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Sentimento do mundo (livro), de Carlos Drummond de Andrade

by Lucas Gomes

Análise

Publicado pela primeira vez em 1940, Sentimento do mundo é o terceiro trabalho poético de Carlos Drummond de Andrade. Os poemas deste livro foram produzidos entre 1935 e 1940. São 28 no total. Traz o olhar do poeta sobre o mundo à sua volta, tendendo para um olhar crítico e significativamente político. É uma obra que retrata um tempo de guerras, de pessimismo e sobre tudo, de dúvidas sobre o poder de destruição do homem.

Escrito na fase em que o mundo se recuperava da Primeira Guerra Mundial e em que já se encontrava iminente a Segunda Grande Guerra, com a imposição do Estado Novo de Getúlio Vargas e o crescimento do Nazi-fascismo, percebe-se em Drummond a luta, a contestação, pela palavra, das atrocidades que o mundo parecia aceitar (“Tudo acontece, menina / E não é importante, menina”). Drummond lançou-se ao encontro da história contemporânea e da experiência coletiva, participando, solidarizando-se social e politicamente, descobrindo na luta a explicitação de sua mais íntima apreensão para com a vida como um todo.

Em Sentimento do mundo, Drummond revê o fazer poético. Amadureceu o poeta individualista de Alguma Poesia, tomando consciência do mundo, apesar de não se esquecer de seu coração.

O poeta de Sentimento do mundo constata que vive em “um tempo em que a vida é uma ordem”, que vive num mundo grande, onde os homens de “diferentes cores” vivem suas “diferentes dores” e que não é possível “amontoar tudo isso/num só peito de homem”. Ele constata, arrependido, que se voltou para si e para seus ínfimos problemas:

Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
(“Mundo grande”, Sentimento do mundo)

Mais que constatar ele se recusa a ser “o poeta de um mundo caduco”, a ser “o cantor de uma mulher, de uma história”. O poeta não será uma ilha, mas cantará “o tempo presente, os homens presentes, / a vida presente” (“Mãos dadas”,”Sentimento do mundo”). O verso-cachaça dá lugar ao verso-combate, que alimenta o coração do poeta, para lhe dar forças para lutar:

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo, meu coração cresce dez metros e explode.
Ó vida futura! nós te criaremos.
(“Mundo grande”, “Sentimento do mundo”)

Nos poemas de Sentimento do mundo, além do traço preciso e corrosivo, próprio da escrita de Drummond, há uma imensa preocupação com os rumos que tomam as pessoas enquanto seres humanos.

Nesta obra fica claro que o individualismo está mais próximo da concordância com o modelo da situação que do protesto e que, somente unidos (“Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”), através dos mesmos sentimentos, ainda que mal se compreendam (“Ele sabe que não é nem nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza…”), os homens conseguiriam modificar o mundo:

…as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio…
Havemos de amanhecer
(“A noite dissolve os homens”)

Não há, entretanto, otimismo na visão do poeta. É sombria e pessimista a visão de mundo que se justapõe à esperança da revolução e da utopia. Assim, dor e esperança são os temas básicos que regem os poemas de Sentimento do Mundo. Uma dor, talvez, maior que a esperança que a contempla, ou talvez esta não esteja tão próxima dos homens. A dor é o “Sentimento do Mundo”; dor de todos os homens e que se concentra em um só – o poeta:

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo
mas estou cheio de escravos
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
(“Sentimento do mundo)

E, então, ele, o poeta, sente-se responsável pelas pessoas a sua volta; sofre por elas; sente-se elas. Como se vê em:

É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades,
é preciso substituir nós todos.
(…)

(“Poema da necessidade”)

E em:

Eu sou a Moça-Fantasma
que espera na Rua do Chumbo
o carro da madrugada. (…)
(“Canção da Moça-Fantasma de Belo Horizonte”)

