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Santos Dumont e o transtorno bipolar

by Lucas Gomes


Crepúsculo do gênio: à esquerda, Santos Dumont no fim da década de 20, quando sua doença
piorou. À direita, com seu sobrinho Jorge e o amigo João Fonseca, um mês antes do suicídio,
em 1932

Alberto Santos Dumont foi um dos brasileiros de maior projeção de todos os tempos. Inventor rico e genial, foi notícia no
mundo inteiro no início do século passado, com seu 14 Bis e, mais tarde, com o Demoiselle. Nos últimos cinqüenta anos,
ganhou mais de uma dezena de biografias. Até hoje, no entanto, pouco se sabe sobre as razões que de fato o levaram a se
matar com 59 anos, num banheiro de hotel no litoral paulista. A versão mais aceita, que o suicídio foi motivado pela angústia
de ver o uso militar do avião, não resiste a uma análise atenta. Santos Dumont padeceu de uma doença psíquica mal conhecida
pela medicina de então e, portanto, sem registro confiável de suas causas. Os biógrafos do brasileiro não concordam inteiramente
sobre o diagnóstico. Alguns dizem tratar-se de neurastenia, outros de esclerose múltipla ou de depressão profunda.

Recibos de farmácia, comprovantes de consulta médica, cartas suas e de seus amigos lança uma luz nova sobre o tema. Para os
especialistas, o que levou o inventor à morte foi o transtorno bipolar, hoje diagnosticável e tratável com medicamentos.

Os documentos mostram sua longa batalha para manter-se lúcido. Uma luta que acabou perdendo. Entre 1910 e 1932, Santos Dumont
internou-se em clínicas de repouso européias, procurou os principais psiquiatras do Brasil, tomou calmantes, apelou para massagens
terapêuticas e até banhos medicinais. “Ele tinha uma personalidade dupla. Alternava momentos de depressão com outros de euforia,
o que caracteriza o transtorno bipolar”, diz o psiquiatra José Candido Bastos, membro da Federação Brasileira de Psicanálise.
Seu quadro depressivo foi repetidamente descrito nas biografias. Mas não os momentos de mania. Os documentos, que estão no
acervo da Aeronáutica, ajudam a montar o quebra-cabeça. “Podemos excluir doenças neurológicas como a esclerose múltipla. O
diagnóstico atual seria transtorno bipolar do humor”, concorda o psiquiatra Miguel Chalub, da Associação Brasileira de Psiquiatria.


Recibo do psiquiatra Juliano Moreira,
então um dos mais respeitados: luta

incansável pela cura

Os especialistas basearam sua avaliação em três pontos: a documentação médica disponível, as cartas e o histórico de comportamento
de Santos Dumont. Em 1910, depois de um acidente aéreo, ele abandonou a aviação por conselho médico. Tinha apenas 37 anos. Passou
a sofrer crises de depressão esporádicas até 1925, quando se internou na clínica de repouso Valmont, na Suíça. Dois anos depois,
ainda na clínica, já tinha um aspecto envelhecido. Não queria ir embora, contrariando os conselhos dos médicos. Mas tinha picos
de euforia. Em um desses momentos, tentou voar pela janela com um rústico par de asas amarrado às costas. Foi impedido pela
enfermeira. Não foi a única vez em que a mania foi canalizada para invenções pouco funcionais. Em 1928, Santos Dumont criou o
Conversor Marciano, uma espécie de hélice que, colocada nas costas de esquiadores, deveria ajudá-los a subir montanhas com menor
esforço.

Naquele ano, outra tragédia o abalaria. Um grupo de amigos decidiu saudá-lo com um sobrevôo do navio que o trazia da Europa.
O avião caiu e todos morreram. A partir daí, as crises se agravaram. Sua correspondência mostra uma depressão profunda. Em 1931,
escreveu: “É a primeira carta que escrevo depois de ficar dois meses de cama. Talvez amanhã vista roupa e botinas”. Nos recibos de
farmácia datados daquele ano, há medicamentos à base de brometo, então um calmante universalmente prescrito. Ele tentou se matar
três vezes. A primeira foi na Clínica de Saúde Préville, na França, onde ficou internado. A segunda, a bordo de um navio. Na
ocasião, redigiu o bilhete: “Hoje de manhã eu quis me suicidar e foi Jorge que me salvou. Se numa próxima vez isso acontecer, a
culpa é toda minha”. Dias depois, quando o navio atracou, seu quadro emocional já era o oposto. Os jornalistas foram encontrá-lo
falante, andando de um lado para o outro e exibindo sua nova invenção, um estranho aparelho voador individual.

Santos Dumont foi um inventor prodigioso e viveu momentos de glória depois de voar pela primeira vez, em 1906, em Paris, com um
“mais pesado do que o ar”, justamente quando a cidade ainda vivia os ares triunfalistas da plenitude do engenho humano por ter
sediado a Feira Mundial na virada do século. A personalidade excêntrica do aristocrata brasileiro era vista como um produto da
sua genialidade. Poucos associaram sua emoção pendular a uma doença. Mesmo se houvesse a chance de um diagnóstico correto, seriam
quase nulas as alternativas de cura. O inventor se agarrou a todas, mas sua fortuna não impediu o avanço do quadro. No Brasil,
ele se consultou com Juliano Moreira, um dos maiores nomes da psiquiatria nacional. Também procurou o psiquiatra Henrique Roxo,
muito requisitado por suas receitas à base de plantas medicinais. Nada funcionou. “Ele buscou tratamento em diversas ocasiões, o
que não é comum em pessoas depressivas, que tendem a justificar os sintomas como produto de causas externas”, diz um dos seus
principais biógrafos, Henrique Lins de Barros.

A vida de Santos Dumont foi sempre marcada por eventos traumáticos. A mãe, Francisca, matou-se em 1902, quando ele estava no auge
da carreira. Nos anos 20, enquanto sua fama de pioneiro continuava intacta, suas habilidades como construtor de aviões mais
modernos se esboroaram rapidamente. Os aviões fabricados em série para uso comercial e militar se pareciam muito pouco com o 14
Bis e com outros objetos voadores projetados por Santos Dumont.

Ele continuou tentando se superar. Em vão. A doença, somada a essas frustrações, se mostraria fatal. A tese simplista do
suicídio provocado pela angústia de ver os aviões usados na guerra ajudou a reforçar o mito do herói. Mas prejudicou a pesquisa
sobre a verdadeira história do grande brasileiro.

Fonte: Revista Veja

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