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República Velha: 1. A Revolta da Chibata

by Lucas Gomes

No ano de 1910, mais de 200 marujos agitaram a Baía de Guanabara, ao se apoderarem
de navios de guerra para exigir o fim dos castigos corporais na Marinha do Brasil,
herança do período imperial, onde essa arma era tida como a mais importante e
dirigida pelos mais “aristocráticos” oficiais. Foi a Revolta da Chibata, liderada
por João Cândido, o Almirante Negro.



O Minas Gerais, um dos modernos navios
recém-adquiridos pela Marinha na época da Revolta

O Brasil era uma das maiores potências navais do mundo, destacando-se a sua Esquadra
Branca formada pelos encouraçados Minas Gerais e São Paulo, pelos cruzadores Rio
Grande do Sul e Bahia e por mais 18 navios. O Governo gastara uma fortuna para
modernizar sua esquadra, mas o código disciplinar da Marinha era o mesmo do tempo
da monarquia, assim como os arbitrários processos de recrutamento. Criminosos
e marginais, produtos de uma sociedade que lhes negava maior sorte, eram colocados
lado a lado com homens simples do interior para cumprir serviço obrigatório durante
10 a 15 anos! As desobediências ao regulamento eram punidas com chibatadas. Por
isso, as revoltas ocorriam antes mesmo do ingresso na corporação.

O decreto nº 3, de 16 de novembro de 1889, um dia após a Proclamação da República,
extinguiu os castigos corporais na Armada, mas em novembro do ano seguinte o marechal
Deodoro, contraditoriamente, tornou a legalizá-los: “para as faltas leves
prisão e ferro na solitária, a pão e água; faltas leves repetidas, idem por seis
dias; faltas graves, 25 chibatadas”
.

Como os reclamos dos marujos não foram ouvidos, eles passaram a conspirar. Uma
primeira advertência foi feita durante a ida de uma divisão da Marinha às comemorações
da Independência chilena, em que ocorreram 911 faltas disciplinares, a maioria
punida com açoites: “Venho por meio destas linhas pedir para não maltratar
a guarnição deste navio, que tanto se esforça por trazê-lo limpo. Aqui ninguém
é salteador nem ladrão”
, dizia um aviso ao comandante de um dos navios, assinado
por um marinheiro conhecido como Mão Negra.

Na madrugada de 16 de Novembro a Guanabara estava repleta de navios estrangeiros
que aportaram para a posse do marechal Hermes da Fonseca na presidência da República.
Ao raiar do dia, toda a tripulação do navio Minas Gerais foi chamada ao convés
para assistir aos castigos corporais a que seria submetido o marinheiro Marcelino
Rodrigues Menezes. Na noite anterior ele ferira a navalhadas o cabo Valdemar,
que o havia denunciado por introduzir duas garrafas de cachaça no navio. Sua pena:
250 chibatadas e não mais 25 como vinha acontecendo.

Junto à tripulação do navio havia também oito carrascos oficiais. Depois
de examinado pelo médico de bordo e considerado em perfeitas condições físicas,
Marcelino foi amarrado pelas mãos e pés e submetido ao castigo. Durante o castigo,
Marcelino desmaiou de dor, mas a surra continuou. Ao fim das 250 chibatadas, suas
costas estavam banhadas em sangue, lanhadas de cima para baixo. Desacordado, ele
foi desamarrado, embrulhado num lençol e levado aos porões. Lá jogaram iodo em
suas costas e o deixaram estrebuchando no chão.

A Campanha Civilista de Rui Barbosa à presidência da República, as revoltas populares ocorridas no Rio de
Janeiro na primeira década do século XX e o descontentamento de diversos setores da sociedade com o tipo
de República liberal que foi instaurada no país, foram fatores que fizeram parte do contexto no qual se
insere a Revolta da Chibata, deixando à mostra o grande descontentamento social presente no Brasil na
época anterior a I Grande Guerra. Expondo assim a inserção dos marinheiros na vida social da capital
federal.