O “nós” é muito empregado em Sentimento do Mundo e é através do “nós” que surgirá a esperança. Ressalte-se que ela, a Esperança, nunca está no presente, mas, sempre, no futuro, virá. Vem, assim como a dor, personificada em imagens possíveis de se encontrar em nosso cotidiano: o sorriso do operário, que caminha firme (“Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido”); a aurora, que dissolve a noite que traz o sofrimento (“Aurora, / entretanto eu te diviso, ainda tímida, / inexperiente das luzes que vais acender”); o soluço de vida, que resiste ao verme roedor de lembranças:

Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,
alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,
em que todos se debruçavam
na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.
Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes
e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos.
Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava
Que rebentava daquelas páginas.
(“Os mortos de sobrecasaca”)

Assim, os temas políticos, o sofrimento do ser humano e as guerras, a solidão, o mundo frágil, os seres solitários predominam. A dor humana está lá; o eu-lírico se resguarda e canta o outro, tão mais importante que ele próprio.

Poemas de Sentimento do mundo

1. SENTIMENTO DO MUNDO

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
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2. CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e
comunicação.
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3. POEMA DA NECESSIDADE

É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades
é preciso substituir nós todos.
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4. CANÇÃO DA MOÇA-FANTASMA DE BELO HORIZONTE

Eu sou a Moça-Fantasma
que espera na Rua do Chumbo
o carro da madrugada.
Eu sou branca e longa e fria,
a minha carne é um suspiro
na madrugada da serra.
Eu sou a Moça-Fantasma. O meu nome era Maria,
Maria-Que-Morreu-Antes.
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5. TRISTEZA DO IMPÉRIO

Os CONSELHEIROS angustiados
ante o colo ebúrneo
das donzelas opulentas
que ao piano abemolavam
“bus-co a cam-pi-na se-re-na
pa-ra li-vre sus-pi-rar”,
esqueciam a guerra do Paraguai,
o enfado bolorento de São Cristóvão,
a dor cada vez mais forte dos negros
e sorvendo mecânicos
uma pitada de rapé,
sonhavam a futura libertação dos instintos
e ninhos de amor a serem instalados nos arranha-céus de Copacabana, com rádio e telefone automático.

A relação irônica do modernismo com a História, prato preferido de Oswald de Andrade, aparece na poesia de Drummond.

É um poema social de crítica aos ideais burgueses.

6. OPERÁRIO DO MAR (prosa)

Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos. Leia mais

7. MENINO CHORANDO NA NOITE

Na noite lenta e morna,
morta noite sem ruído,
um menino chora.
O choro atrás da parede,
a luz atrás da vidraça
perdem-se na sombra dos passos abafados,
das vozes extenuadas,
e, no entanto,
se ouve até o rumor da gota de remédio
caindo na colher.

Um menino chora na noite,
atrás da parede, atrás da rua,
longe um menino chora,
em outra cidade talvez,
talvez em outro mundo.

E vejo a mão que levanta a colher,
enquanto a outra sustenta a cabeça
e vejo o fio oleoso
que escorre pelo queixo do menino,
escorre pela rua, escorre pela cidade,
um fio apenas.
E não há mais ninguém no mundo
A não esse menino chorando.

Drummond tem um enorme sentido social e uma vontade de que a utopia da fraternidade e solidariedade seja possível no mundo. Nesta sensibilidade enquadra-se o poema “Menino chorando na noite” que classifica-se como um poema de ternura, enquanto nele se sublinha a força da criança, como símbolo de vida, tendo em vista sua dor e os cuidados que a ele são prestados.

Um poema bastante emotivo onde o poeta sofre com o sofrimento do outro. As lágrimas caindo simbolizam a dor intensa e universal. Ser triste dói.

8. MORRO DA BABILÔNIA

À noite, do morro
descem vozes que criam terror
(terror urbano, cinqüenta por cento de cinema,
e o resto que veio de Luanda ou se perdeu na língua geral,

Quando houve revolução, os soldados se espalharam no morro,
o quartel pegou fogo, eles não voltaram.
Alguns chumbados, morreram.
O morro ficou mais encantado.

