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Tropicalismo

by Lucas Gomes

Me dá um beijo, meu amor

Esta frase, parte da letra da música É proibido proibir, de Caetano Veloso, reflete o auge do movimento musical mais importante do nosso país: O Tropicalismo.

Já no Festival de MPB de 1967, veríamos nascer, com Alegria, alegria e Domingo no parque, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, respectivamente, a Tropicália ou o Tropicalismo.

Mas a vida política do País, regida pelo autoritarismo dos governos militares, descambou de uma vez. Em 1968, o então presidente Arthur da Costa e Silva assinou o Ato Institucional n° 5, legitimando, por decreto, a censura prévia a todos os veículos de comunicação em território nacional, as prisões arbitrárias e as cassações de mandatos políticos. A violência e a tortura passaram a ser a forma de o Estado “dialogar” com seus adversários políticos. O Brasil viveu os próximos cinco anos num verdadeiro clima de terror político, revivendo os tempos do Estado Novo, do rádio e do DIP. Da mesma forma que naquela época, como já vimos, agora também nossa produção cultural era peneirada. Em fins dos anos 60 e inícios dos anos 70, repetindo antigos esquemas, só viriam a público a música, a peça de teatro, o livro, enfim, o produto cultural que os censores julgassem adequados ao momento político. Qualquer obra considerada ofensiva ao Estado seria proibida e seu autor ficaria sob a estreita vigilância do DOPS – Departamento de Ordem Política e Social.

Surgiam, então, as organizações paramilitares de direita e de esquerda: o CCC – Comando de Caça aos Comunistas – nome que dispensa maiores comentários, e diversos grupos partidários da guerra de guerrilha, cujo objetivo era promover a revolução socialista no País.

Ainda em 1968, em São Paulo, um episódio grosseiro, de verdadeiro vandalismo, abalou a vida cultural brasileira. A peça Roda-viva, de Chico Buarque, foi paralisada em plena apresentação. Membros do CCC invadiram o teatro, espancaram atores, espectadores e saíram em fuga. Apesar de terem sido reconhecidos, nunca foram procurados pelos órgãos responsáveis. A omissão do Estado só viria a confirmar sua cumplicidade.

No plano econômico, porém, vivíamos a euforia do “milagre brasileiro”, cujas conseqüências causaram enorme impacto reacionário no governo Geisel e se faz sentir até nossos dias. A política desenvolvimentista do então Ministro do Planejamento, Antônio Delfim Netto, agitou a economia brasileira e as bolsas de valores. Determinados segmentos da classe média que “apostaram” na estratégia econômica do Ministro, fazem hoje parte do fechado clube dos “novos ricos”. O enriquecimento rápido deu-se principalmente pelo boom nas bolsas de valores de São Paulo e do Rio. O movimento de ações causava delírio entre corretores e investidores. O poder aquisitivo do cidadão brasileiro aumentara, justamente por causa da política desenvolvimentista, que, sem mecanismos de controle inflacionário, faria mais tarde a inflação disparar. Vivíamos o momento que anteciparia a fase populista do “Brasil, ame-o ou deixe-o” e do “Ninguém segura este pais”.

Mas foi no início de 1969, pouco antes do clima de euforia econômica, de terrorismo político e de destruição da produção cultural brasileira, que o Movimento Tropicalista viveu seus últimos momentos. Se o endereço original da bossa nova fora o Rio de Janeiro, o Tropicalismo nasceria em São Paulo, formado por um grupo de cantores e compositores liderados por Caetano Veloso, Gilberto Gil, o maestro Rogério Duprat e o poeta Torquato Neto. Presenciávamos também nessa época o fim dos grandes festivais, pois como novidade já se haviam esgotado e como manifestação politico-cultural já não podiam usar o mesmo discurso.

O governo autoritário do presidente Médici iria condicionar, como veremos adiante, a linguagem política na arte brasileira de acordo com suas conveniências.

O Tropicalismo “sacode” nossa vida musical

Convém voltarmos um pouco atrás no tempo e no espaço para melhor entendermos a revolução da Tropicália. Depois das apresentações de “O Fino da Bossa” em 1965 e do Show “Opinião”, em 1964-5, com João do Vale, Maria Bethânia, Zé Kéti e Nara Leão, ocorre a descaracterização da bossa nova. A “canção de protesto”, par motivos óbvios, já não se manifestava mais. Nossa criatividade musical mergulhou na letargia, empurrada pela censura, enquanto as canções bossa-novistas começavam a perder público em decorrência do seu discurso cifrado e da própria intelectualização do movimento. A partir de l966, a indústria cultural esteve muito mais voltada para a Jovem Guarda, cujo prestígio popular continuava em alta, enquanto a MPB, com exceção do movimento liderado por Roberto Carlos, atravessava uma nítida crise de popularidade (e por que não de qualidade?). Subjacente a esse declínio estava a tirania do Estado, a todo instante destruindo a obra de arte e substituindo-a pelo arremedo.

