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Seringal, de Miguel Ferrante

by Lucas Gomes

O romance Seringal, de Miguel Ferrante, publicado em 1972, desperta a atenção
dos estudiosos da Literatura de Expressão Amazônica devido à amplitude dos questionamentos
suscitados sobre o homem e sua relação com as forças dominantes. Além da diversidade
de tendências literárias, Seringal é uma obra impregnada pela concepção
determinista, segundo a qual o homem é subordinado ao condicionamento hereditário,
biológico e instintivo; e ao condicionamento ambiental, social e climático.

Espaço / Tempo

Os principais fatos da narrativa ocorrem no seringal Santa Rita, situado no Vale do Acre, de propriedade do
coronel Fábio de Alencar, pelo idos da década de 40, do século XX, quando o Acre vivenciava o seu último
Ciclo da Borracha.

Ação

A ação se desenvolve a partir do momento da chegada do adolescente Toinho à sede do Santa Rita, para que
seu padrinho, o coronel Fábio, tome conta dele, pois além de afilhado, o moleque é também filho de
seringueiro, “é cria do Santa Rita”.

A tensão na narrativa é desencadeada quando Paula, com apenas 12 anos, após ser
estuprada por Carlinhos, o filho do prefeito, vai aos poucos definhando, o que
leva Toinho a questionar consigo mesmo, a violência, a injustiça, o crime impune
praticado contra a menina. Questionamentos esses que culminaram numa atitude de
rebeldia contra seu padrinho, o coronel Fábio, a quem competia na condição de
“Senhor Feudal” do Santa Rita, fazer justiça. Esse “Senhor”, além de acobertar
o crime de Carlinhos, seu outro “afilhado”, não permitiu que a garota violentada
recebesse a devida assistência médica, orientada pelo Padre José, que, atendendo
ao pedido de Toinho, fora ver Paula já nos seus momentos mais críticos.

Chega o dia determinado pelo Coronel Fábio para Toinho assumir uma colocação, isto é, a responsabilidade
pela extração do látex de um determinado número de estradas de seringa. É este o momento mais crucial para
o rapazola: deixar Paula nos últimos momentos da vida dela. Movido por sentimentos indescritíveis, entre a
revolta e o horror do ato que se ensaiava dia-a-dia no seu subconsciente:

O menino parece um animal acuado, perdido na aflição, como se alguma coisa se quebrasse dentro dele e a
mente se esfarelasse nas engrenagens do pavor. Uma vontade desvairada de gritar, de lançar-se às águas
brilhantes do Aquiri, de desaparecer. E os sentido turvados, semiconscientes, a prendê-lo, aos farrapos da
realidade, a adverti-lo do perigo, a impedi-lo em busca do auxílio
(p. 132).

No instante da despedida, quando devia estender a mão para pedir a bênção ao padrinho, repentinamente “na
desesperação do grande medo, ergueu a arma e atirou” contra o todo-poderoso Coronel Fábio de Alencar e
“ficou ali como se estivesse chumbado ao chão, contemplando horrorizado a cena, sem compreender o que
fizera”. Em seguida, diante do quadro que se formava a sua frente: todos a socorrer o coronel;
“instintivamente, pressentindo o perigo, pôs-se em debandada.(…) E como um autômato, embrenhou-se na
mata”.

Personagens

Em torno de Toinho, outras personagens têm destaque:

– Paula
– Cazuza (o guarda livros);
– o velho Mané Lopes
– Coronel Fábio
– Margarida
– Amâncio
– Lina
– Pedro Câmara
– Zé Leite
– Padre José
– Carlinhos
– Adelmar
– Raimundão e outros seringueiros.

Todos vivendo no mesmo espaço, com exceção de Carlinhos, Padre José e o candidato a deputado, Adelmar, que
visitam o seringal periodicamente, de acordo com seus interesses ou ofício, neste particular situa-se o
Padre José, que visita o Santa Rita nos períodos de “desobriga”, durante os quais realiza batizados e
casamentos.

Estilo literário

Pelo prefácio da primeira edição de Seringal, alguns estudiosos, inscrevem
o romance de Miguel Ferrante na tendência Naturalista, por guardar vínculos que
assim o caracterizam. No entanto, Caio Porfírio Carneiro, em nota explicativa
sobre o romance Seringal, faz uma ressalva, ao afirmar que “o ranço naturalista”
perdeu o sentido na Literatura Brasileira e Universal, e ao reaparecer no romance
Amazônico, surgiu renovado e sem travo.

