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Prof. Roberto Sarmento fala sobre a obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos

by Lucas Gomes


Cena do filme Vidas Secas, adaptado
da obra de Graciliano Ramos

Roberto Sarmento Lima possui graduação em Letras pela Universidade
Federal de Alagoas (1978), mestrado em Letras pela Universidade Federal de Alagoas
(1992) e doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Alagoas
(1998). Atualmente é professor associado 2 da Universidade Federal de
Alagoas, onde ensina desde 1978. Tem experiência na área de Letras,
com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes
temas: narrativa, discurso, modernidade, poesia e linguagem. É coordenador
o grupo de pesquisas Estudos Vieirianos.

Estudos Vieirianos

Descrição: Grupo de pesquisa liderado pelo
prof. dr. José Niraldo de Farias, da Universidade Federal de Alagoas,
do qual participam também a profª drª Ana Cláudia Aymoré
Martins e alunos da graduação e da pós-graduação
em letras. Sarmento ingressou no grupo em julho de 2007.
Situação: Em andamento; Natureza:
Pesquisa.
Alunos envolvidos: Graduação ( 4) / Mestrado
acadêmico ( 2) .
Integrantes: José Niraldo de Farias – Integrante / Ana
Cláudia Aymoré Martins – Integrante / Roberto Sarmento Lima –
Coordenador.
Financiador(es): Universidade Federal de Alagoas – Outra..

Em entrevista a Leonardo Campos*, o prof. Roberto Sarmento nos fala sobre a
obra Vidas
Secas
, de Graciliano Ramos. Leia a seguir.

Leonardo Campos – Vidas Secas, de Graciliano
Ramos, é um romance constante nas listas de vestibulares de todo o país.
O que você acha disso? Seria o romance o modelo principal dessa visão
do Nordeste?

Roberto Sarmento – Creio que a permanência ou
a reincidência de um romance como Vidas secas em concursos, exames
vestibulares e outras modalidades de seleção se devam a dois fatores,
intimamente conexos. Primeiro, a comunicação direta que Graciliano
Ramos estabelece com o leitor de qualquer época, com sua linguagem precisa
e ao mesmo tempo envolvente, poética, sobre assunto considerado tão
atual — senão a seca do Nordeste, ao menos a miséria em
que vivem certas parcelas da população em alguns locais do planeta,
não só do Brasil. Segundo, o interesse crítico continuamente
despertado por essa obra, indo da leitura mais vinculada às posições
da esquerda até chegar mesmo a uma visão neoliberalizante do problema.
Com isso quero dizer que, utopias à parte, pode-se não ver saída,
a não ser do ponto de vista do imaginário (a única saída
permitida a tais personagens), para aquela família de retirantes, em
uma existência francamente hostil, que recebe, no entanto, a simpatia
de um narrador complacente, que, ainda assim, não abdica da visão
de um sujeito que nunca teve de passar por aquela situação e por
isso resguarda sua superioridade interpretativa.

LC – Graciliano Ramos se diferencia dos demais regionalistas
por ser mais conciso, mais direto, aderindo menos às prolixidades de,
digamos, José Lins do Rego. Concorda?

RS – Não creio que a diferença de Graciliano
Ramos em relação a outros escritores da mesma época se
prenda a uma capacidade maior ou menor de estender o tamanho da frase ou de
evitar prolixidades, como você coloca. A diferença fundamental
que vejo tem implicações com o estilo individual desse autor.
Graciliano — mesmo falando do Nordeste e de situações locais
e universais de opressão, retratando, como se diz vulgarmente por aí,
a vida como ela é — envereda por discussões mais amplas
tais como a própria construção estética, o papel
da representação na literatura, o poder da metonímia e
da metáfora em um texto literário, sua adequação
e validade epistêmico-estilística. Isto é, em meio a enunciados
claros sobre a vida oprimida e carente de soluções práticas,
Graciliano Ramos é, acima de tudo, um pensador. Um pensador sobre estética,
uma verdadeira fonte de sinais da compreensão da literatura na contemporaneidade.
Isso eu não vejo, perdoem-me se eu estiver errado, nos outros autores
do período. Pelo menos, com a intensidade e responsabilidade com que
Graciliano pensou esses fatores da fatura estética.

LC – O que o senhor diria do romance Angústia,
que representa uma forte carga psicológica e complexidade do autor, por
muito tempo foi considerado como obra inferior ao que o escritor havia publicado?

RS – Graciliano Ramos, com charme, dizia que Angústia
era um romance cheio de defeitos, de gordura a ser cortada e que não
era, por isso tudo, um bom texto. Não sei se ele dizia isso com sinceridade.
Finge-se sempre em arte, dentro da obra e fora dela também. Nunca saberemos
a verdade sobre tal depoimento. Nem interessa isso ao crítico. Como crítico,
pois, digo que Angústia é obra fundamental no conjunto
dos textos de Graciliano e no conjunto da literatura brasileira de um modo geral.
Um livro em que tempos narrativos se cruzam, mediados pela presença abundante
de elementos ligados à água (a água que faz nascer, a água
que mata e afoga). Vi tal simbologia e a estudei em um ensaio chamado “Angústia:
um romance molhado”, publicado em 2006, por ocasião da comemoração
dos setenta anos de publicado. A água que falta em Vidas secas
sobra em Angústia, romance urbano, cujo foco é uma personalidade
torturada, a de Luís da Silva, que se movia ininterruptamente entre a
lembrança do poço em que era mergulhado brutalmente pelo pai,
e o quintal da casa de Maceió, onde se sentia melhor; entre a chuvinha
fina que caía, a lama nas ruas, e a visão recorrente do homem
que enchia de água as garrafas e a mulher que lavava as dornas; entre
a água da lembrança da infância e a água que corria
pelo cano do banheiro em que Marina tomava banho. Enfim, misturavam-se dor e
sexo, tortura e desejo. A complexidade da trama fez aparecer tais ambiguidades
e tais gorduras, como disse o próprio Graciliano; e, nesse sentido, não
vejo por que cortar alguma coisa nesse romance. Não, não, decidamente
não é uma obra inferior a nenhuma outra de Graciliano.

