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Projeto que cria cotas raciais nas universidades federais pode ser ruinoso

by Lucas Gomes

Nas próximas semanas, deverá ser votado no Senado um projeto
que, já aprovado na Câmara dos Deputados, implanta o sistema de
cotas raciais nas 55 universidades federais brasileiras. Essas instituições
ficarão obrigadas a reservar 50% de suas vagas para alunos egressos de
escolas públicas.

Dentro desse universo de cotistas, negros, pardos e índios serão
os principais beneficiados: terão garantido um número de vagas
proporcional à sua representação demográfica em
cada estado.

O projeto visa a ampliar a presença desses grupos étnicos e raciais
no ensino superior. O objetivo é justo. Negros, pardos e índios,
em especial os mais pobres, têm pouca ou nenhuma chance de se equiparar
social e economicamente aos brancos sem que se lhes abram maiores oportunidades
na vida. Mas essa questão é complexa e não se esgota em
sua justeza. Há fortes razões para acreditar que transformar o
projeto em lei da maneira como ele chegou ao Senado, vindo da Câmara dos
Deputados, pode ser contraproducente, ilógico e ruinoso para todos os
brasileiros, inclusive e principalmente aqueles que o texto da lei visa a beneficiar.

1. O papel das universidades é reparar injustiças? A primeira e mais grave reflexão a fazer é se
o papel das universidades federais deve passar a ser o de reparar injustiças
históricas. Se for isso, há que ter em mente que se trata
de uma mudança radical. As universidades existiram desde sempre para
produzir conhecimento. A produção de conhecimento de qualidade
só é possível em ambientes de porta de entrada estreita
e com rígido regime de mérito. É o contrário
do que propõe o sistema de cotas em votação no Senado.
Se ele for aprovado, metade dos calouros terá acesso à universidade
usando como passaporte de entrada o vago e cientificamente desacreditado
conceito de raça. Adeus ao mérito individual. Com ele se despedem
também a produção de conhecimento e o avanço
acadêmico. Deve haver formas menos destruidoras de reparar injustiças
históricas.
2. Já houve experiências com cotas no Brasil? A experiência com cotas no ensino superior começou no Brasil
em 2002, quando a Universidade do Estado do Rio de Janeiro as instituiu
pela primeira vez no país. Outras oitenta faculdades fizeram o mesmo,
com modelos variados. Nenhuma dessas experiências tem resultados positivos
conclusivos e tampouco unanimidade quanto a sua constitucionalidade. Ainda
neste ano, o Supremo Tribunal Federal deve julgar a validade de dois desses
modelos. A novidade do projeto que tramita no Senado é que ele pretende
institucionalizar as cotas. A ideia conta com forte apoio oficial e, felizmente,
com a oposição de muitas lideranças negras do país
que enxergam no favorecimento das cotas um risco para todos. Como é
de praxe quando se contraria uma decisão oficial do governo, a retaliação
é automática. Diz Leão Alves, do movimento Nação
Mestiça: “Não apoiar as cotas, como é o meu caso,
significa abrir mão de financiamentos e cargos públicos”.
3. Qual o critério para a limitação de 50%
das cotas?
A contaminação ideológica do projeto é seu
ponto fraco. Por qual critério se chegou ao porcentual de 50% das
vagas das universidades federais para cotistas? Segundo o ministro Edson
Santos, da Secretaria da Igualdade Racial (Seppir), pelo critério
da “sensibilidade”. Acontece que, para preencher todas essas vagas,
será necessário admitir alunos classificados entre os piores
no vestibular. O matemático Renato Pedrosa, um dos coordenadores
do vestibular da Unicamp, fez simulações com base na lei e
concluiu: “Cotistas entrariam com notas até 25% mais baixas
do que os aprovados apenas pelo mérito e não conseguiriam
ter um bom desempenho ao longo do curso”. Outro efeito da pressão
das ONGs negras é que um mecanismo para beneficiar candidatos de
baixa renda só foi incorporado ao projeto na última hora,
e quase como um remendo. A redação da lei deixa no ar muitas
dúvidas, entre as quais se um branco pobre saído da escola
pública poderá se beneficiar das cotas.
