O soneto Tanto de meu estado me acho incerto, de Luís de Camões,
é inspirado no neoplatonismo, em Petrarca e na lírica trovadoresca.
O soneto promove uma intersecção de resíduos medievais,
procedimentos clássicos renascentistas e antecipações barrocas.
O tratamento distanciado da figura feminina, tratada, como nas cantigas de amor
trovadorescas, respeitosamente por “Senhora” e a intermediação
dos sentimentos, que provoca apenas a sua contemplação, “só
porque vos vi”, sugerem, na construção dessa imagem espiritualizada
da mulher, a atitude medieval.
Leia o poema:
Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, justamente choro e rio,
O mundo todo abarco e nada aperto.
É tudo quanto sinto, um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.
Estando em terra, chego ao Céu voando;
Numa hora acho mil anos, e é jeito
Que em mil anos não posso achar uma hora.
Se me pergunta alguém por que assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.
A adoção da métrica decassilábica e da forma fixa
do soneto; a adesão aos postulados da medida nova; a seleção
do léxico, sóbrio, claro, elegante; enfim, a estrutura formal
remete à atitude clássica. Renascentista é também
a figura masculina, humanizada, terrena, que sente, chora, ri, desvaria, acerta
e tenta raciocinar sobre suas desencontradas reações.
A construção antitética e a intensidade dos sentimentos,
esta última refletida nas hipérboles líricas, são
prenúncios da atitude maneirista e barroquizante.
A inquietação do poeta manifesta-se por meio da construção
antitética e pradoxal, e a intensidade de seus sentimentos, por meio
de hipérboles líricas. O caráter dramático da composição
resulta da constente tensão entre aparência e essência, construída
pelo sistema de oposição do texto:
ardor x frio
o mundo todo abarco x nada aperto
alma x vista
fogo x rio
espero x desconfio
desvario x acerto
terra x Céu
O poeta tem consciência de seu drama, de seu desconcerto:
Numa hora acho mil, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar uma hora.
Prosodicamente, esse teor dramático é reforçado pela reiteração
do prefixo “des”: “desconcerto”, “desconfio”,
“desvario”, além da conjunção condicional “se”,
que inicia o primeiro verso do último terceto, aliás conjunção
marcante na lírica camoniana, que traduz a indecisão causada pelo
“desconcerto”.
Logo no primeiro verso, o eu-lírico afirma a “certeza de sua incerteza”,
exprimindo, a partir daí, sucessivamente o desconcerto: de ser (“…e
é de jeito / Que em mil anos não posso avhar
uma hora”); de estar (“…tremendo estou de frio; …Estando
em terra, chego ao Céu voando”).
Interrogando sobre a causa de seu drama (verso 12), o resultado é de
negação: “respondo que não sei”. Contudo,
sem poder afirmar, o eu-lírico “desconfia” que a resposta está
no ver, está no amor:
…porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.
O ver é a única possibilidade do sentimento poder “confiar”,
poder encontrar a causa de seu estado; causa que se confirma pela repetição
da conjunção causal porque. Causa do estado provocada
pelo sentir. (“…por que assim ando” — “porque
vos vi, minha Senhora”).
O motivo possível para o desconcerto do poeta é a mulher idealizada,
presença do seu imaginário, caracterizada pelo pronome possessivo
minha, além do caráter evocativo da expressão
“minha Senhora“.
O tempo articula outro aspecto fundamental à compreensão do soneto.
O poeta presentifica o tempo (“acho“, “vivo“,
“estou” etc.), enfatizado na segunda estrofe pela repetição
do advérbio agora, tempo em tensão, inscrito no jogo
das oposições:
agora — desconfio
agora — acerto
Este presente se prolonga por meio do gerúndio: “tremendo”
(verso 2) e “Estando” (verso 9).
Mas a possibilidade de “concerto” está no passado (“porque
vos vi”). Esse redimensionamento do tempo é o que permite deduzir
a possibilidade / impossibilidade de “concerto”. As tensões
entre: aparência e essência, presente e passado, alegria e tristeza,
ser e estar, certeza e incerteza e afirmação e negação
constituem o eixo em que se apóia a construção do discurso
poético.