Mas as vozes no morro
não são propriamente lúgubres.
Há mesmo um cavaquinho bem afinado
que domina os ruídos da pedra e da folhagem,
e desce até nós, modesto e criativo,
como uma gentileza do morro.

Espaço carioca, onde o poeta aborda a violência e a gentileza (música) envolvendo os moradores.

Em “Morro da Babilônia” temos fundamentalmente um poema social. Se por um lado, por vezes, na noite, as vozes que vêm do morro provocam terror, por outro lado, também, as vozes do morro não são necessariamente lúgubres pois dele vem, de vez em quando, o som de um cavaquinho bem afinado, “que é uma gentileza do morro”…

9. CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte, depois morreremos
de medo e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

Neste poema, Drummond evidencia claramente o sentimento comungado por todos, simples mortais. É nele que Drummond fala do “amor que se refugiou no mais baixos dos subterrâneos, do medo que esteriliza o braço, no medo da morte e do depois da morte, e principalmente, no medo dos ditadores e no medo dos democratas”. O poema escrito há pelo menos 60 anos contrasta com a página amarela e triste da nossa história que insiste em não virar, e se tornar passado de nossas vidas.

Em “Congresso internacional do medo” Drummond com verdade e ironia coloca o medo como o grande dominador de nossa sociedade: “Provisoriamente não cantaremos o amor, que se refugiou mais abaixo do subterrâneos. Cantaremos o medo que esteriliza os abraços…”

10. OS MORTOS DE SOBRECASACA

Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,
alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,
em que todos se debruçavam
na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.
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11. BRINDE DO JUÍZO FINAL

Neste poema Drummond mostra a sobrevivência da poesia, e dos “poetas honrados”, além da morte e de todas as catástrofes.

Em “Brinde no juízo final”, o texto é modernista e homenageia os poetas populares contra os acadêmicos. Mostra a impotência da poesia burguesa no mundo capitalista. Fala que a poesia não é feita só de temas nobres, consagrados, mas de termos e temas banais. Drummond faz um brinde a essa poesia considerada, anteriormente, ridícula.

12. PRIVILÉGIO DO MAR

Neste terraço mediocremente confortável,
bebemos cerveja e olhamos o mar.
Sabemos que nada nos acontecerá.

O edifício é sólido e o mundo também.

Sabemos que cada edifício abriga mil corpos
labutando em mil compartimentos iguais.
Às vezes, alguns se inserem fatigados no elevador
e vem cá em cima respirar a brisa do oceano,
o que é privilégio dos edifícios.

O mundo é mesmo de cimento armado.

Certamente, se houvesse um cruzador louco,
fundeado na baía em frente da cidade,
a vida seria incerta… improvável…
Mas nas águas tranqüilas só há marinheiros fiéis.
Como a esquadra é cordial!

Podemos beber honradamente nossa cerveja.

No poema número 12, o autor continua detendo-se alegoricamente no problema social das diferenças humanas.

Drummond aqui destila uma ironiazinha sobre a segurança no mundo: o poeta cria uma situação em que um grupo bebe cerveja no terraço de um edifício enquanto todos olham o mar. “O edifício é sólido, o mundo também (…) O mudo é mesmo “de cimento armado”(…) Podemos beber honradamente nossa cerveja”.

Portanto, “Privilégio do mar” é uma crítica à alienação burguesa. O poeta inclui-se entre os alienados que, se não atingidos, não se mobilizam e desfrutam de certa tranqüilidade, privilegiados em suas moradias.

13. INOCENTES DO LEBLON

Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.

Trouxe bailarinas?
trouxe emigrantes?
trouxe um grama de rádio?

Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.

Ainda no enfoque da visão social, o poeta fala da riqueza: “inocentes” significa os que querem ignorar; por isto fingem e se aproveitam.