O Naturalismo se manteve numa atitude de reação à literatura individualista. Busca, portanto, o
objetivismo, mantém o vínculo com o real sensível, o que dá à literatura o cunho de documentário das
misérias do homem que, subjugado às leis naturais e sociais, conforma-se às peias do atavismo.

A título de exemplo, Zé Leite, pai de Toinho, aos poucos foi definhando na floresta, elemento superior
“muralha maciça… debruça-se agressivamente sobre a clareira aberta pelo homem” que, além de encarcerado
na “floresta diabolicamente verde… dominadora, enfurecida” vai sucumbindo pelas condições do trabalho e
de vida, quase desumanizada, no condicionamento do meio, da miséria e da ignorância.

Ainda à luz do Naturalismo, a obra tematiza fatos repulsivos, apresenta o homem como presa de instintos,
capaz de atrocidades para satisfazer seus desejos sexuais. A menina-moça, Paula foi estuprada por Carlinhos
na frente de sua mãe, entrevada numa rede, sem poder defendê-la da luxúria e da violência do afilhado
protegido do coronel Fábio. A ação violenta foi atiçada pela baixeza do caráter de Raimundão, uma espécie
de capataz do seringal Santa Rita.

Raimundão é apresentado ao leitor em linguagem simples, direta, coloquial e até mesmo vulgar: O Raimundão,
aquele preto bandido, deu um conselho para ele: “burro a gente amansa a pau, seu Carlinhos, não é com
agrado, não. Essa linguagem é mais precisa na reprodução da língua falada pelas classes sociais
brutalizadas e sem instrução escolarizada.

O Realismo, matriz do Naturalismo, também se faz presente pelo método documental, pela representação
concreta das personagens, seu caráter e os motivos humanos que dominam as ações. A recorrência ao adultério
como temática presente é ilustrada em Lina, que trai seu marido, Pedro Câmara, abandona os filhos e foge
com Chico Xavier, meeiro e companheiro de trabalho do marido. Lina privilegia a realização individual
(carnal), em detrimento de quaisquer outros “bens”:

Pedro Câmara avista-os perto do barração,… aproxima-se… abraça-se com ela e suplica-lhe, que volte, que
não deixe as crianças sozinhas. Lina está ali, insensível aos seus rogos.

No entanto há, nesse aspecto, uma renovação do tratamento dado ao adultério pelos realistas do século XIX:
não há mascaramento do fato, nem a dissimulação da mulher perante o marido e a sociedade. Há, assim, uma
interpretação da vida retratada objetivamente, dentro do contexto de cada época e espaço.

Do mesmo modo das narrativas realistas, a narrativa no Seringal move-se numa lentidão de vai-vem, de marcha
quieta e gradativa, meandros dos conflitos, dos êxitos e fracassos:

Clemente espreguiça-se, cuspinha o fumo, Levanta-se a piscar os olhos grandes à luz ofuscante o sol.

– Entonces-diz num fio de voz suave, sem ódio – tu tira a mulher de teu companheiro e ainda mata ele.

Os traços Modernistas, presentes na obra, consistem nas falas dos seringueiros quando em que a linguagem
solta, reprodução vocábulos e expressões de inspiração regional e popular como em:

Vagabundava pelo campo quando a viu, à porta da barraca, o vestido de chita a desenhar-lhe o corpo esquio,
os pés descalços, os longos cabelos negros, escorrendo-lhe pelos ombros.

A construção da trama está centrada numa região particular, onde tudo parece germinar desse local, ou seja,
do seringal Santa Rita, cujos habitantes sobrevivem, não do labor da terra, mas da luta pela sobrevivência
na floresta selvagem, onde a arma de fogo é símbolo justiça e proteção ou instrumento de dominação. O som
que dela ecoa é meio de comunicação: “A espingarda é o sino do seringal, detonando pelo nascimento e pela
morte…”.

