Home EstudosSala de AulaPortuguês Estilos Literários: 03. Regionalismo

Estilos Literários: 03. Regionalismo

by Lucas Gomes


Casa Grande e terreiro do antigo Engenho Corredor, onde
nasceu em junho de 1901 o escritor paraibano José Lins
do Rego

A literatura regionalista, intencionalmente ou não, traduz peculiaridades locais, expressando os traços do momento histórico e da realidade social; nela, o local é abordado com amplitude, podendo-se falar tanto de um regionalismo urbano quanto de um regionalismo rural.

A grande tendência da literatura regionalista é apresentar a tensão entre idílio e realismo, entre nação e região, oralidade e letra, campo e cidade, entre a visão nostálgica do passado e a denúncia das misérias do presente. O descritivismo pictorial faz alusão a imagens através de sonoridade, ritmo e modo de falar dos personagens; aqui se encontra em prática “a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens” (Calvino, 1998).

É dessa visibilidade proposta por Calvino que surge a questão do imaginário – ato da consciência como modo de perceber o mundo que está ao seu redor, o ambiente de convívio (Iser, 1996), que é assim transposto da mente do autor para o papel. Para Chiappini,

Em qualquer dos casos, o grande escritor regionalista é aquele que sabe nomear; que sabe o nome exato das árvores, flores, pássaros, rios e montanhas. Mas a região descrita ou aludida não é apenas um lugar fisicamente localizável no mapa do país. O mundo narrado não se localiza necessariamente em uma determinada região geograficamente reconhecível, supondo muito mais um compromisso entre referência geográfica e geografia ficcional. (Chiappini, p.9, 1995)

O regionalismo tem uma tradição de quase 150 anos na literatura brasileira. Surgiu em meados do século 19, nas obras de José de Alencar, de Bernardo Guimarães, de Alfredo d’Escragnole Taunay e de Franklin Távora e pode-se dizer que há textos de cunho regionalista em nossa literatura até o final do século 20.

Pode-se dizer que as obras do século 20 são os grandes textos do regionalismo no Brasil. Entretanto, para se chegar a expoentes como José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo e Guimarães Rosa, o gênero percorreu um grande caminho, cujas raízes estão na época do romantismo, como foi o caso da obra de José de Alencar.

Em primeiro lugar cabe esclarecer que, por regionalismo, entende-se a literatura que põe o seu foco em determinada região do Brasil, visando retratá-la, de maneira mais superficial ou mais profunda. Os primeiros autores do gênero não focalizavam propriamente uma região, no sentido geográfico, não visavam mostrar a vida no sertão do Nordeste, ou de São Paulo ou do Rio Grande do Sul.

Escritores sertanistas

Chama-se de autores de sertanistas aqueles cujo foco está no sertão, por oposição à cidade, à Corte, ao Rio de Janeiro, a única localidade com características efetivamente urbanas no Brasil do século 19. Focalizar o homem do sertão era uma forma de ir além do indianismo que, surgido na década de 1830 como forma de afirmação da nacionalidade, já se esgotara nas décadas de 1860 e 1870.

O sertanejo torna-se então o símbolo do autêntico brasileiro, alheio às influências da Europa, abundantes na sociedade fluminense. É nesse sentido que ele irá protagonizar os romances de Bernardo Guimarães, Taunay e Franklin Távora, constituindo uma metamorfose do “bom selvagem” que o Peri (personagem central O Guarani) ou Ubirajara haviam personificado nos romances de Alencar anteriormente. Do que já se deduz que o sertanejo romântico também padece de uma idealização heróica que o afasta da realidade.

Além disso, os romances sertanistas são marcados por um “pequeno realismo”, como afirma o estudioso Nelson Werneck Sodré, que está preocupado em retratar as minúcias do vestuário, da linguagem, dos costumes, das paisagens e em valorizar o caráter exótico e grandioso da natureza brasileira. Nesse pano de fundo, decorrem os enredos marcados por amores, aventuras e peripécias como mandava o figurino da literatura romântica.

Bernardo Guimarães

Desde seu primeiro livro O Ermitão de Muquém, o autor deixa claro seu autor de documentar uma realidade, como revela o subtítulo do romance: “História da Fundação da Romaria de Muquém na Província de Goiás”. Mas voltamos a ressalvar: trata-se daquela documentação superficial, mais atenta ao que se vê e não ao que está por trás das aparências.

