Home EstudosSala de AulaHistoria A Questão Coimbrã

A Questão Coimbrã

by Lucas Gomes


Antero de Quental chefiava
um dos lados da questão

Em 1865, após a longa crise da implantação do liberalismo em Portugal e sua adaptação à estrutura histórica do país, o Romantismo português propriamente dito já tinha dado quanto dele se podia esperar. Depois da morte de Almeida Garrett – intuição superior, descobridora de todos os elementos essenciais do gênio lusitano –, a insurgência inerente ao movimento romântico personificara-se em Alexandre Herculano, cuja obra foi a primeira tentativa de uma história crítica de Portugal. Mas a rebeldia por ele representada desapareceu com a sua retirada para Vale de Lobos. Ficou então Castilho, ao redor do qual se agruparam em Lisboa as hostes ultra-românticas.

Castilho, porém, era exatamente o contrário de um rebelde. Grande purista, mestre do idioma, dotado de escassa imaginação criadora, nunca fora realmente romântico, embora seja em regra mencionado como terceiro mentor do movimento. Formado na dissolução do neoclassicismo arcádico, que nunca abandonou, encarnava uma peculiar adaptação das formas externas do Romantismo a um espírito pseudo-clássico. Fórmula esta que chegara nessa altura a entronizar-se como gosto oficial do constitucionalismo. Era ele por isso, o obstáculo com que havia de tropeçar a nova rebeldia da geração intelectual que por volta de 1865 estava se formando em Coimbra.

Esta geração já desde 1861 vinha dando provas de sua tendência para a rebeldia à disciplina universitária com ruisosos tumultos, irreverências e revoltas – que indicavam claramente a inconformidade da juventude acadêmica com os valores oficiais da sociedade em que vivia. A chamada Questão Coimbrã ou do “Bom senso e Bom gosto” foi a primeira manifestação importante dessa mocidade, conhecida hoje nos manuais pelos nomes de Geração, Escola ou Dissidência de Coimbra e também Geração de 70, e que, com a adição de novos elementos afins, havia de realizar novas demonstrações dos seus intuitos reformistas na vida pública nacional.

Com a famosa Questão Coimbrã pode-se dizer que se iniciou o espírito contemporâneo nas letras portuguesas. Com ela entraram em conflito aberto o novo espírito cientifico europeu e o velho sentimentalismo, domesticado e retoricizado, do Ultra-Romantismo vernáculo. O novo lirismo que aparecia, social, humanitário e crítico, não se alçava apenas contra a tirania do gosto literário vigente, exercida por Castilho – que esses rapazes apelidaram de “árcade póstumo” – mas também, e de modo mais vasto, contra todos os conceitos políticos, históricos e filosóficos que ele e os seus satélites literários simbolizavam.

À duas personalidades muito diferentes coube a chefia visível do fermento coimbrão de revolta: Antero de Quental (ilustração acima), o Príncipe da Mocidade, que já se dera a conhecer como poeta com várias obras (Sonetos, 1861, Beatrice, 1863, Fiat Lux, 1863, e Odes Modernas, 1865) em que tentava harmonizar uma inspiração sinceramente romântica com o espírito científico, e Teófilo Braga, que também tinha aparecido no mundo das letras com dois poemas cíclicos de padrão huguesco (Visão dos Tempos e Tempestades Sonoras, 1864).

O motivo da Questão foi aparentemente trivial. Nesse ano de 1865, Pinheiro Chagas, um dos jovens corifeus da roda lisboeta do cego patriarca literário, publicara o Poema da Mocidade, ingênua biografia lírica em quatro cantos, típica do saudosismo ultra-romântico. Castilho, na célebre carta-posfácio dirigida ao editor do livro, na qual, entre grandes elogios, indigitava o jovem poeta para uma cadeira de Literatura, introduziu incidentalmente referências ironicamente adversas a Antero e a Teófilo, aludindo aos altos rumos metafísicos da poesia dos dois mancebos. A resposta não se fez esperar, tanto pelo caráter direto do ataque como pelo desejo de polêmica dos novos, impacientes por afirmar em público a sua insubmissão iconoclasta e por medir forças com o inimigo. Antero lançou um opúsculo, intitulado Bom-Senso e Bom-Gosto (1865) – as duas virtudes que Castilho negara aos dois porta-estandartes dos acadêmicos coimbrões –, no qual, com altiva ironia e com violentíssimos e sarcásticos desacatos, respondia ao venerando pontífice das letras oficiais. Os sequazes de Castilho treplicaram com aparatoso alarde de forças. A batalha estava travada. Os folhetos começaram a chover de um e de outro lado. Quental arremeteu com novo opúsculo, nesse mesmo ano, sob o título A Dignidade das Letras e as Literaturas oficiais. Pela sua parte, Teófilo replicou ao déspota do purismo e do léxicon com outro panfleto, Teocracias Literárias (1866).