Isto, no entanto, não significaria tudo, é claro. A bossa nova completaria, de qualquer forma, seu ciclo de duração. Como em todo movimento artístico, na música também há o início, o auge e o fim, muito embora seu caráter revolucionário e inovador, no plano estético e às vezes político, deixe sempre um legado cultural para a sociedade.

Mas, a partir do festival de 1967, a história da música popular brasileira mudaria de rumo. Um jovem cantor e compositor baiano, magricela, jeito displicente, audacioso (ainda bem, para a nossa música), apresentava-se no palco da TV Record, em São Paulo, inteiramente lotado, para cantar sua música para o júri e para o Brasil: Alegria, alegria. O acompanhamento estava a cargo do conjunto argentino Beach Boys, que fazia muito sucesso cantando ié-ié-iê nas tardes de domingo, na Jovem Guarda.

Um sacrilégio! Uma verdadeira heresia! O mundo musical brasileiro estava, após a apresentação de Caetano, sob o impacto da mais nova e revolucionária proposta de transformação da nossa música. Desta vez, nem a TFP – Tradição, Família e Propriedade – agüentou ficar quieta. Seus membros classificavam o comportamento de Caetano como “coisa do demônio”. Em tom de galhofa, de chacota, os colegas tropicalistas do cantor, sempre que tinham oportunidade faziam brincadeiras a respeito do pronunciamento da TFP.

Como sempre ocorre, quando a arte traz consigo uma concepção inovadora, uma ruptura com a redundância, escandaliza, cria polêmica, divide os críticos, a sociedade, mas, sobretudo, abre novos caminhos, novas perspectivas para o seu próprio desenvolvimento e enriquecimento. Foi assim. por exemplo, com o surrealismo literário de André Breton, no início do século, na Europa, e com a Semana de Arte moderna de 22, em São Paulo, liderada por Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Heitor Villa-Lobos. Foi assim, também, com Alegria, alegria, de Caetano Veloso. Além de usar a guitarra elétrica e um conjunto de iê-iê-iê, num festival exclusivo de música popular brasileira, Caetano foi mais além: Os Beach Boys não eram brasileiros; eram argentinos. Ora, isso foi demais para o coração e a cabeça dos tradicionalistas da nossa música. Além de o conjunto ser especializado em “música alienígena”, como declarou um dos jurados, ainda seus componentes são argentinos? Eles não deveriam, segundo a concepção dos conservadores, estar participando de um festival de música popular brasileira. Houve quem tentasse agredir Caetano fisicamente e anular sua participação. Bobagem. Não conseguiram. O júri dividiu-se, a platéia também. Vaias e aplausos misturavam-se aos tomates, bolinhas de papel, flores e ao tradicional sinal de positivo feito com o polegar para cima, criando um clima absolutamente conturbado, que em muito lembrava as apresentações dos modernistas em 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Vale lembrar que, por irônica coincidência, vaias, tomates e flores também estavam presentes na semana dos modernistas.

A cidade se dividiu contra e a favor de Caetano e de sua música. A “tradicional família musical” brasileira (a frase é de Valter krausche) estava estarrecida e grogue como se estivesse abandonando o ringue após um nocaute. O talento e a irreverência do compositor baiano haviam “sacudido a poeira” da nossa música e da crise de criatividade em que ela se encontrava. Alegria, alegria foi classificada em quarto lugar, logo depois de Ponteio (Edu Lobo), Domingo no Parque (Gilberto Gil) e de Roda-viva (Chico Buarque).

A partir daquele instante, estava oficialmente lançado o Tropicalismo. Na nossa música, nada mais seria como antes, e Alegria, alegria representava o divisor de águas, o marco inicial de uma era musical no Brasil e, sobretudo, a ruptura definitiva com os preconceitos musicais. Tem razão o poeta Ezra Pound, quando diz que “o artista é a antena da raça”: os tropicalistas captaram muito bem o momento político e cultural do País. Sem incorrer no panfletarismo da “música de protesto”, eles trabalharam a política e a estética mostrando as contradições do nosso subdesenvolvimento. Em Tropicália, música que melhor resume as idéias do movimento, encontramos o trabalho político e estético dos tropicalistas. O elemento alegórico e a ironia estão sempre presentes.

Inspirado no Manifesto Pau-Brasil, do poeta modernista Oswald de Andrade, o Tropicalismo cria uma estética cuja combinação e contrastes de elementos incluem a miséria, o passado, o desenvolvimento, a tecnologia industrial, os movimentos musicais brasileiros, o subdesenvolivimento e a paródia. Esta última como instrumento de ridicularizarão da ideologia do nacionalismo ufanista.

