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São Marcos (Conto de Sagarana), de Guimarães Rosa

by Lucas Gomes

Análise da obra

O conto São Marcos, segundo o próprio autor “a peça mais trabalhada do
livro Sagarana (Rosa, 1984, p.11).

O narrador joga com o leitor de forma que, a princípio, desdobra-se em mais de um personagem. No início
da narrativa, ele declara que entrava na mata para observar o seu “xará João-de-barro”, coincidindo o
nome sugerido com o nome do próprio autor, o que causa no leitor um certo desconforto ou surpresa, por
imaginar-se, repentinamente, diante daquele, e como que traído na sua empreitada pelo mundo da ficção.

Narrado em primeira pessoa, o foco narrativo ilumina os passos do protagonista, mas também revela certas
sutilezas que servem para esclarecer o sentido mais profundo da história.

São Marcos revela uma ambigüidade completa em relação ao seu narrador-personagem e às personagens
secundárias que sustentam a narrativa e amarram a simbologia do conceito de crer ou não em feitiçarias,
ou seja, no desconhecido, na lenda, no mito, no mágico e religioso, enfim, no poético.

A história do narrador-personagem se dá com o início da narração. Percebemos uma dissociação entre
narrador e personagem, afinal seu próprio nome é ambíguo: “(…) meu xará joão-de-barro”(p. 361) ou, se
quiser, “(…) nesta história eu também me chamarei José”(p. 361). Instalada a primeira ambigüidade:
qual o nome do narrador e qual o do personagem, de fato? Essa dicotomia sem solução também garante a
universalidade do personagem, pois é como todo e qualquer João ou José (ou o nome que quiser). Um
Severino, como um dos personagens de João Cabral. Como todo e qualquer ser humano.

Quando lemos São Marcos pela primeira vez, temos a impressão que narrador e personagem são
sujeitos autônomos, a ponto do narrador isentar-se das culpas imputáveis ao personagem. Isso, porém, é
uma ilusão discursiva que pode ser comprovada pela organização dos planos narrativos do texto. Afinal,
os dois planos, o da estória e o do discurso, não seguem paralelamente no conto. Ora se fundem e
confundem, ora se distanciam. É a interferência do narrador no discurso que dá o tom oblíquo e cria a
ambigüidade sugerida em todo o texto.

Há duas histórias neste conto. Uma delas, bem menor, é inserida no meio da outra, que conta a desavença
entre o narrador e um feiticeiro. Por ter ridicularizado o negro Mangalô. José, o protagonista, torna-se
alvo de uma bruxaria. Mangalô constrói um boneco-miniatura do inimigo, e coloca uma venda em seus olhos,
o que faz José ficar cego, perdendo-se no meio do mato. Para conseguir achar o caminho de volta, mesmo
sem enxergar, ele reza a oração de São Marcos, sacrílega e perigosa.

– Em nome de São Marcos e de São Manços, e do Anjo Mau, seu e meu companheiro…

– Ui! Aurísio Manquitola pulou para a beira da estrada, bem para longe de mim,
se persignando, e gritou:


– Pára, creio-em-Deus-padre” Isso é reza brava…

Com o poder dado pela oração, mesmo cego José encontra a casa de Mangalô, ataca
o negro e o obriga a desfazer a feitiçaria.

O cenário é Calango-Frito, arraial do interior de Minas Gerais. O conto tem sua espacialidade centrada
no mato. Esse espaço físico é rico em vidas, sons e sensações. Faz parte do mundo encantado, mágico. É a
voz de comando do personagem José que, à medida que desce no âmago do mato, também mergulha no seu
próprio interior. Ou seja, enquanto José adentra o mato, João revive e reativa sua memória. E vice-versa,
enquanto João narra cada detalhe lembrado, José aprofunda-se pelo desembrenhar mato adentro. Dentro do
mato e dentro de si mesmo.

Em São Marcos, homem e natureza, longe de constituírem duas entidades distintas postas em
conflito, são os dois lados de um todo que se complementam. O protagonista do texto, por um lado, é um
personagem tipo no sentido de que expressa o caráter coletivo de sua gente (sua região/sociedade e a
função que desempenha neste contexto), mas transcende sua tipicidade pela dimensão humana de que é
dotado. Assim, ele abarca as condições de tipo e de indivíduo, cuja tipicidade se revela através de sua
individualização no universo narrativo. Por isso, uma das maiores preocupações que afligem o protagonista
ao longo da narrativa é a questão do bem e do mal que, embora viva no “mundo dos jagunços”, é, antes de
mais nada, uma preocupação humana, existencial.

Neste conto o mito e a fantasia aparecem sob formas de superstições e premonições, crença em aparições,
devoção a curandeiros e videntes, misticismo e temor religioso, como o temor ao diabo (representado pela
“Reza brava de São Marcos”) e certa admiração pelo mistério e o desconhecido. Percebemos que o
sobrenatural é tratado como parte do complexo mental do homem do sertão, do aspecto mítico-sacral e,
como tal, passível também de questionamento.