Regionalismo é mais presente num “caipirismo” dos miseráveis, no qual a personagem Zé Leite, pai de Toinho,
é corroído pela desesperança e pela doença levando-o à morte, assemelhando-se aos “Jecas’ (Jeca Tatu, de
Monteiro Lobato):

Cidade? Que iria fazer lá? Não sabia ler, não tinha profissão. No tinha medo da multidão, do burburinho da
cidade. Agricultura? A terra custava dinheiro… estava acima de suas esperanças (…) Encontraram-no,
afinal, fulminado por colapso, ao pé de uma seringueira…

Durante a leitura do romance pudemos fazer uma revisita ao Romantismo na maneira com Toinho vê Paula, na
efusão lírica diante dos olhos verdes dela, que lhe permite vislumbrar o mar; o mar das histórias contadas
por Seu Cazuza, o Guarda-livro do Barracão. A imensidão do mar, metáfora da liberdade, aspirada por Toinho:

Aproximou-se tímido, meio encabulado, sob o impulso de súbita simpatia. Por um instante, ficaram um
diante do outro,… Era como se sonhasse um sonho bom. (…) O mar imenso e majestoso, junto dos olhos de
Paula, a chamá-lo das lonjuras do impossível.

Um momento lírico, vivido em um dado instante, a impressão do olhar de Paula nos seus, despertando um
sentimento mútuo, imprimindo na memória de Toinho a imagem de Paula e nela a miragem do mar verde que
emergia nos momentos de inconformação à “justiça do mando-desmando- perpétuo dos Senhores dos Santa Rita”.

Nessa mescla de tendências, percebe-se nuances simbolistas e impressionistas nos elementos místicos e
espirituais orientadores das concepções que as personagens têm da vida, melhor dizendo, da morte. Os
seringueiros, depois de enterrarem o corpo do Zé Leite, jogaram sobre o cadáver um punhado de terra, para
que o mesmo “não viesse incomodar os vivos”.

Quanto à estrutura, embora se possa apontar algumas “quebras” de efeito estético negativo, o romance
apresenta uma estrutura moderna, pois, no decorrer da narrativa observa-se que não há seqüência rígida de
fatos, a título de exemplo citemos o capítulo IV e V, onde ocorre uma quebra, (nesse caso positiva) no
discurso, do narrador quando insere a história de Chico Xavier e Lina. Logo depois, passa à fundação da
escola do Santa Rita e aos episódios “miúdos” em torno deste fato principal, havendo assim uma polarização
de assuntos, bem como a polarização de personagens que se apresentam em grande número, resultando assim na
diluição do enredo, característica das obras modernas.

O modernismo em Seringal não ocorre porque a obra tenha apresentado inovações ou inaugurado algum
cânone, mas por conceber o Modernismo como a confluência de várias tendências que permite aos escritores
usá-las ou não de acordo com seu estilo individual e gosto.

Na época em que Miguel Ferrante publicou Seringal (1972), o Modernismo ou Neo-Modernismo brasileiro
encontrava-se sob o cânone instaurado por João Guimarães Rosa, que a partir de 1946, com seu
experimentalismo lingüístico e estrutural, redefiniu os padrões para a narrativa contemporânea.

Assim, o romance Seringal destoa do cenário literário, sua recepção é incipiente e até pouco
favorável pela crítica, o que não impede que haja um processo ao contrário e que sob novos ângulos a obra
ganhe maior valoração nos dias atuais. De nossa parte, detivemo-nos na leitura para a apreensão das
tendências que se sobressaíram, descobrimos que nesse aspecto a obra é rica pelo fato do autor não se
limitar a uma única escola literária e sim extrair “delas” o que melhor convém para dar um toque da
realidade transfigurada da vida na selva amazônica.

A obra resgata o Romantismo na pureza dos primeiros sentimentos juvenis, no amor quase angelical de Toinho
e Paula, e na forma como o jovem enamorado elabora com docilidade e imagem da amada. Em situação oposta, o
Realismo e o Naturalismo “pinta os ganchos” da vida, explora as camadas mais baixas do ser, instintivo e
carnal, na figura de Carlinhos, o estuprador de Paula. Mostra o condicionamento do homem ao meio na
conformação com as imposições do ambiente e do modo de estruturação social. De modo geral, podemos dizer
que estamos diante de uma obra eclética que resgata o que de melhor temos em termos de tendências
literárias, além de se constituir em documento artístico sobre a vida do amazônida.

Fontes: COUTINHO, Afrânio. A era modernista. In: A Literatura no Brasil. São Paulo,Global, 1997.
Vol. V.

________ A era Realista. In: A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Americana, 1969.
JAUSS, Hans R. A História da Literatura como provocação à Teoria Literária.
São Paulo, 1994.

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