Tendo que se adicionar ainda a esse painel a falta crônica de mão-de-obra para
a Marinha de Guerra, além do alistamento militar feito de maneira brutal, engajando
criminosos (muitas vezes capoeiras), separando famílias e engajando homens e adolescentes
por vinte anos, tempo que muitos deles não resistiam. Apesar de já existirem as
primeiras Casas de Aprendiz de Marinheiros, locais destinados a órfãos e meninos
pobres que eram educados para vida como praças da Marinha de Guerra, eram homens
mestiços ou negros, em sua maioria, que serviam ao projeto de país e ao projeto
civilizatório das massas perigosas, na visão das elites. Todavia, tais homens
entrando em contato não somente com o duro labor, mas, também com populações do
país inteiro sem esquecer das missões internacionais, possivelmente proporcionaram
uma maior compreensão da realidade deles. Tornando cada vez mais latente e insustentável
sua situação, a ponto de após a renovação de parte da esquadra de guerra, com
a aquisição de encouraçados britânicos, deixou mais claro a falta de qualificação
e o arcaísmo das codificações da Marinha de Guerra. Para tanto os marinheiros
sublevados filtraram dos discursos políticos existentes algumas idéias para fundamentar
suas revindicações como revela uma carta enviada por um marinheiro sublevado para
o jornal Correio da Manhã de 25/11/1910:



Ao lado de um dos marinheiros, João
Cândido lê o manifesto da Revolta:
(Agência Estado)

“Rio de Janeiro, 22 de novembro de 1910 – Ilustrado sr. redator do Correio da Manh㠖 É doloroso o fato
que ora se passa na nossa marinha de guerra, mas, sr. redator, quem os culpados? Justamente os superiores
da referida Armada, estes que deviam encarar os seus subordinados como homens servidores da pátria; pelo
contrario, eles são tratados como desprezíveis e sujeitos, á simples falta, nos castigos mais rigorosos
possíveis. Têm hoje como símbolo do martírio desses infelizes a palmatória, as algemas, e o chicote, e
tudo isso, ilustre sr. redator, na marinha que, conforme os plano do sr. ex-ministro dizia civilizar-se. A
escravidão terminou-se a 13 de maio de 1888, com a áurea lei da liberdade, e os oficiais da nossa marinha
de guerra, conquanto as leis militares tivessem abolido castigos, não ligaram importância às leis
militares e à disciplina, castigando os seus subordinados com ódio com que os senhores castigavam os mãos
escravos. Sr. redator, é doloroso sim, ver-se a nossa marinha de hoje passar fome e todas as privações,
pelo descaso dos comandantes de navios da Armada. Com um pessoal resumido e sofredor, eles querem o serviço
feito a tempo e hora, sem encarar o cansaço, isto quando em viagens longas, como se deu nestas vindas das
nossas unidades da Europa para aqui.
Os nossos pobres marinheiros e foguistas vieram como verdadeiros escravos, passando fome e sendo
constantemente castigados com os ferros, a chibata e o bolo; em um dos últimos navios chegados, o
comandante, durante a viagem, em alto mar, mandava amarrar o pobre marinheiro e fazia com este fosse lavar
e pintar o costado do navio. Foguistas, estes coitados, faziam 6 horas de quarto e não tinham o direito ao
descanso que, pela lei, lhes toca, porque eram logo chamados para outros serviços. O verdadeiro navio
negreiro. É necessário, sr. redator, que publiqueis estas mal escritas palavras, afim de que, chegando
elas ao conhecimento das autoridades competentes, possam sanar o mal, e o fato igual não mais se reproduza
na nossa marinha de guerra. É necessário que os oficiais da Armada compreendam que estamos no século da
luz. Abaixo a chibata, as algemas e a palmatória – Um marinheiro.”

O uso do açoite, como visto, continuou sendo aplicado nos marinheiros como medida disciplinar, como no
tempo em que existia o pelourinho. Todos os marinheiros, na sua esmagadora maioria negros, continuavam a
ser açoitados às vistas dos companheiros, por determinação da oficialidade branca.

Os demais marujos eram obrigados a assistir à cena infamante no convéns das belonaves.
Com isto, criaram-se condições de revolta no seio dos marujos. Os seus membros
não aceitavam mais passivamente esse tipo de castigo. Chefiados por Francisco
Dias, João Cândido e outros tripulantes do Minas Gerais, navio capitânia da esquadra,
organizaram-se contra a situação humilhante de que eram vítimas. Nos outros navios
a marujada também se organizava: o cabo Gregório conspirava no São Paulo, e no
Deodoro havia o cabo André Avelino.

Num golpe rápido, apoderaram-se dos principais navios da Marinha de Guerra brasileira
e se aproximaram do Rio de Janeiro. Em seguida mandaram mensagem ao presidente
da República e ao ministro da Marinha exigindo a extinção do uso da chibata.

