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Terra de Santa Cruz (Livro), de Adélia Prado

by Lucas Gomes

Terra de Santa Cruz

, livro de poemas de Adélia Prado, lançado em 1981,
reúne poemas escritos em linguagem coloquial, inovadora e estranhamente imbuída de
religiosidade e erotismo.

A religiosidade de Adélia Prado é que revela a medida de seu ineditismo. Nota-se,
contudo, que ela não formula ética alguma, seu compromisso com Deus estando limitado
aos ensinamentos catequéticos e a noções populares restritas ao espaço religioso de
Minas Gerais. E, ao contrário do que ainda se supõe, a mulher revelada por Adélia
Prado não consagra libertação alguma, revela, sim, a mulher provinciana, repetitiva,
cuja eroticidade só se torna conhecida por resultar de conflitos e paradoxos como
escreveu no poema “Mulher Querendo Ser Boa”, da obra em questão:

Ó Deus, não me humilhe mais
com esta coceira no púbis

Na sua poesia, as imagens tradicionais do Deus antropomorfizado, Pai e Senhor, que
se refletem na idealização do marido, não eliminam as raízes históricas de sua
“árvore ginecológica”.

Sua poesia, porém, é grande poesia, resgata, sem exageros, o coloquialismo e o
registro oral, e afina a arte dificílima de intitular. Sendo o título quase sempre
uma “conexão” com o texto, integrando-se a ele, é de fato marcante observar a
relativa falta de alusões a outras leituras que não as bíblicas. De certo modo,
em Terra de Santa Cruz, quase não é possível vislumbrar mudanças significativas
ou evoluções na sua poesia. A matriz teológica persiste, sob a célebre oposição
entre o divino e o humano, como podemos observar neste verso do poema “Terra de
Santa Cruz”, que dá título à obra:

Nada, nada que é humano é grandioso.

Adélia Prado cita o exemplo de Jó amiúde em seus poemas, revelando tanto sua
admiração em relação às qualidades da personagem bíblica quanto sua compreensão
no que diz respeito às suas fraquezas. Para Adélia Prado, Jó é uma prova de
que até mesmo os que possuem a fé mais ardorosa podem, um dia, duvidar, blasfemar
e lançar impropérios ao Sagrado. Jó é como um bode expiatório que garante aos
demais servos de Deus a possibilidade de também, como ele, fraquejar. É o que
expõe um dos versos do poema “Terra de Santa Cruz”:

“e não sendo melhor do que Jó choro meus desatinos”.

Do mesmo modo, a poesia erótica chega à obra Terra de Santa Cruz:

Meu coração bate desamparado
onde minhas pernas se juntam.

Este livro, no entanto, revela certa crise, na qual se misturam a proximidade da
velhice e a perda de algumas certezas religiosas, embora a sucessão de livros
parecesse indicar uma continuidade monocórdica que ameaçou comprometer sua poesia.

No livro Terra de Santa Cruz há sintomas de uma crise no ethos poético
adeliano. O que ocorre é o anúncio da mudança que está preste a acontecer, mostrando
os processos da vida em seus ciclos de alegrias, dores, reconhecimento e superação.

A religiosidade e sexualidade que tanto chamam atenção como parte de seu estilo,
estão inscritos nesta realidade que é viver, na qual ela busca as raízes carnais e
as asas do espírito. O que Deus uniu o homem não seara, ela diria.

Em Terra de Santa Cruz o império das coisas é tão absoluto que as próprias
palavras se mostram densas e sólidas como as coisas. A palavra erudita distancia das
coisas, no caminho da reconquista do mundo que impregna os sentidos.

Adélia se nutre da linguagem coloquial e reinventa o verso longo. Distancia-se do
ritmo medido, cerebral, de João Cabral. Adélia escreve instintivamente. Volta-se a
ouvir o tom de conversa, o vocabulário familiar dos poetas de 22. A realidade
cotidiana mostra-se na linguagem de todos os dias.

POEMAS ESCOLHIDOS

CASAMENTO

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como ‘este foi difícil’
‘prateou no ar dando rabanadas’
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Poema dedicado ao casamento e à rotina que, executada por seres que se amam,
adquire foros de atos de amor. Adélia Prado confere lirismo ao mundo da mulher
concentrado na vida doméstica. Contudo, não idealiza a realidade que representa,
descarnando-a, senão que traduz suas peculiaridade no contexto do erotismo latente
que existe em cada ato, mesmo os que transcendem o indivíduo.

NOITE FELIZ

Dói tanto que se pudesse diria:
me fere de lepra.
Mas que importa a Deus o monte de carne podre?
Tem piedade de mim, Vós, cujo filho duas vezes gritou,
apesar de ser Deus. Me dá um sonho.
É como se meu pai não me amasse
e não tivesse dado a vida por mim.
Só belos versos, não.
Uma linha depois da outra,
tão finamente escritas,
com tão primoroso fecho
– e o que sinto é cansaço.
Basta a beleza própria
da estocada das coisas no meu peito.
Comer, sonhar, talvez morrer, quem sabe?
A morte existe, ô pai?
Sei que na Polônia católica
ninguém escreveu com estas mesmas palavras
na carrocinha de doces:
‘Para todos e sua família desejo um feliz natal.’
No Brasil sim, na minha rua,
usando uma língua pobre e uma caneta de cor,
alguém sentiu o inefável.
Não se perderá o fermento, ó comadre.
Bebem? Não pagam as contas?
– Vamos fazer um teatro.
Tem a máscara do boi, do burro,
as vestes de José e Maria,
tem a roupa do homem que negou hospedagem
mas que veio depois, depois da estrela,
dos anjos, depois dos pobres pastores, e que mais recebeu.
Porque não merecia.
Sou miserável.
Um monte de palha seca
é obra de minhas mãos.
Tem piedade de mim,
desce, orvalho do céu,
desce sobre nós,
restabelece o fio das conversas saudáveis.
Traze a fresca manhã.

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