Suas obras mais conhecidas devem seu sucesso principalmente ao tema que abordam, segundo o crítico literário Alfredo Bosi. Ele se refere a O Seminarista, que critica o celibato clerical, e A Escrava Isaura, que critica a escravidão. É importante ressaltar, porém, que se trata de uma crítica tardia, surgida quando boa parte da sociedade brasileira já aderira à causa abolicionista. Além disso, não se pode deixar de lembrar que a personagem é uma escrava branca, pois seria inconcebível ao Brasil daquela época que uma negra protagonizasse um romance.

Apesar disso tudo, não se pode deixar de dizer que o enredo de A Escrava Isaura tem força e apelo, tanto que se transformou em novela exibida pela Globo em 1976/77 e fez sucesso não só no Brasil, mas em diversos outros países nos quais foi exibida, em particular em Cuba e na China, onde a atriz Lucélia Santos, que fazia o papel de Isaura, tornou-se uma celebridade. Além disso, voltou à telinha em 2004, numa novela da TV Record.

Visconde de Taunay

Segundo Alfredo Bosi, “por seu temperamento e cultura, o Visconde de Taunay tinha condições de dar ao regionalismo sua versão mais sóbria. Homem de pouca fantasia, muito senso de observação, formado no hábito de pesar com a inteligência as suas relações com a paisagem e o meio (era engenheiro, militar e pintor), Taunay foi capaz de enquadrar a história de Inocência (1872) em um cenário e em um conjunto de costumes sertanejos onde tudo é verossímil. Sem que o cuidado de o ser turve a atmosfera agreste e idílica que até hoje dá um renovado encanto à leitura”.

De fato, Inocência é uma pequena obra-prima, com um enredo que também é capaz de seduzir o público de várias épocas. Tanto é que também chegou às telas do cinema em 1982, com direção de Walter Lima Jr. e a atriz Fernanda Torres no papel da personagem principal. O enredo gira em torno de o casamento de Inocência ter sido acertado pelo pai da moça, que, no entanto, se apaixona por um outro homem.

Franklin Távora

O cearense Franklin Távora é o primeiro a tentar fazer do regionalismo um movimento, escrevendo um manifesto e apresentando um projeto no prefácio de seu romance O Cabeleira. O romance, porém, não acompanha às pretensões do autor. É uma obra medíocre que mistura uma crônica do cangaço (o personagem-título é um cangaceiro) com os expedientes melodramáticos da pior ficção romântica.

No entanto, ele abre um ciclo em nossa literatura: são vários os romances que tematizam o cangaço e o banditismo originário das peculiaridades do Nordeste: a seca, o latifúndio, a miséria. As grandes obras nacionais sobre o cangaço, contudo, só iriam ser escritas no século 20: Cangaceiros, de José Lins do Rego, e Seara Vermelha, de Jorge Amado.

Este último, marcado por um caráter de propaganda comunista (o autor era filiado ao Partido Comunista Brasileiro, pelo qual foi deputado), apresenta o cangaceiro como um herói revolucionário, o que também é uma idealização não condizente com a realidade.

Teses sobre a Literatura Regionalista (Por Lígia Chiappini, professora titular de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP)

1. A obra literária regionalista tem sido definida como “qualquer livro que, intencionalmente ou não, traduza peculiaridades locais”, definição que alguns tentam explicitar enumerando tais peculiaridades (“costumes, crendices, superstições, modismo”) e vinculando-as a uma área do país: “regionalismo gaúcho”, “regionalismo nordestino”, “regionalismo paulista” etc. Tomado assim, amplamente, pode-se falar tanto de um regionalismo rural quanto de um regionalismo urbano. No limite, toda obra literária seria regionalista, enquanto, com maiores ou menores mediações, de modo mais ou menos explícito ou mais ou menos mascarado, expressa seu momento e lugar.

Historicamente, porém, a tendência a que se denominou regionalista em literatura vincula-se a obras que expressam regiões rurais e nelas situam suas ações e personagens, procurando expressar suas particularidades linguísticas.

2. Há quem vincule o regionalismo literário à tradição greco-latina do idílio e da pastoral. Mas é em meados do século XIX, com George Sand, na França, Walter Scott, na Inglaterra e Berthold Auerbach, na Alemanha, que essa tradição é retomada na forma de romance regionalista que, daí para a frente, começa a viver da tensão entre o idílio romântico e a representação realista, tentando progressivamente dar espaço ao homem pobre do campo, cuja voz busca concretizar
paradoxalmente pela letra, num esforço de torná-la audível ao leitor da cidade, de onde surge e para a qual se destina essa literatura. À tensão entre idílio e realismo correspondem outras constitutivas do regionalismo: entre nação e região, oralidade e a letra, campo e cidade, estória romanesca e romance; entre a visão nostálgica do passado e a denúncia das misérias do presente.