Crítica à alienação dos burgueses que “tudo ignoram, ou seja, enquanto a guerra acontece, “os inocentes passam um óleo suave nas costas, e esquecem.”

14. CANÇÃO DO BERÇO

O amor não tem importância.
No tempo de você, criança,
uma simples gota de óleo
povoará o mundo por inoculação,
e o espasmo
(longo demais para ser feliz)
não mais dissolverá as nossas carnes.
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15. INDECISÃO DE MÉIER

Teus dois cinemas, um ao pé do outro, por que não se afastam
para não criar, todas as noites, o problema da opção
e evitar a humilde perplexidade dos moradores?
Ambos com a melhor artista e a bilheteira mais bela,
que tortura lançam no Méier!

16. BOLERO DE RAVEL

A alma ativa e obcecada
enrola-se infinitamente numa espiral de desejo
e melancolia
Infinita, infinitamente…
As mãos não tocam jamais o aéreo objeto
esquiva ondulação evanescente
Os olhos, magnetizados, escutam
e no círculo ardente nossa vida para sempre está presa
está presa…
Os tambores abafam a morte do Imperador.
.

A música “Bolero de Ravel”, foi criada instintivamente pelo maestro Maurice Ravel (1875-1937), que queria fornecer um exercício prático que envolvesse todos os nypes musicais e uma orquestra (cordas, percussão, metais e sopro). Trata-se de uma canção repetitiva, que apenas retorna ao seu tema a todo instante, e a cada repetição, intensifica um pouco mais a sua força.

Drummond trabalha as características da canção no seu poema, principalmente ao citar: “infinita, infinitamente”, “ espiral de desejo” e “círculo ardente”.

Seu valor intrínseco está na capacidade contrastiva que o poeta estabelece entre a alma ativamente aplicada ao desejo e à vida e o obstáculo, a distração ou o barulho que prendem ou abafam a entrega profunda à vivência a ser protagonizada pelo homem vivo. A dinâmica da vida é destacada com leveza e verdade.

17. LA POSSESSION DU MONDE

Neste poema 17, Drummond indica o membro da Academia Francesa de Letras, em 1884, Georges Duhamel, pedindo uma risível fruta estragada; como se isso fosse, como diz o título do poema, ter o mundo nas mãos.

É nada mais nada menos que uma ironia forte a um cientista estrangeiro que larga sua teoria científica para aderir ao apelo tropical de um mamão.

18. ODE AO CINQÜENTENÁRIO DO POETA BRASILEIRO

O belo elogio do poema 18 é a palavra drummondiana a Manuel Bandeira, nascido em 1886 e que, em 1936, completava 50 anos de vida. Drummond pede que “seu canto confidencial (a poesia de Bandeira) ressoe acima dos vãos disfarces do homem”!

Trata-se de um poema terno e profundo: Este incessante morrer que nos teus versos encontro é tua vida. (…) a violenta ternura, a gravidade simples, a acidez e o carinho simples, a fidelidade a si mesmo, a fraternidade, o poeta acima da guerra e do ódio, a acidez e carinho que (…) a sua pungente, inefável poesia, ferindo as almas, sob a aparência balsâmica, queimando as almas, fogo celeste, ao visitá-las (…) Por isto sofremos pelas mensagens que nos confias.

19. MÃOS DADAS

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
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20. OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
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21. DENTADURAS DUPLAS

Dentaduras duplas!
Inda não sou bem velho
para merecer-vos…
Há que contentar-me
com uma ponte móvel
e esparsas coroas.
(Coroas sem reino,
os reinos protéticos
de onde proviestes
quando produzirão
a tripla dentadura,
dentadura múltipla,
a serra mecânica,
sempre desejada,
jamais possuída,
que acabará
com o tédio da boca,
a boca que beija,
a boca romântica?…)

Resovin! Hecolite!
Nomes de países?
Fantasmas femininos?
Nunca: dentaduras,
engenhos modernos,
práticos, higiênicos,
a vida habitável:
a boca mordendo,
os delirantes lábios
apenas entreabertos
num sorriso técnico
e a língua especiosa
através dos dentes
buscando outra língua,
afinal sossegada…
A serra mecânica
não tritura amor.
E todos os dentes
extraídos sem dor.
E a boca liberta
das funções poético-
sofístico-dramáticas
de que rezam filmes
e velhos autores.

