narra pequenos
acontecimentos do cotidiano, mas o seu olhar transcende o automatismo viciado com que se observam as
coisas do dia-a-dia para olhar com essência a poesia da vida.

O texto de Ponciá Vicêncio destaca-se também pelo território feminino de
onde emana um olhar outro e uma discursividade específica. É desse lugar marcado
pela etnicidade que provém a voz e as vozes-ecos das correntes arrastadas. Vê-se
que no romance fala um sujeito étnico, com as marcas da exclusão inscritas na
pele, a percorrer nosso passado em contraponto com a história dos vencedores e
seus mitos de cordialidade e democracia racial. Mas, também, fala um sujeito gendrado,
tocado pela condição de ser mulher e negra num país que faz dela vítima de olhares
e ofensas nascidas do preconceito. Esse ser construído pelas relações de gênero
se inscreve de forma indelével no romance de Conceição Evaristo, que, sem descartar
a necessidade histórica do testemunho, supera-o para torná-lo perene na ficção.

A história de Ponciá Vicêncio, contada no romance, descreve os caminhos, as andanças,
as marcas, os sonhos e os desencantos da protagonista. A autora traça a trajetória
da personagem da infância à idade adulta, analisando seus afetos e desafetos e
seu envolvimento com a família e os amigos. Discute a questão da identidade de
Ponciá, centrada na herança identitária do avô e estabelece um diálogo entre o
passado e o presente, entre a lembrança e a vivência, entre o real e o imaginado.

Descendente de escravos africanos, Ponciá surge já de início despojada do nome
de família, pois o “Vicêncio”, que todos os seus usam como sobrenome, provém do
antigo dono da terra e era como lâmina afiada a torturar-lhe o corpo. Essa
marca de subalternidade, que denuncia a ausência entre os remanescentes de escravos
dos mínimos requisitos de cidadania, estende-se pelo penoso circuito de vazios
e derrotas, no qual tanto a menina quanto a mulher vão sendo alijadas dos entes
queridos e de tudo o que possa significar enraizamento identitário. E depois de
perder também os sete filhos que gerou, Ponciá cai na letargia que a faz perder-se
de si mesma.

Ponciá vai em busca de dias melhores
na cidade, mas acaba desterritorializada numa favela, vegetando ao lado de um marido que não a
compreende. Sua descendência escrava vai se confirmando na vida difícil que leva, nos sonhos apagados
pela discriminação e pela marginalização que tanto ela, quanto os outros de sua família sofrem. Sua
condição social e cultural continua, portanto, sendo regida pelo passado africano. Sua trajetória do
espaço rural para o urbano representa sua condição diaspórica. A passagem em que a menina faz a viagem
de trem para a cidade confirma isso:

O inspirado coração de Ponciá ditava futuros sucessos para a vida da moça.
A crença era o único bem que ela havia trazido para enfrentar uma viagem que durou
três dias e três noites. Apesar do desconforto, da fome, da broa de fubá que acabara
ainda no primeiro dia, do café ralo guardado na garrafinha, dos pedaços de rapadura
que apenas lambia, sem ao menos chupar, para que eles durassem até ao final do
trajeto, ela trazia a esperança como bilhete de passagem. Haveria, sim, de traçar
o seu destino
.

Também o irmão de Ponciá, Luandi, vai para a cidade em busca de sonhos como achar a irmã que há muito
havia partido e juntar dinheiro. Sua viagem também marca a diáspora daqueles que, desterritorializados,
perpetuam as histórias do navio negreiro. Luandi chega à cidade sem eira nem beira. Tinha perdido pelo
caminho o endereço da irmã. Chegou num dia de chuva e frio. Trazia muita fome também
.

Outra personagem que embarca no trem negreiro em busca dos filhos é a mãe de Ponciá
e de Luandi: Maria Vicêncio. Em um dos capítulos do livro, o narrador nos diz
que ela sabia que, por mais que relutasse, um dia a cidade também faria parte
de sua travessia. Não sentia desejo algum pela aventura da viagem. Se a sua vida
era a da terra, em que ela vivia, o que faria longe de lá?