3. Regionalismo na literatura, como tema de estudo, constitui um desafio teórico, na medida em que defronta o estudioso com questões das mais candentes da teoria, da crítica e da história literárias, tais como os problemas do valor; da relação entre arte a sociedade; das relações da literatura com as ciências humanas; das literaturas canônicas e não-canônicas e das fronteiras movediças entre clãs. Estudar o regionalismo hoje nos leva a constatar seu caráter universal e moderno. Surgindo como reação ao iluminismo e à centralização do Estado-nação, hoje se reatualiza como reação à chamada globalização. Se, para um pensamento não-dialético, a chamada “aldeia global” suplantou definitivamente a “aldeia” e tudo o que dela fale e por ela se interesse, a dialética nos faz considerar que a questão regional e a defesa das particularidades locais hoje se repõem com força, quanto mais não seja como reação aos riscos de homogeneidade cultural, à destruição da natureza e às dificuldades de vida e trabalho no “paraíso neoliberal”. (Por isso o regionalismo literário hoje, em muitos países, inclusive aqui, reaparece discutindo questões de identidade problemática e de ecologia.)

4. Com a modernização das técnicas agrícolas, o êxodo rural, o desenvolvimento das cidades e de uma literatura urbana, o regionalismo tem sido visto como ultrapassado, retrógrado, localismo estreito e reacionário tanto do ponto de vista estético quanto do ideológico. Essa crítica esquece, no entanto, que ele é um fenômeno eminentemente moderno e universal, contraponto necessário da urbanização e da modernização do campo e da cidade sob o capitalismo. Por isso, continua a existir e a dar frutos como uma corrente temático-formal contraditória onde têm lugar os reacionários e os progressistas; os nostálgicos, os xenófobos mas também os inconformados com a divisão injusta do mundo entre ricos e pobres. Uma corrente que deu origem a grandes obras, como as de Faulkner, Verga, Rulfo, Carpentier, Arguedas e Guimarães Rosa.

5. Do ponto de vista dos estudos literários, o regionalismo é uma tendência temática e formal que se afirma de modo marginal à “grande literatura”, confundindo-se freqüentemente com a pedagogia, a etnologia e o folclore. Certos autores de textos de reconhecida qualidade estética não tinham intenção de ir além do testemunho, do registro de contos e lendas orais, ou, quando muito, de fazer história. É o caso, no Brasil, de um João Simões Lopes Neto ou de um Euclides da Cunha.

Os críticos costumam menosprezar o regionalismo por essa impureza, julgando-o também conservador tanto do ponto de vista estético quanto do ponto de vista ideológico. Campo minado de preconceitos, o regionalismo se presta a equívocos da crítica. Esta quando encontra um bom escritor na tendência trata de relativizar, sendo de apagar o parentesco, utilizando outra nomenclatura (a moda hoje é “sense of place”, nos Estados Unidos; já foi “super-regionalismo”
no Brasil, onde em breve será “regionalismo cósmico”, o que é previsível dado o grande prestígio do crítico Davi Arrigucci Jr. que acaba de utilizá-la também referindo-se a Guimarães Rosa num brilhante ensaio sobre Grande sertão: veredas).

6. É compreensível o esforço da crítica para excluir da tendência os grandes autores, já que nela o número de obras literariamente menos expressivas talvez seja maior que em outras, porque é proporcional ao grau de dificuldade que a especificidade da empresa do regionalismo literário implica. O argumento da crítica para assim fazer é que a qualidade literária de suas obras os elevaria do regional ao universal. Mas freqüentemente ela esquece que é o seu espaço históricogeográfico,
entranhado e vivenciado pela consciência das personagens, que permite concretizar o universal. O problema não nos parece tanto distinguir os tipos de regionalismo mas distinguir, como em qualquer tendência, as obras boas das más, esteticamente falando. Nestas, o efeito sobre os leitores será acanhado como soarão acanhados o espaço, os dramas, os caracteres, a linguagem, o pensamento e as idéias. Naquelas, necessariamente, por menor que seja a região, por mais
provinciana que seja a vida nela, haverá grandeza, o espaço se alargará no mundo e o tempo finito na eternidade, porque o beco se transfigurará no belo e o belo se exprimirá no beco.