4. O modelo racial é melhor que o econômico? Estabelecer cotas pelo critério econômico, que leve em conta
também o mérito, é uma saída que tem sido estudada.
O próprio ministro da Educação, Fernando Haddad, hoje
defensor das cotas raciais, já afirmou preferir as cotas para os
pobres. Em teoria, esse modelo seria menos problemático do que aquele
que gira em torno de raça – mais, especificamente, no favorecimento
oficial de um grupo racial em detrimento de outro. Diz o sociólogo
Demétrio Magnoli: “Políticas baseadas na raça
são a negação do princípio fundador da democracia,
segundo o qual as oportunidades das pessoas estão em aberto – e não
pre-determinadas por suas origens”. Algumas das maiores e mais vergonhosas
tragédias da história foram plantadas, cultivadas e colhidas
pelo ódio racial produzido por políticas públicas racistas
– a escravidão, o holocausto e o apartheid. É ingênuo
pensar que o progresso social se acelera quando o estado inverte o sinal
de modo que um grupo racial historicamente derrotado possa, finalmente,
triunfar sobre seus algozes. Isso produz mais ódio.
5. O Estado deve promover divisões raciais? A experiência histórica mais formidável no campo da
convivência racial sob o regime da lei vem dos Estados Unidos, em
especial das decisões emanadas da Suprema Corte. A ênfase das
melhores decisões da Suprema Corte americana sobre essa questão
foi colocada no abrandamento das tensões raciais pela produção
de leis justas para todos os cidadãos, sem distinção.
“A imagem da Justiça tem os olhos vendados. Sua filha, a lei,
não pode distinguir cor”, resumiu o juiz John Marshall Harlan
(1833-1911). Mas não existe racismo nos Estados Unidos? Existe, e
ele é forte mesmo com a presença do negro Barack Obama na
Casa Branca. O que não existe nos EUA e não deveria haver
no Brasil é o acirramento do ódio e das divisões raciais
patrocinado pelo estado. Adverte o sociólogo Simon Schwartzman: “O
que deveria ser uma discussão racional sobre o sistema de ensino
no Brasil tornou-se um debate passional e ideológico”.
6. O estado deve legislar sobra raças? Estabelecer direitos distintos com base na cor da pele, como prevê
o atual projeto, significa dar amparo legal à ideia de que negros
e brancos devem ser tratados diferentemente – em oposição
ao que diz a própria Constituição brasileira. É
uma armadilha. À guisa de reparar uma injustiça coletiva histórica
e socialmente definida, entroniza-se por lei uma discriminação
indelével que recai sobre cada indivíduo tendo como base certos
caracteres físicos que se aceitam como definidores de sua raça.
Isso equivale à oficialização do racismo. Com outras
intenções, foi essa mesma ideia absurda a base do único
regime contemporâneo erguido sobre o conceito de separação
racial, o apartheid da África do Sul, que de 1948 até ser
desmontado, em 1994, justificou a segregação entre grupos
de pessoas e a supremacia de um deles, os brancos, sobre outro, os negros.
Raça é hoje um conceito desmoralizado pela ciência,
pois podem ser medidas mais variações genéticas entre
dois indivíduos loiros do que entre um loiro e um negro. Raça
não é, portanto, base sólida para legislar.
7. Preferências raciais são segregacionistas? Nos Estados Unidos, país com longa experiência em ações
afirmativas, caminha-se na direção justamente oposta à
que pretende o Brasil. A Suprema Corte americana nos anos 70 julgou inconstitucionais
as cotas para negros e outras minorias. Recentemente, também considerou
inconstitucional o “bônus” nas notas que algumas universidades
instituíram para ajudar no ingresso dos estudantes negros. Resumiu
o juiz Anthony Kennedy em um voto sobre as ações afirmativas:
“Preferências raciais, quando corroboradas pelo estado, podem
ser a mais segregacionista das políticas, com o potencial de destruir
a confiança na Constituição e na ideia de igualdade”.
Incentivados a responder sobre a própria cor no último censo
escolar, 65% dos alunos brasileiros deixaram a questão em branco.
A maioria dos brasileiros também não se define com base na
raça. Conclui a antropóloga Yvonne Maggie: “A luta contra