E a viagem de Maria Vicêncio ocorre semelhante a dos filhos: Quando o trem,
depois de intermináveis dias e noites, parou na estação, Maria Vicêncio esticou
as pernas com dificuldade. Ficara todo tempo da viagem encolhida com a trouxa
no colo, rezando suas orações. Sentiu a bexiga pesada, estava com vontade de urinar,
mas o medo não permitira que ela se levantasse e fosse ao banheirinho do trem
ou mesmo dos lugarejos em que máquina parava
.

Em Ponciá Vicêncio, a autora retoma o procedimento que arriscaria chamar de brutalismo poético ao
narrar, numa linguagem concisa e densa de sentido, a vida de uma mulher oriunda do mundo rural, desde a
infância até a “maturidade” desterritorializada na favela em que vegeta junto ao companheiro. A narrativa
configura-se como um Bildusgsroman feminino e negro ao dramatizar a busca quase intemporal da
protagonista, a fim de recuperar e reconstituir família, memória, identidade. No entanto, o ímpeto
antropofágico se faz presente na postura de rasurar o modelo europeu para conformá-lo às peculiaridades
da matéria representada. Assim, a apropriação feita por Conceição Evaristo ganha contornos paródicos,
pois em lugar da trajetória ascendente do personagem em formação, oriunda de Goethe e tantos mais, o que
se tem é um percurso de perdas materiais, familiares e culturais. E, em lugar da linearidade triunfante
do herói romanesco, temos uma narrativa complexa e entrecortada, a mesclar de forma tensa passado e
presente, recordação e devaneio.

O interesse da narrativa cresce justamente nos gestos de resistência a esse processo de espoliação. Nele,
vão surgindo as histórias dolorosas como a do pai, que, quando criança e já no período posterior à Lei
Áurea, tinha que ser o pajem do filho do patrão, o cavalo no qual este montava, e até aparar com a boca
o mijo do sinhô-moço… A passagem retoma de forma ampliada e crua a cena do menino Brás Cubas, de
Machado de Assis, reposicionando-a num nível inédito de violência. Já o avô, suicida frustrado, decepara
parte do braço e matara a própria esposa depois de ver quatro de seus filhos serem vendidos em plena
vigência da Lei do Ventre Livre… Essas histórias surgem desgarradas umas das outras, e vão sendo
evocadas em meio aos hiatos de racionalidade da protagonista. Formam, todavia, uma rede discursiva pela
qual se recupera a memória de uma dor que é física e moral, individual e coletiva. E o corpo feito de
ausências de Ponciá se recupera na arte da cerâmica, reatando no barro moldado o fio da existência. A
terra, antes paliativo para a fome da menina, passa a matéria-prima para a afirmação da mulher. Ao final,
o desterro na cidade grande se ameniza no reencontro com a mãe e o irmão, que parece pôr fim à errância
sofrida da personagem.

Herdeira da memória familiar, Ponciá Vicêncio segue os passos de Conceição Evaristo,
também esta herdeira de uma forte linhagem memorialística existente na literatura
afro-brasileira. Como Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus, Conceição
traz a narrativa dos despojados da liberdade, mas não da consciência. E a repetição
insistente dessa presença desvalida nos incomoda e nos diz de uma aurora ainda
à espera do sol… A fala diaspórica desses condenados da terra se articula de
forma sincrônica e a posteriori, desconhecendo a encarnação do espírito de nacionali-dade
que marca boa parte da literatura canônica.

A força e o poder das mulheres ficam também evidenciados no romance, mesmo
quando há uma aparente fraqueza ou mesmo quando as mulheres sofrem até um visível
domínio, como no caso de Biliza, nas mãos do cafetão. Só a eliminação física de
Biliza acaba com os sonhos e a determinação da moça. O pai de Ponciá, mesmo resmungando,
tinha suas ações orientadas pela mãe de Ponciá. Nêngua Kainda, uma velha mulher,
era a consciência do grupo. O romance destaca as dores, as angústias, as violências
que as mulheres sofrem, a solidão que elas enfrentam, mas ao mesmo tempo mostra
essas mulheres em busca da vida, exibe o eterno ato de se reconstruir que elas
executam no dia-a-dia.

Fonte parcial: Prof. Eduardo de Assis Duarte, Universidade Federal de Minas Gerais

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