O governo ficou estarrecido. Acharam tratar-se de um golpe político das forças
inimigas. O pânico apoderou-se de grande parte da população da cidade. Muitas
pessoas fugiram. Somente em um dia correram 12 composições especiais para Petrópolis,
levando 3 000 pessoas. Todos os navios amotinados hastearam bandeiras vermelhas.
Alguns navios fiéis ao governo ainda tentaram duelar com os revoltosos, mas foram
logo silenciados. Com isto os marujos criaram um impasse institucional. De um
lado a Marinha, que queria a punição dos amotinados, em conseqüência da morte
de alguns oficiais da armada. Do outro lado, o governo e os políticos, que sabiam
não ter forças para satisfazer essa exigência. Mesmo porque os marinheiros estavam
militarmente muito mais fortes do que a Marinha de Guerra, pois comandavam, praticamente,
a armada e tinham os canhões das belonaves apontados para a capital da República.

Depois de muitas reuniões políticas, nas quais entrou, entre outros, Rui Barbosa, que condenou os “abusos
com os quais, na gloriosa época do abolicionismo, levantamos a indignação dos nossos compatriotas”, foi
aprovado um projeto de anistia para os amotinados. Com isto, os marinheiros desceram as bandeiras vermelhas
dos mastros dos seus navios. A revolta havia durado cinco dias e terminava vitoriosa. Desaparecia, assim,
o uso da chibata como norma de punição disciplinar na Marinha de Guerra do Brasil.

As forças militares, não-conformadas com a solução política encontrada para a
crise, apertaram o cerco contra os marinheiros. João Cândido, sentindo o perigo,
ainda tentou reunir o Comitê Geral da revolução, inutilmente. Procuraram Rui Barbosa
e Severino Vieira, que defenderam a anistia em favor deles, mas sequer foram recebidos
por esses dois políticos. Uniram-se, agora, civis e militares para desafrontar
os “brios da Marinha de Guerra” por eles atingidos. Finalmente veio um decreto
pelo qual qualquer marinheiro podia ser sumariamente demitido. A anistia fora
uma farsa para desarmá-los.

São acusados de conspiradores, espalharam boatos de que haveria uma outra sublevação.
Finalmente, afirmaram que a guarnição da ilha das Cobras havia se sublevado. Pretexto
para que a repressão se desencadeasse violentamente sobre os marinheiros negros.
O presidente Hermes da Fonseca necessitava de um pretexto para decretar o estado
de sítio, a fim de sufocar os movimentos democráticos que se organizavam. As oligarquias
regionais tinham interesse em um governo forte. Os poucos sublevados daquela ilha
propuseram rendição incondicional, o que nãofoi aceito. Seguiu-se uma verdadeira
chacina. A ilha foi bombardeada até ser arrasada. Estava restaurada a honra da
Marinha.


João Cândido é escoltado para a prisão
(Agência Estado)

João Cândido e os seus companheiros de revolta foram presos incomunicáveis, e
o governo e a Marinha resolveram exterminar fisicamente os marinheiros. Embarcaram-nos
no navio Satélite rumo ao Amazonas.

Os 66 marujos que se encontravam em uma masmorra do Quartel do Exército e mais
31, que se encontravam no Quartel do 1º Regimento de Infantaria, foram embarcados
junto com assassinos, ladrões e marginais para serem descarregados nas selvas
amazônicas. Os marinheiros, porém, tinham destino diferente dos demais embarcados.
Ao lado dos muitos nomes da lista entregue ao comandante do navio, havia uma cruz
vermelha, feita a tinta, o que significava a sua sentença de morte. Esses marinheiros
foram sendo parceladamente assassinados: fuzilados sumariamente e jogados ao mar.

João Cândido, embora não tenha participado do novo levante, também é preso e enviado para a prisão
subterrânea da Ilha das Cobras, na noite de Natal de 1910, com mais 17 companheiros. Os 18 presos foram
jogados em uma cela recém-lavada com água e cal. A cela ficava em um túnel subterrâneo, do qual era
separada por um portão de ferro. Fechava-a ainda grossa porta de madeira, dotada de minúsculo
respiradouro. O comandante do Batalhão Naval, capitão-de-fragata Marques da Rocha, por razões que ninguém
sabe ao certo, levou consigo as chaves da cela e foi passar a noite de Natal no Clube Naval, embora
residisse na ilha.

A falta de ventilação, a poeira da cal, o calor, a sede começaram a sufocar os presos, cujos gritos
chamaram a atenção da guarda na madrugada de Natal. Por falta das chaves, o carcereiro não podia entrar na
cela. Marques da Rocha só chegou à ilha às oito horas da manhã. Ao serem abertos os dois portões da
solitária, só dois presos sobreviviam, João Cândido e o soldado naval João Avelino. O Natal dos demais
fora paixão e morte.

