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Quem Tem Farelos?, de Gil Vicente

by Lucas Gomes

A farsa Quem tem farelos?, composta por Gil Vicente nos fins de 1508, princípios de 1509,
é uma peça de crítica social e conta a história de um escudeiro em decadência. O escudeiro e seus
criados passam agruras tão terríveis que chegam mesmo a ficar esfomeados, e daí o título da peça,
Quem tem farelos?, aludindo ao tom esfarrapado e grosseiro das necessidades dos personagens,
que entre outros dilemas, têm os de uns cães e uns gatos ficarem latindo e miando o tempo todo.

Em Quem tem farelos?, como em todas as farsas, Gil Vicente faz uma crítica
contundente a todas as classes sociais de seu tempo, desde a nobreza até o povo,
passando pelo clero. Dessa crítica, que não perdoa nenhum segmento da pirâmide
social, só escapa o camponês, que era o sustentáculo de todo o resto. Esse tipo
de crítica social já apresenta traços do momento histórico que rompeu com a cultura
medieval: o Renascimento.

Conforme já citado, é uma obra de crítica social em que Gil Vicente
se serve, pela primeira vez, do Português na feitura de um auto – estrutura-se
na relação de poder amo / criados, estes últimos normalmente cúmplices dos desvairados
amores de seus amos.

A ação recheada de personagens-tipo (escudeiro, criado, velha e filho) estratificadas
socialmente – identificáveis pelo vestuário, pela linguagem e pelos gestos – decorre
num só dia (manhã, noite, madrugada) e aponta para a sua ocorrência no princípio
do Verão, precisamente quando há farelos no mercado. Contudo, as personagens por
ele criadas não se sobressaem como indivíduos. São sobretudo tipos que ilustram
a sociedade da época, com suas aspirações, seus vícios e seus dramas. Esses tipos
utilizados por Gil Vicente raramente aparecem identificados pelo nome. Quase sempre,
são designados pela ocupação que exercem ou por algum outro traço social (sapateiro,
onzeneiro, ama, clérico, frade, bispo, alcoviteira etc.).

Ainda com relação aos personagens pode-se dizer que eles são simbólicos, ou seja,
simbolizam vários comportamentos humanos.

Os membros da Igreja são alvo constante da crítica vicentina. É importante observar,
no entanto, que o espírito religioso presente na formação do autor, jamais critica as
instituições, os dogmas ou hierarquias da religião, e sim os indivíduos que as
corrompem.

Acreditando na função moralizadora do teatro, colocou em cenas fatos e situações que
revelam a degradação dos costumes, a imoralidade dos frades, a corrupção no seio da família,
a imperícia dos médicos, as práticas de feitiçaria, o abandono do campo para se entregar às
aventuras do mar.

A linguagem é o veículo que Gil Vicente melhor explora para conseguir efeitos cômicos
ou poéticos. Escritas sempre em versos, as peças incorporam trocadilhos, ditos populares e
expressões típicas de cada classe social. Nada escapa à perspicácia do olhar vicentino – nem
a vaidade e a futilidade da menina da época:

Ir amiúde ao espelho
e poer do branco e do vermelho,
e outras coisas que eu sei;
pentear, cuidar de mi
e poer a ceja em dereito;
e morder por meu proveito
estes beicinhos, assi.

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