LC – O que acha da tradução intersemiótica
de Vidas Secas?

RS – Como acontece com qualquer obra que passe por isso
— tradução intersemiótica —, há perdas
enormes e ganhos também. São realidades sígnicas diferentes
demais, embora pareçam ao olhar do cidadão comum a mesma coisa.
Mas não são. Como o cinema vai captar momentos da trama do romance
que só podem ser sentidas pela palavra? No cinema ou na televisão,
fica-se em geral com a fábula, como diz Tomachevski referindo-se à
história que se conta, mas não se consegue traduzir, por mais
competente que seja o diretor do filme ou da minissérie, a riqueza fundamental
do livro, já que eu entendo que uma imagem não vale mil palavras.
Cada coisa no seu lugar.

LC – Falando de cinema… você concorda que haja
relação coerente entre “O Caminho das Nuvens”, de Vicente
Amorim, com “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos?

RS – Assisti a esse filme, “O caminho das nuvens”,
e, sinceramente, não vejo ali, até agora, uma possível
evocação de “Vidas secas”, nem o romance de Graciliano
Ramos nem o filme dirigido por Nelson Pereira dos Santos. Trata-se de um filme
em que um marido oportunista submete a família a certos vexames para
não ter de trabalhar, uma família que foge (estes, sim, fugiram
para o Sudeste) e que, ao final, mantém, sem sonhos, o cinismo anterior.
Que semelhança pode haver com Vidas secas? Se o título
do filme quis sugerir libertação, com a palavra “nuvens”
no meio, só posso entender isso como ironia. Note-se que Graciliano jamais
poria no título umas “nuvens” dessas, por extremo senso de
realidade e de observação meticulosa da realidade que sempre o
caracterizaram. Por isso sustento, como afirmei na primeira questão,
que a sequidão do título Vidas secas se manteve do começo
ao fim da narrativa. Por isso também é que os desejos de Fabiano
e Sinha Vitória se expressam, na fala do narrador, por meio do futuro
do pretérito, tal o respeito que o autor tinha pela realidade. Nem a
ficção consegue subverter tal realidade. Lembro-me agora de Antonio
Candido, que, em A personagem de ficção, afirmou que
a literatura é mesmo muito tímida em relação à
realidade que se toma por foco. Nesta acontecem coisas que Deus duvida. Na literatura,
menos.

LC – Poderia comentar em poucas linhas a sua visão
sobre Graciliano adaptado (cinema)?

RS – Como disse antes em relação à
tradução intersemiótica da literatura pelo cinema, creio
que Nelson Pereira dos Santos conseguiu bons resultados, tanto em “Vidas
secas” quanto em “Memórias do cárcere”. Resultados
parciais, mas bons; no entanto, não chegam à altura dos livros
transformados em filmes. Só tenho medo de que os alunos do ensino médio
pensem que, assistindo a esses filmes, se sintam desobrigados de ler as obras.
Assim, a prevalecer essa ideia, o cinema estaria promovendo um desserviço
à literatura. E, na condição de filmes, eles têm
de ser entendidos como filmes mesmo, dentro de uma avaliação teórico-crítica
pertinente, sem deixar que o exame comparativo leve às conclusões
por mim assumidas aqui.

LC – Certa vez escutei que, assim como o livro A
Hora da estrela
, de Clarice Lispector, o romance Vidas Secas
seria uma obra que permitiria ligação mais coerente que tantos
outros com outras linguagens, como a dança, cinema, pintura, teatro,
novelas. O que o senhor diria disso?

TA – Não saberia dizer isso com tanta certeza,
já que nunca fiz tal reflexão. Mas, assim por cima, posso dizer
que a literatura está aí, disponível a qualquer tradução
intersemiótica. O romance Oliver Twist, de Charles Dickens,
já passou por duas adaptações para o cinema, com música
e dança. Dickens, se vivo, aprovaria ou acharia legal o que foi feito
com seu livro? Quem vai saber? Uma vez publicada, qualquer obra pode ser qualquer
coisa. Por isso não vejo em que A hora da estrela ou Vidas
secas
, nesse sentido de adaptação a outras linguagens e artes,
sejam melhores do que, por exemplo, Mar morto, de Jorge Amado, que,
por artes do demônio, também pode virar, digamos, um musical. Tudo
é possível. Depois então é que poderemos avaliar
se deu certo tal aventura.

*Graduando em Letras Vernáculas com Habilitação em Língua
Estrangeira Moderna – Inglês – UFBA | Membro do grupo de pesquisas “Da
invenção à reivenção do Nordeste” –
Letras – UFBA | Pesquisador na área de cinema, literatura e cultura

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