O médico da Marinha, no entanto, diagnosticou a causa da morte como sendo “insolação”. Marques da Rocha
foi absolvido em Conselho de Guerra, promovido a capitão-de mar-e-guerra e recebido em jantar pelo
presidente da República.

João Cândido continuou na prisão, às voltas com os fantasmas da noite de terror. O jornalista Edmar Morel
registrou assim seu depoimento pessoal: “Depois da retirada dos cadáveres, comecei a ouvir gemidos dos
meus companheiros mortos, quando não via os infelizes, em agonia, gritando desesperadamente, rolando pelo
chão de barro úmido e envoltos em verdadeiras nuvens da cal. A cena dantesca jamais saiu dos meus olhos.

João Cândido enlouqueceu, sendo internado no Hospital dos Alienados.

Ele e os companheiros só seriam absolvidos das acusações em 1912. Tuberculoso e na miséria, conseguiu,
contudo, restabelecer-se física e psicologicamente. Perseguido constantemente,
morreu como vendedor no Entreposto de Peixes da cidade do Rio de Janeiro, sem
patente, sem aposentadoria e até sem nome, este herói que um dia foi chamado,
com mérito, de Almirante Negro.

Os que fizeram a Revolta da Chibata morreram ou foram presos, desmoralizados e destruídos. Seu líder, como visto,
terminou sem patente militar, sem aposentadoria e semi-ignorado pela História oficial. No entanto, o
belíssimo samba “O Mestre-Sala dos Mares”, de João Bosco e Aldir Blanc, composto nos anos 70, imortalizou
João Cândido e a Revolta da Chibata. Como diz a música, seu monumento estará para sempre “nas pedras
pisadas do cais”. A mensagem de coragem e liberdade do “Almirante Negro” e seus companheiros resiste.

HOMENAGEM DE JOÃO BOSCO E ALDIR BLANC À “REVOLTA DA CHIBATA”

“Mestre-Sala dos Mares”, de João Bosco e Aldir Blanc, composto nos anos 70, imortalizou
João Cândido e a Revolta da Chibata.

Sobre a censura à música, o compositor Aldir Blanc conta:

“Tivemos diversos
problemas com a censura. Ouvimos ameaças veladas de que a Marinha não toleraria
loas a um marinheiro que quebrou a hierarquia e matou oficiais etc. Fomos várias
vezes censurados, apesar das mudanças que fazíamos, tentando não mutilar o que
considerávamos as idéias principais da letra. Minha última ida ao Departamento
de Censura, então funcionando no Palácio do Catete, me marcou profundamente. Um
sujeito, bancando o durão, (…) mãos na cintura, eu sentado numa cadeira e ele
de pé, com a coronha da arma no coldre há uns três centímetros do meu nariz. Aí,
um outro, bancando o “bonzinho”, disse mais ou menos o seguinte:
– Vocês não então entendendo… Estão trocando as palavras como revolta, sangue
etc. e não é aí que a coisa tá pegando…
Eu, claro, perguntei educadamente se ele poderia me esclarecer melhor. E, como
se tivesse levado um “telefone” nos tímpanos, ouvi, estarrecido a resposta, em
voz mais baixa, gutural, cheia de mistério, como quem dá uma dica perigosa:
– O problema é essa história de negro, negro, negro…

O Mestre Sala dos Mares

(João Bosco / Aldir Blanc)

(letra original sem censura)

Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo marinheiro
A quem a história não esqueceu

Conhecido como o almirante negro
Tinha a dignidade de um mestre sala
E ao navegar pelo mar com seu bloco de fragatas
Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas

Rubras cascatas jorravam das costas
dos negros pelas pontas das chibatas
Inundando o coração de toda tripulação
Que a exemplo do marinheiro gritava então

Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias

Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais

Salve o almirante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais
Mas faz muito tempo

O Mestre Sala dos Mares
(João Bosco / Aldir Blanc)

(letra após censura durante ditadura militar)

Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo feiticeiro
A quem a história não esqueceu

Conhecido como o navegante negro
Tinha a dignidade de um mestre sala
E ao acenar pelo mar na alegria das regatas
Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas

Rubras cascatas jorravam das costas
dos santos entre cantos e chibatas
Inundando o coração do pessoal do porão
Que a exemplo do feiticeiro gritava então

Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias

Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais

Salve o navegante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais
Mas faz muito tempo

Fonte: História do Negro Brasileiro, Clóvis Moura, São Paulo: Editora Ática S.A., 1992 | CEFET (SP)

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