o racismo consiste em destruir essa identidade racial – e não em
reforçá-la”. Impor cotas raciais por lei pode ir contra
o bom senso e contra a realidade brasileira, acirrando divisões apenas
embrionárias na sociedade.
8. Quem tem direito à cota? A biologia do ensino médio explica que o biótipo (carga
genética) não tem manifestação completa e automática
sobre o fenótipo (aparência). Isso significa que pessoas de
ancestralidade negra podem parecer menos negras do que alguns brancos com
um “pé na cozinha”, como era comum no passado se referir
a brancos com algum antepassado negro na família. Na Universidade
de Brasília, uma das primeiras a implantar o sistema de cotas no
país, uma comissão foi formada com o objetivo de arbitrar,
a partir de fotografias, sobre quais candidatos se enquadravam no critério
racial a ser favorecido. Dois irmãos gêmeos idênticos,
univitelinos, tentaram o acesso – mas apenas um foi considerado negro. A
universidade decidiu, então, substituir a foto por uma entrevista.
Logo outra injustiça flagrante será produzida pelo novo sistema.
Isso é inevitável. Em todos os tempos históricos e
geográficos, o critério racial como balizador de políticas
públicas produziu favoritismo e abuso de poder. Essa maldição
foi magistralmente materializada no famoso desabafo de um funcionário
nazista exasperado com a vagueza dos critérios instituídos
para separar arianos de judeus: “Na Alemanha, judeu é quem Goebbels
(ministro da propaganda) diz que é judeu”. É previsível
que, se implantado nacionalmente no Brasil o sistema de cotas, negro será
quem o agente do estado petista disser que é negro.
9. As cotas resolvem as desigualdades sociais? Os defensores das cotas dizem que está passando da hora de reconhecer
a dívida histórica do Brasil com os descendentes de escravos.
A boa intenção esbarra na realidade, como explica o historiador
José Roberto Pinto de Góes: “Há registros de que
muitos negros, uma vez libertos, se tornaram proprietários de escravos”.
Será que o agente do estado encarregado de reparar a injustiça
histórica conseguirá saber se o candidato é descendente
de um negro que foi dono de escravos? Difícil. Antevendo essa e outras
armadilhas práticas, o projeto de cotas que chegou ao Senado recebeu
um remendo que tenta aliviar sua pesada carga de racismo com a inclusão
da pobreza entre os critérios para um brasileiro ser beneficiado
por cotas nas universidades. O projeto prevê que os contemplados,
além de negros, pardos ou índios, sejam egressos de escolas
públicas. Metade das vagas seria reservada para aqueles estudantes
de famílias de baixa renda. A intenção do remendo é
evitar que os brasileiros negros de classe média ou os alunos das
escolas públicas de elite sejam os principais beneficiados pelo novo
sistema. É um bom remendo. Mas ele só vale para 50% das vagas
sob o sistema de cotas. A lei, da maneira como chegou ao Senado, é
confusa quanto a que benefício teria direito o brasileiro branco
e pobre. O texto afirma que as vagas devem ser preenchidas por negros, pardos
e índios, “no mínimo” na proporção
em que suas etnias participam da composição da população
em cada estado. Ao usar a expressão “no mínimo”
e não se referir aos brancos, a lei abre espaço para que as
demais vagas também sejam ocupadas por negros, pardos e índios.
10. Quem o projeto beneficiará? Pelas estimativas, se aprovado como está, o projeto beneficiaria
efetivamente 75 000 brasileiros, a metade dos calouros que entra nas universidades
a cada ano. Tais vagas seriam destinadas preferencialmente a negros, pardos
e índios. Esse contingente, é de presumir – pois do contrário
não faria sentido ter cotas -, é menos preparado academicamente
do que dezenas de milhares de estudantes rejeitados pela simples razão
de terem nascido brancos e de pais que suaram a camisa para galgar um degrau
mais alto na pirâmide social brasileira. Os efeitos de longo prazo
dessa injustiça são ruinosos. Ela pune o esforço individual
e cria uma casta de “profissionais das cotas”, cuja maioria pode
até ser muito bem aceita em empregos de segunda linha, mas, certamente,
será discriminada no preenchimento de postos de trabalho mais bem