A outra história, dentro desta, constitui um pequeno episódio no qual José fala
de um bambual onde ele e um desconhecido travam um duelo poético; o desconhecido
fazendo quadrinhas populares, e ele colocando poemas como nomes de reis babilônicos.

Personagens

José – Narrador, um admirador da natureza. Gostava de observar árvores, pássaros, rios, lagos e
gente.

João Mangolô – Mangolô era um preto velho. Morava no Calango-Frito e tinha fama de feiticeiro.

Aurísio Manquitola – Sujeito experiente, contador de histórias; conhecia bem todas as pessoas de
Calango-Frito.

Tião Tranjão – Sujeito meio leso, vendedor de peixe-de-rio no arraial. Ficou indomável depois de
aprender a oração de São Marcos.

Resumo do conto

Mangolô era um preto velho. Morava no Calango-Frito e tinha fama de feiticeiro. O narrador, saindo do
povoado (ia caçar), passou pela casa de Mangolô e tirou brincadeira. Gritou para o preto velho:
“primeiro: todo negro é cachaceiro; segundo: todo negro é vagabundo; terceiro: todo negro é feiticeiro”.
Eram os mandamentos do negro. Mangolô não gostou da brincadeira. Fechou-se na casa e bateu a porta.

Mais à frente, na mesma caminhada, o narrador alcança Aurísio Manquitola. O narrador, por brincadeira,
começou a recitar a oração proibida de São Marcos. Aurísio enche-se de medo. É um perigo dizer as
palavras dessa oração, mesmo que por brincadeira.

Aurísio conta ao narrador a história de Tião Tranjão, sujeito meio leso, vendedor de peixe-de-rio no
arraial. Tião amigou-se com uma mulherzinha feia e sem graça. Pois o Cypriano, carapina já velho,
começou a fazer o Tião de corno. Mais ainda: os dois, Cypriano e a mulher feia, inventaram que foi Tião
quem tinha ofendido o Filipe Turco, que tinha levado umas porretadas no escuro sem saber da mão de
quem… O Gestal da Gaita, querendo ajudar o Tião, quis ensinar a ele a reza de São Marcos. Tião trocava
as palavras, tinha dificuldade para memorizar. Gestal teve que lhe encostar o chicote para fixar a reza.
Aí sim, debaixo de peia, Tião Tranjão aprendeu direitinho a reza proibida, tintim por tintim.

Depois da reza decorada, vieram uns soldados prender Tião. Ele desafiou: com ordem de quem? Os soldados
explicaram: com ordem do subdelegado. Então, que fossem na frente. Ele iria depois. Com muito jeito,
conseguiram levar Tião para a cadeia e lá, bateram nele. Depois da meia-noite, Tião rezou a oração de
São Marcos e, misteriosamente, conseguiu fugir da cadeia, voltar para casa – quatro léguas. Não
encontrando a mulher, foi direto para a casa do carapina. Aí, com ar de guerreiro, bateu na mulher, no
carapina, quebrou tudo que havia por lá, acabou desmanchando a casa quase toda. Foram necessárias mais
de dez pessoas para segurá-lo.

O narrador vai descendo por trilhas conhecidas, reconhecendo árvores, identificando pássaros, até chegar
finalmente à lagoa. Senta-se e põe-se a observar o movimento dos bichos em perfeita harmonia com a
natureza. De repente, sem dor e sem explicação, ficou cego. O desespero não veio de imediato. Aos poucos,
foi concluindo que estava distante, afastado de qualquer ser humano, impossibilitado de voltar para casa.
Resolveu gritar. Gritou repetidas vezes e só teve o eco por resposta. Tentou, então, voltar tateando as
árvores. Logo percebeu que estava perdido, numa escuridão desesperadora. Já ferido por espinhos
invisíveis, machucado de quedas, chegou a chorar alto.

Sem pensar, o narrador começou a bramir a reza-brava de São Marcos. E sem entender o porquê, dizendo
blasfêmias que a reza continha, começou a correr dentro da mata, tangido por visões terríveis. De
repente, estava na casa de João Mangolô, tangido por uma fúria incontrolável. E a voz do feiticeiro
pedindo pelo amor de Deus que não o matasse. Os dois rolaram juntos para os fundos da casa. E de repente,
luz, muita luz. A visão voltava esplêndida. E o negro velho tentando esconder alguma coisa atrás do
jirau. Depois de levar alguns sopapos, Mangolô mostrou um boneco. Mais alguns socos e o feiticeiro
explicou: não queria matar. Amarrara apenas uma tirinha de pano preto nas vistas do boneco para o
narrador passar uns tempos sem enxergar. Tudo terminou em paz. Para garantir tranqüilidade, o narrador
deu um dinheiro a João Mangolô. Era a garantia de que, agora, eram amigos.

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