Dentaduras duplas:
dai-me enfim a calma
que Bilac não teve
para envelhecer.
Desfibrarei convosco
doces alimentos,
serei casto, sóbrio,
não vos aplicando
na deleitação convulsa
de uma carne triste
em que tantas vezes
me eu perdi.

Largas dentaduras,
vosso riso largo
me consolará
não sei quantas fomes
ferozes, secretas
no fundo de mim.
Não sei quantas fomes
jamais compensadas.
Dentaduras alvas,
antes amarelas
e por que não cromadas
e por que não de âmbar?
de âmbar! de âmbar!
feéricas dentaduras,
admiráveis presas,
mastigando lestas
e indiferentes
a carne da vida!

Sátira bem construída e bem humorada, o poema nos mostra que através das dentaduras chega a focalizar a evanescência da vida que se vai aos poucos: “admiráveis presas, mastigando lestas e indiferentes a carne da vida”.

Há associações surpreendentes, influência surrealista e o deboche do próprio envelhecimento do eu-lírico.

Portanto, o tema deste poema dedicado a Onestaldo de Pennafort, é a velhice.

22. REVELAÇÃO DO SUBÚRBIO

Quando vou para Minas, gosto de ficar de pé, contra a vidraça do carro,
vendo o subúrbio passar.
O subúrbio todo se condensa para ser visto depressa,
com medo de não repararmos suficientemente
em suas luzes que mal têm tempo de brilhar.
A noite come o subúrbio e logo o devolve,
ele reage, luta, se esforça,
até que vem o campo onde pela manhã repontam laranjais
e à noite só existe a tristeza do Brasil.”

Este poema nos remete à idéia de que o mundo tem sentimento. As luzes são precárias e a aurora traz a visão das frutas, fatia saborosa da vida.

O título do poema reflete o inusitado efeito estético das luzes do subúrbio aos olhos daqueles que o observam durante uma viagem noturna.

O ambiente noturno interiorano é triste e contrasta com o ambiente suburbano, cheio de luzes. O “eu” lírico vê tristeza e simplicidade no cenário do subúrbio.

Ao lermos o poema percebemos que a viagem do “eu” lírico rumo a Minas Gerais dura aproximadamente um dia.

23. A NOITE DISSOLVE OS HOMENS

A noite
desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tão pouco os rumores que outrora me perturbavam.
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24. MADRIGAL LÚGUBRE

“Madrigal lúgubre” é um tocante e trágico poema em tempo de guerra.

Poema lírico, pastoril, que valoriza um cenário alegre, bucólico, matinal e amoroso. O adjetivo lhe traz feições funéreas e macabras. Leia mais

25. LEMBRANÇA DO MUNDO ANTIGO

Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranqüilo em redor de Clara.

As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das onze horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!

Novamente a persona-lírica fala da miséria humana e dos horrores da guerra (como em “Madrigal lúgubre”), contrasta passado e presente usando a figura feminina como contraponto: uma mulher chamada Clara.

As exclamações triplas substituem as reticências, tão comuns neste livro. Pedem que com urgência e espanto se observe que a vida foi modificada, e que o nosso mundo não é mais o mesmo. E que a mudança é recheada de horror.

26. ELEGIA 1938

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações no encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
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27. NOTURNO À JANELA DO APARTAMENTO

Contemplação da noite e o farol da Ilha Rosa. Traz a idéia do fluxo da vida circulando.

Sentimento de sátira: poemas em que predominam a sátira e a ironia.

28. MUNDO GRANDE

Nao, meu coração não é maior que o mundo.
Ê muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo.
Por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
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