pagos e com exigências curriculares impecáveis. O projeto de
cotas não toca nesse vespeiro. E desvia a atenção de
algo bem mais relevante: o fato de que a encrenca começa bem antes
do vestibular. Para se ter uma ideia, apenas 20% dos alunos mais pobres
concluem o ensino médio. Pior ainda: entre os que chegam à
formatura, uma minoria tem condições reais de cursar uma faculdade,
ainda que ela seja gratuita. Metade dos alunos conclui o ensino básico
sem conseguir executar as operações fundamentais da matemática
e sem entender o conteúdo de textos simples. “Não há
solução mágica para a democratização
do acesso à universidade. Isso apenas ocorrerá quando mais
e mais estudantes forem preparados para competir de igual para igual por
uma vaga”, diz Eunice Durham, especialista em ensino superior. Não
há, claro, uma maneira de fazer isso que ignore o investimento maciço
na melhoria do nível dos professores das escolas públicas
brasileiras.
11. As cotas ferem o princípio da meritocracia? Como explicar a um aluno classificado na 65ª posição
num dos vestibulares mais concorridos do país que sua vaga será
ocupada pelo milésimo colocado no mesmo concurso? É esse tipo
de distorção que ocorrerá nas universidades brasileiras,
caso as cotas sejam adotadas na proporção em que prevê
o projeto que tramita no Senado. Os números vêm de um estudo
feito pela Universidade Federal de São Paulo. O perigo é pôr
em xeque o reconhecimento ao mérito individual. Nos Estados Unidos,
onde as cotas já foram julgadas inconstitucionais, as ações
afirmativas ferem menos esse princípio. Lá, o objetivo é
garantir a diversidade: fazer com que no ambiente universitário se
encontrem pessoas não só de uma pluralidade de origens, mas
também com talentos peculiares. Com esse critério, podem ser
beneficiados candidatos negros, mas também mulheres, estrangeiros
ou esportistas. Só entra, no entanto, quem tirar boas notas. No caso
brasileiro, as cotas levam a um arremedo de diversidade. São consideradas
apenas as variáveis branco, negro, pardo e índio, além
de um indicador de renda – as qualidades do indivíduo não
são avaliadas. Tampouco está previsto mecanismo algum para
preservar a qualidade do ensino. Para preencher todas as vagas reservadas,
as universidades precisarão aprovar candidatos com notas baixas.
Para os que são preteridos, como o estudante gaúcho Getúlio
Ost, 18 anos, fica a frustração. “Consegui uma boa nota
no vestibular, mas meu esforço não valeu de nada”, diz
ele, que perdeu a vaga na Universidade Federal do Rio Grande do Sul para
um cotista. Já para as universidades, resta um duro desafio: preservar
o nível acadêmico dos cursos.
12. O que aconteceu nos países em que as ações
afirmativas foram adotadas?
O maior estudo internacional já feito sobre o efeito das cotas,
conduzido pelo economista americano Thomas Sowell, da Universidade Stanford,
mostra que é incorreto atribuir às ações afirmativas
o progresso dos grupos beneficiados. Nos Estados Unidos, os números
revelam que grande parte dos negros ascendeu justamente no período
anterior às cotas. Depois delas, o que se viu foi a melhora na renda
do grupo reduzido de classe média negra que já vinha avançando.
Para os 20% dos negros americanos mais pobres, ocorreu o contrário.
A renda até caiu. Outro problema recorrente é que, embora
surjam como políticas provisórias, as cotas acabam sempre
prorrogadas por longos períodos. Na Índia, a reserva de empregos
e de vagas na universidade para castas discriminadas foi implantada em 1949.
Era para durar dez anos, mas existe até hoje. A razão para
a persistência da medida é simples: ninguém quer arcar
com o custo político de eliminar o benefício. Ao contrário.
Ele é até ampliado. Isso já ocorre no Brasil. A Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, que começou com cotas para negros de
escola pública, atualmente também reserva vagas para índios,
deficientes e filhos de bombeiros mortos em serviço. A Universidade
Federal de São Carlos já reserva vagas até para refugiados
políticos.

Fonte: Revista VEJA

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