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Terça-feira gorda (Conto), de Caio Fernando Abreu

by Lucas Gomes

Terça-feira gorda

, conto de Caio Fernando Abreu, narrado em
primeira pessoa, põe em destaque a voz de um personagem masculino que
vivencia uma experiência erótica com um homem. Ao relatar sua própria
história, o personagem carrega de subjetividade o texto, acentuando o
impacto de, ao mesmo tempo, sentir um grande prazer, resultado de seu envolvimento
afetivo e sexual, e assistir a uma condenação social, representada
pela ação dos “outros” que agridem os dois e repreendem
a sua relação.

A atração sexual entre dois homens se dá num baile de
carnaval. Curiosamente, o carnaval é uma festa pagã, onde por
tradição o desregramento é a tônica da festa. No
entanto, é durante o baile de carnaval que começam as primeiras
manifestações de intolerância e agressão.

O texto é carregado de subjetividade. O prazer da atração
e do envolvimento afetivo e sexual é confrontado com a repressão
a uma relação que ousa ser diferente, quebrando os rígidos
costumes, ditados por valores de moral e ética. Mais uma vez, o diálogo
não consegue se estabelecer. A relação “anormal”
é punida com violência.

A cena de envolvimento entre os personagens é relatada logo no início
do conto, quando é sugerido um “reconhecimento” entre os
dois futuros amantes:

De repente ele começou a sambar bonito e veio vindo para mim. Me
olhava nos olhos quase sorrindo, uma ruga tensa entre as sobrancelhas, pedindo
confirmação. Confirmei, quase sorrindo também, a boca gosmenta
de tanta cerveja morna, vodca com coca-cola, uísque nacional, gostos
que eu nem identificava mais, passando de mão em mão dentro dos
copos de plástico
. (1995: 50)

A identificação entre os personagens se dá tanto no plano
do prazer quanto no do sexual. Como já visto, ambos vivenciam uma relação
homoerótica em meio a uma festa de carnaval:

Na minha frente, ficamos nos olhando. Eu também dançava agora,
acompanhando o movimento dele. Assim: quadris, coxas, pés, onda que desce,
olhar para baixo, voltando pela cintura até os ombros, onda que sobe,
então sacudir os cabelos molhados, levantar a cabeça e encarar
sorrindo. (…) Eu queria aquele corpo de homem sambando suado bonito ali na
minha frente. Quero você, ele disse. Eu disse quero você também.

(1995: 51)

A postura dos personagens permite reconhecer que não há nenhum
tipo de preconceito quanto a envolvimentos entre pessoas do mesmo sexo, o que
nos direciona a pensar numa total liberdade de opção sexual. Esta
liberdade é melhor apreendida nesta passagem do conto:

Tínhamos pêlos, os dois. Os pêlos molhados se misturavam.
Ele estendeu a mão aberta, passou no meu rosto, falou qualquer coisa.
O quê, perguntei. Você é gostoso, ele disse. E não
parecia bicha nem nada: apenas um corpo que por acaso era de homem gostando
de outro corpo, o meu, que por acaso era de homem também. Eu estendi
a mão aberta, passei no rosto dele, falei qualquer coisa. O quê,
perguntou. Você é gostoso, eu disse. Eu era apenas um corpo que
por acaso era de homem gostando de outro corpo, o dele, que por acaso era de
homem também.
(1995: 51)

Se, por um lado, a postura dos personagens desestabiliza qualquer tipo de pensamento
conservador, por outro lado, o comportamento dos “outros” manifesta
uma tentativa de impor regras de conduta baseadas na oposição
binária homem/mulher como padrão legítimo de relação
sexual. Esses outros, cujas vozes aparecem embutidas na fala do próprio
narrador, representam uma voz social da estrutura de macro-poder, já
que é dela que partem as regras. O fragmento a seguir ilustra o “olhar”
desses que julgam e condenam: “Passou a mão pela minha barriga.
Passei a mão pela barriga dele. Apertou, apertamos. As nossas carnes
duras tinham pêlos na superfície e músculos sob as peles
morenas de sol. Ai-ai, alguém falou em falsete, olha as loucas, e foi
embora. Em volta, olhavam.
” (1995: 51)

As vozes que, irônicas e maldosas, manifestam indignação
e preconceito revelam também uma incapacidade de aceitar uma ruptura
com códigos repressivos e conservadores, fazendo com que numa festa onde
o “desregramento” é a tônica maior, como no carnaval,
a postura de liberdade e ousadia, própria da cultura carnavalesca, seja
abolida. Esse rompimento com tudo o que, à primeira vista, é permitido
no carnaval leva à constatação de um paradoxo de nossa
sociedade, uma vez que aceita um desregramento nas festas e condena atitudes
de liberdade, no caso a sexual. O carnaval, neste conto, alegoriza a própria
tessitura de violência sombria mesclada a explosões circunstanciais
de euforia e aparente desregramento que caracterizam um modo de ser ‘alegre’,
irresponsável e brutal.