O velho árcade não deixou de ter defensores ilustres. Um deles foi Ramalho Ortigão, que mais tarde se integrou plenamente no grupo de Coimbra, mas que nesta altura saiu à luta como paladino de Castilho em Literatura de Hoje (1866), repreendendo Antero com ásperos adjetivos pelo seu desrespeito – o que provocou um duelo entre ambos. Note-se, porém, que nesse folheto Ramalho marcou uma atitude de independência, criticando também a fuga de Castilho à luta das idéias.

Outro combatente das hostes de Castilho foi Camilo, que, em Vaidades irritadas e irritantes (1866 ), com o seu temível sarcasmo polêmico, veio atacar a nova geração, – que lhe haveria de dar motivo para ulteriores refregas. Os panfletos saíram às dezenas, e derivavam mais e mais para o terreno das diatribes pessoais. A refrega entre os epígonos do Romantismo velho que agonizava e a juvenil rebelião do Realismo novo que despontava para a vida prolongou-se pelo ano de 1866.

A Questão, embora aparentemente literária, denunciava incompatibilidades mais profundas. Os jovens universitários de 1865 reagiam contra a falsidade que representavam muitos outros aspectos da vida nacional, produto da adaptação das formas alienígenas do liberalismo à velha estrutura tradicional do País. A revolta da mocidade coimbrã havia de eclodir num movimento político, filosófico e literário, cuja amplitude ultrapassou talvez a do próprio Romantismo. Este grupo que se sublevou contra Castilho era o mesmo que, acrescido de personalidades com tendências paralelas, havia de tratar, em 1871, nas Conferências Democráticas do Casino, de colocar Portugal a par da atualidade européia, ligando-o com o movimento moderno, estudando as condições de transformação política, econômica e religiosa da sociedade portuguesa.

Eça de Queirós dá uma boa idéia da ânsia de renovação cultural dos estudantes universitários nessa época ao lembrar a ardente e fantástica Coimbra do seu tempo: “Pelos Caminhos de Ferro que tinham aberto a Península, rompiam cada dia, descendo da França e da Alemanha (através da França), torrentes de coisas novas, idéias, sistemas, estéticas, formas, sentimentos, interesses humanitários. Cada manhã trazia a sua revelação, como um sol que fosse novo. Era Michelet que surgia, e Hegel, e Vico, e Proudhon; e Hugo tornado profeta e justiceiro dos Reis; e Balzac com o seu mundo perverso e lânguido; e Goethe, vasto como um universo; e Poe, e Heine, e creio que já Darwin, e quantos outros! Naquela geração nervosa, sensível e pálida como a de Musset (por ter sido talvez como essa concebida durante as guerras civis) todas estas maravilhas caíam à maneira de achas numa fogueira, fazendo uma vasta crepitação e uma vasta fumarada !”. “Quando o fumo [da Questão] se dissipou” – conta Antero, na sua Carta a W Storck –, “o que se viu mais claramente foi que havia em Portugal um grupo de 16 ou 20 rapazes, que não queriam saber nem da Academia nem dos Acadêmicos, que já não eram católicos nem monárquicos, que falavam de Goethe e Hegel como os velhos tinham falado de Chateaubriand e de Cousin; e de Michelet e Proudhon como os outros de Guizot e Bastiat; que citavam nomes bárbaros e ciências desconhecidas, como glótica, filologia, etc.; que inspiravam talvez pouca confiança pela petulância e pela irreverência, mas que, inquestionavelmente, tinham talento e estavam de boa fé, e que, em suma, havia a esperar deles alguma coisa, quando assentassem. Os fatos confirmaram esta impressão; os dez ou doze primeiros nomes da literatura de hoje saíram (salvo dois ou três) da Escola Coimbrã, ou da influência dela“.

Hoje essa geração surgida à vida pública na famosa Questão é uma das mais brilhantes que a cultura portuguesa produziu em qualquer época. O caráter regenerador e de revisão de valores, o desejo de reforma do estilo da vida e da literatura do país, o europeísmo cultural, a preocupação com as raízes históricas da decadência, fazem dela um antecedente da grande geração espanhola de 98, que lhe é devedora em muitos aspectos fundamentais.

 Fonte: Guerra da Cal, Ernesto, Dicionário de Literatura

Posts Relacionados