A relação de contrastes, confrontando e comparando o moderno e o arcaico, o rústico e o industrializado, o primitivo e o civilizado, através da linguagem metafórica e do humor crítico, foi, sem dúvida, a grande contribuição do Tropicalismo à música popular brasileira. Além de estar criticamente atento à interpretação cultural da contemporaneidade, como produto dos veículos de comunicação de massa, ele transcende o âmbito da mera observação e incentiva a pesquisa musical onde se fundem todos esses elementos. Basta ver a obra de Hermeto Paschoal. Em suas apresentações o artista utiliza desde a cabaça, o berimbal, o berrante, a lata de querosene até a guitarra elétrica, o órgão e o sintetizador, que, tocados ao mesmo tempo, produzem um som criativo e inovador.

A melodia e o texto tropicalista

A estética tropicalista trata, com muito humor e ironia, as disparidades sociais advindas do desenvolvimento desigual do capitalismo. Na construção poética novo/velho (música pop e Carmen Miranda), rústico/moderno (azeite-de-dendê e Formiplac), Iracema/Ipanema, bossa/palhoça, reside ainda a contraposição de valores que se revestem, aos olhos do espectador, de outros significantes, ampliando o alcance da ação crítica. Mas é também no contraste entre o arcaico e o moderno que encontramos a metáfora substituindo e aludindo à relação de dependência entre desenvolvimento e subdesenvolvimento.

Se o movimento tropicalista, que a todo momento trabalhou com o binômio estética/política objetivava mostrar as contradições do nosso país e a relação de dependência, realmente consegui. Veja, por exemplo, em Tropicália, a imagem “cinematográfica” (um dos elementos estéticos do Tropicalismo) que Caetano cria: depois de destacar a grandiosidade da arquitetura urbana, símbolo da frase desenvolvimentista do governo Kubitschek (“monumento do Planalto Central do País”), o autor, numa frase lapidar, nos dá a exata idéia das contradições e do nosso subdesenvolvimento ao anunciar que “no joelho uma criança sorridente, feia e morta estende a mão”.

Na verdade, esta contraposição de elementos da cultura brasileira aproxima-se muito daquilo que Oswald de Andrade já havia feito no Manifesto Pau-Brasil. Até aí nada a contestar. A própria liderança do movimento tropicalista teve esta intenção e reconheceu que ele era a retomada oswaldiana, recriado e atualizado na linguagem do meio urbano-industrial. A televisão, a fórmica, a arquitetura arrojada de Brasília, o avião, a modernidade de Ipanema, a bossa nova, o plástico, a guitarra elétrica, a música pop, o azeite-de-dendê, Iracema, Cármen Miranda, a dança do bumba-meu-boi, a palhoça e o namorinho de portão, não poderiam mesmo deixar de ser mencionados e contrapostos.

Certa ocasião, em entrevista ao Jornal do Brasil, Caetano reconheceu que o tropicalismo é uma tentativa de superar, o nosso subdesenvolvimento, partindo exatamente do elemento cafana de nossa cultura, difundindo e fundindo ao que houvesse de mais avançado industrialmente, como as guitarras e a roupa de plástico.

Não por acaso, Caetano apresenta-se no TUCA – Teatro da Universidade Católica – todo vestido com roupa de plástico verde e preta, cantando É proibido proibir. Durante a apresentação, muitas vaias e poucas palmas. Interrompendo sua apresentação, ele agrediu violentamente o público e chamou o júri de incompetente para julgar sua música. Caetano estava, a partir daquele momento, eliminado do festival. Estava proibido de nova apresentação.

Assim, além da identidade da linguagem (o uso da paródia e a contraposição de elementos), da forma de encarar a xenofobia, os movimentos tropicalista e modernista aproximaram-se ainda na crítica que faziam ao desenvolvimento desigual do capitalismo brasileiro. A letra de É proibido proibir discorre sobre esses elementos, agora vistos pelo prisma da contemporaneidade e da estética tropicalista.

No fim de 1968, de revólver em punho, Caetano Veloso cantava diante das câmeras de televisão a música Anoiteceu, de Assis Valente, e considerava o Tropicalismo historicamente sepultado. De fato, o movimento propriamente dito, completaria seu ciclo, mas as idéias permanecerão definitivamente em nossa cultura. Não foi uma moda a mais. A letra de Tropicália, símbolo e síntese das idéias do movimento, contém todos os elementos que analisamos acima.

Fonte: livro Iniciação à Música Popular Brasileira. Waldenyr Caldas.Editora Ática,1985,São Paulo – SP

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