O lado avesso da sociedade é reconhecido pela ironia de a repressão
acontecer justamente no carnaval. O carnaval torna-se, no conto, signo de uma
ironia amarga: a intolerância tropical manifesta-se nele e, mais, por
meio dele. Repressiva e dissimulada, a sociedade que celebra o Momo é
a mesma que, ambivalente com a identificação de limites, reage
violentamente quando, por alguma razão, os limites tornam-se claros.
A representação da repressão sexual no carnaval torna a
narrativa ainda mais crítica porque questiona o conservantismo social
e também uma liberdade previamente garantida nas festas populares do
Carnaval. O fragmento a seguir ilustra tal característica do conto, ao
propor a inversão de máscaras:

Veados, a gente ouviu, recebendo na cara o vento frio do mar. A música
era só um tumtumtum de pés e tambores batendo. Eu olhei para cima
e mostrei olha lá as Plêiades, só o que eu sabia ver, que
nem raquete de tênis suspensa no céu. Você vai pegar um resfriado,
ele falou com a mão no meu ombro. Foi então que percebi que não
usávamos máscara. Lembrei que tinha lido em algum lugar que a
dor é a única emoção que não usa máscara.
Não sentíamos dor, mas aquela emoção daquela hora
ali sobre nós, eu nem sei se era alegria, também não usava
máscara. Então pensei devagar que era proibido ou perigoso não
usar máscara, ainda mais no carnaval.
(1995: 52)

A imposição de regras de comportamento implica também
a exclusão do ser diferente ou do ser que não se adecua às
normas. No conto, um dos personagens é espancado e morto pelos ”outros”,
por aqueles que não toleram a relação homoerótica.
O narrador descreve da seguinte forma o espancamento:

Quis tomá-lo pela mão, protegê-lo com meu corpo, mas
sem querer estava sozinho e nu correndo pela areia molhada, os outros todos
em volta, muito próximos. Fechando os olhos então, como um filme
contra as pálpebras, eu consegui ver três imagens se sobrepondo.
Primeiro o corpo suado dele, sambando, vindo em minha direção.
Depois as Plêiades, feito uma raquete de tênis suspensa no céu
lá em cima. E finalmente a queda lenta de um figo muito maduro, até
esborrachar-se contra o chão em mil pedaços sangrentos.
(1995:
53).

A representação da morte através da metáfora da
fruta que se despedaça no chão conduz ao desnudamento de uma “política
da sexualidade” contrária às relações homoeróticas.
A morte do personagem impossibilita a transcendência e assegura uma finitude
provocada pela agressão violenta de um grupo de pessoas. O final trágico
do relacionamento entre os dois homens deixa transparecer uma visão negativa
da percepção da sociedade sobre as sexualidades excêntricas,
acentuando um sentimento de desconforto e isolamento daqueles que sofrem a repressão.
Há possibilidade ou garantia de liberdade sexual? O conto mostra que
não e, por isso, percebemos uma perspectiva melancólica na narrativa.
Uma leitura do conto indica que há motivos para se projetar uma tristeza,
só que neste caso não são motivos de crise existencial,
mas razões de cunho moral, social, ideológico.

A imagem do corpo morto na areia também sugere falta de humanidade.
Separado de seu companheiro e esmagado por “os outros todos que estavam
em volta
”, o suplício enfrentado pelo personagem ultrapassa
os limites da tolerância. O conto sugere uma inversão do construção
ideológica que associa uma das festas mais populares à liberdade
em suas múltiplas formas. A opção por representar a repressão
sexual no carnaval é também significativa para a percepção
do teor melancólico do conto. O conto de Caio Fernando Abreu situa a
percepção sobre a moralidade burquesa, que considera intolerável
a adoção de papéis sexuais contrários ao padrão
dominante imposto.

Considerando a conjuntura sócio-histórica brasileira, é
possível reconhecer na mensagem sombria do conto um outro indício
de melancolia, que agora aparece em decorrência de uma experiência
problematizada pelo próprio protagonista do texto. A narrativa de Caio
Fernando Abreu pinta uma morte sofrida, mas o faz de maneira a reavaliar a vida.

Fonte: Luana Teixeira Porto, UFSM

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