7. Só se pode sustentar que um Faulkner ou um Guimarães Rosa são regionalistas, se entendermos que o regionalismo, como toda tendência literária, não é estático. Evolui. É histórico, enquanto atravessa e é atravessado pela história. Um escritor da literatura fantástica que escreva hoje como Poe ou como os romancistas do gótico certamente será tido como epígono, extemporâneo e démodé. Da mesma forma, um escritor regionalista que escreva hoje como George
Sand ou como Verga. O defeito não está em George Sand nem em Verga, nem na tendência regionalista, mas na falta de cultura, de esforço e de desconfiômetro” para superá-los, superando as dificuldades específicas da ficção regionalista, que eles enfrentaram cada um a seu modo, com os recursos de suas respectivas épocas.

8. É importante distinguir o regionalismo como movimento político, cultural e, mesmo, literário, das obras que decorrem deste direta ou indiretamente. Muitas vezes programa e obra mantêm uma relação tensa, quando não se contradizem abertamente, exigindo uma análise das distintas mediações que relacionam a obra literária com a realidade natural e social. O regionalismo, lido como movimento, período ou tendência fechada em si mesma num determinado período histórico
em que surgiu ou alcançou maior prestígio, é empobrecedor: um ismo entre tantos. O regionalismo lido como uma tendência mutável onde se enquadram aqueles escritores e obras que se esforçam por fazer falar o homem pobre das áreas rurais, expressando uma região para além da geografia, é uma tendência que tem suas dificuldades específicas, a maior das quais é tornar verossímil a fala do outro de classe e de cultura para um público citadino e preconceituoso que, somente por meio da arte, poderá entender o diferente como eminentemente outro e, ao mesmo tempo, respeitá-lo como um mesmo: “homem humano”.

9. O defeito que muitas vezes a crítica aponta no escritor regionalista, do pitoresco, da cor local, do descritivismo, foi a seu tempo uma dura conquista. Da mesma forma, na pintura, só depois de pintar com perfeição a figura, o pintor pode aludir a ela por traços, cores e luzes; só depois de descrever como quem pinta uma paisagem, o escritor pode indicá-la pela alusão, conseguida seja por imagens, seja pela sonoridade e ritmo, seja pelo modo de ser e de falar das personagens. Em
qualquer dos casos, o grande escritor regionalista é aquele que sabe nomear; que sabe o nome exato das árvores, flores, pássaros, rios e montanhas. Mas a região descrita ou aludida não é apenas um lugar fisicamente localizável no mapa do país. O mundo narrado não se localiza necessariamente em uma determinada região geograficamente reconhecível, supondo muito mais um compromisso entre referência geográfica e geografia ficcional.

Trata-se, portanto, de negar a visão ingênua da cópia ou reflexo fotográfico da região. Mas, ao mesmo tempo, de reconhecer que, embora ficcional, o espaço regional criado literariamente aponta, como portador de símbolos, para um mundo histórico-social e uma região geográfica existentes. Na obra regionalista, a região existe como regionalidade e esta é o resultado da determinação como região ou província de um espaço ao mesmo tempo vivido e subjetivo, a região rural internalizada à ficção, momento estrutural do texto literário, mais do que um espaço exterior a ele.

10. Se o local e o provincial não são vistos como pura matéria mas como modo de formar, como perspectiva sobre o mundo, a dicotomia entre local e universal se torna falsa. O importante é ver como o universal se realiza no particular, superando-se como abstração na concretude deste e permitindo a este superar-se como concreto na generalidade daquele. Desse modo, as “peculiaridades regionais” alcançam uma existência que as transcende. Assim, espaço fechado e mundo, ao mesmo tempo objetivos e subjetivos, não necessitam perder sua amplitude simbólica. A função da crítica diante de obras que se enquadram na tendência regionalista é, por isso, indagar da função que a regionalidade exerce nelas; e perguntar como a arte da palavra faz com que, através de um material que parece confiná-las ao beco a que se referem, algumas alcancem a dimensão mais geral da beleza e, com ela, a possibilidade de falar a leitores de outros becos de espaço e tempo, permanecendo, enquanto outras (mesmo muitas que se querem imediatamente cosmopolitas, urbanas e modernas) se perdem para uma história permanente da leitura.

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