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Por trás dos vidros, de Modesto Carone

by Lucas Gomes

A obra Por trás dos vidros, publicado em 2007, traz 49 contos
de Modesto Carone. O livro oferece um plano geral da produção
de Carone no campo da ficção. Aos contos retirados de três
trabalhos anteriores – As marcas do real (1979), Aos pés
de Matilda
(1980) e Dias melhores (1984), foram acrescidos textos
publicados nos últimos anos de forma esparsa em jornais e revistas. O
agrupamento de narrativas escritas em diferentes épocas não chega
a tornar o livro inorgânico, sobretudo porque há uma marca que
atravessa suas 208 páginas e justifica a feliz escolha do título:
o olhar oblíquo, “por trás dos vidros” que a tudo
filtram (ou deformam).

Todos os contos são caracterizados por problematizar a falta de sentido.
Foram escritos com linguagem clara que propõe comunicação
com o leitor. Mas são enredos que têm a finalidade de provocar
estranheza. E podem provocar estranheza no público receptor por que tratam
de situações que podem ter tudo, menos sentido.

A morte está muito presente nos contos de Por trás dos vidros.
Segundo o autor, “ela (a morte) é o estágio terminal da violência
urbana, e de acordo com a psicanálise, que entende do assunto, o homem
tem três noivas: a mãe, a esposa e a morte. É possível
que eu esteja noivando pela última vez, mas isso não significa
que esse noivado seja breve. Montaigne dizia que filosofar é aprender
a morrer.”

Nos breves contos de Carone, os movimentos são introspectivos. Seus
personagens detêm-se no detalhe, na avassaladora tensão interna
que precede cada ato, nas potências misteriosas que regem os acontecimentos.
Quase sempre é uma imagem externa que aciona o gatilho. Ao visitar o
local em que passou a infância, o protagonista de Passagem de ano
entre dois jardins
sente os tempos do presente e da memória acasalarem-se
e, numa epifania, infere que “é inaceitável se aprender
a morrer”. O jovem apaixonado de À margem do rio experimenta
a dor do primeiro luto quando vê a bailarina do circo, dona de seus afetos,
partir. Em Bens familiares, o homem não aguenta o desacerto
das batidas do carrilhão que costuma lhe fazer companhia nas horas mortas
– “um engasgo passou a substituir o intervalo entre as badaladas”
– e o destrói. O viés simbólico é evidente.

Em vários textos, como Subúrbio, Dias melhores,
Rito sumário e Fim de caso, Carone vale-se também
do recurso da numeração. Ao promover o ordenamento formal de enredos
essencialmente insólitos, o autor ajuda a cristalizar o conflito que
assalta seus personagens, cindidos entre a ‘normalidade’ externa
e a ‘subversão’ interna. Esse duplo aparece ainda mais nítido
em O cúmplice. O conto relata a agonia do indivíduo que
evita o seu ‘outro’ por uma razão prosaica: o dente podre
e dolorido. Quando enfim consegue livrar-se daquele que o persegue, ele nota
que sumiu também o incômodo dentro da boca. Mas logo reitera a
desconfiança de um rápido retorno, como se o soubesse inevitável:
“Quem convive com os seres da sombra sabe muito bem que eles se apegam
à vida assim que nós os tornamos necessários”.

Em alguns textos, Carone não resiste a explicitar uma ‘moral da
história’ e abdica da penumbra que paira sobre a maior parte da
obra. O caso de As faces do inimigo é exemplar. O protagonista
passa as tardes vigiando de forma minuciosa os pêlos que crescem, à
revelia, ao longo de seu corpo. A tarefa é árdua, já que
a multiplicação ocorre rapidamente, “os espécimes
rebeldes proliferam, a conta de luz, por causa dos refletores, sobe sem parar”
e, além de tudo, é preciso repor as pinças. De lúdica,
a empreitada torna-se exasperadora. Mas a promissora trama desmancha-se no artifício
de uma frase ‘conclusiva’: “Ocorreu-me então, daquele
rosto abismado, que muito pouco se pode fazer contra as manifestações
espontâneas”.

Embora destoem, esses pequenos desvios não chegam a fazer malograr o
livro, que culmina no belíssimo Utopia do jardim-de-inverno.
No conto, o narrador contempla a extrema morosidade com que a natureza se transforma,
tentando esquadrinhar “o mundo complicado” de uma estufa. “Todas
as vezes que eu entro no jardim-de-inverno alguma novidade me espera. Não
que lá aconteçam coisas excepcionais – a não ser
para os olhos habituados ao trato maleável com as nuances”, anota
ele. De certo modo, essa espera sem pressa por “sinais aparentemente insignificantes,
como trocas discretas de posições e arranjos que a vista destreinada
não distingue”, reencena a busca de Carone em Por trás
dos vidros
: enxergar as luzes mais inusitadas, flagrar os meneios mais
perturbadores – ainda que sem decifrá-los.

Na ficção de Carone o limite entre o que pode ser sonho, delírio
e ação é frágil. De repente, um personagem encontra
um cadáver enforcado dentro do guarda-roupa. Outra voz, em outro texto,
sugere: “Como as imagens poéticas não mudam o mundo,
dei a partida e fui para casa aliviado por não pensar em mais nada
“.
Personagens, outros, entorpecidos pela realidade, buscam inéditas Pasárgadas.
Numa aleatória página do livro se lê: “Órbitas
acesas como pedras de carvão
“. Um personagem tem a mão
decepada. Outro tem a convicção de que determinado mês é
feito somente a partir de crueldades. Um terceiro busca refúgio dentro
de uma caixa d’água. Um quarto mata, literalmente, o pai. E sombras acompanham
os personagens caronianos – da mesma forma que fazem companhia a humanos da
realidade real.

Os destinos dos personagens caronianos não têm sentido. Seja
o personagem que quase consegue ter uma relação com uma bailarina.
Seja o personagem que não sabe em que cidade está e sequer pode
precisar se sonha ou está acordado. Seja o sujeito que depois de ser
assaltado decide beber café e não pensar em nada. Seja o burocrata
que não vê saídas no labirinto em que está enredado,
preso e engessado. Seja o escritor em crise de criação e de relacionamento.
A falta de sentido é elemento comum entre esses e os demais personagens
caronianos.

Supostos absurdos inesperados estão distribuídos em meio às
páginas de Por trás dos vidros, mas surpresas imprevisíveis
e fatais acontecem desde sempre e desde muito, e não foi assim com aqueles
que embarcaram em caravelas navegando em águas nunca antes navegadas?

TRECHOS – Por trás dos vidros

É tarde, a chuva bate nos vidros, ele está sentado num canto
da sala. Talvez apóie o rosto numa das mãos ou cruze as pernas
mas não se percebe nenhum movimento. A obscuridade é maior porque
as cortinas estão descidas e a luz só filtra por algumas frestas.
Não é possível registrar nada com nitidez, ele está
parado ou parece parado na poltrona do canto da sala.
(do conto O Natal do viúvo)

Pelas vidraças da casa de chá posso ver a fachada maciça
da estação de ferro. As cúpulas de cobre estão fora
de foco porque a temperatura baixou e o nevoeiro gelado começou a descer.
A praça é oval, o pavimento de pedra brilha sob um reflexo instável
e o relógio da estação está marcando quatro e meia.
É inevitável que daqui a pouco ele soe claro como uma caixa de
música holandesa.
(do conto Por trás dos vidros)

Contar é o método mais eficiente que consegui desenvolver para
impedir a manifestação dos urros; tanto que eles emudecem assim
que o cortejo dos números parte do cérebro para a boca. O avanço
é decisivo em primeiro lugar porque desmente a versão de que sou
um idiota capaz de pensar; em segundo porque é desse modo que concilio
o sono.
(do conto Desentranhado de Schreber)

Surpreendi o esquilo na escrivaninha quando me sentei para responder a uma
carta de pêsames. Embora esse tipo de obrigação me incomode,
naquele momento meu limiar de resistência tinha chegado a um nível
razoável. Foi estimulado por ele que resolvi dedicar uma parte da manhã
à expressão dos meus sentimentos.
(do conto Corte)

Desde que descobri o cadáver do enforcado no meu guarda-roupa passei
a me vestir com mais cuidado. Antes bastava que uma calça ou camisa cobrisse
o corpo para que eu as considerasse adequadas.
(do conto O espantalho)

Créditos: Marcio Renato dos Santos, Curitiba – PR | Suplemento
Prosa & Verso (Jornal O Globo) | Rogério Pereira,
Curitiba – PR

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