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Um copo de cólera, de Raduan Nassar

by Lucas Gomes

Novela de Raduan Nassar, Um Copo de Cólera, publicada em 1978, é a segunda das três expressivas
obras do autor de A Lavoura Arcaica. O ano de sua publicação foi ainda profundamente marcado pela
repressão da ditadura militar. Nesta época, era eleito para a presidência da república o general Ernesto
Geisel, que restaurou o habeas-corpus e trabalhou para a democracia no Brasil.

Através desta sumária contextualização histórica, pode-se vislumbrar uma introdução à novela de Raduan
Nassar, uma perspectiva pós-modernista de extravasamento humano sob a qual foi desenvolvida. O alcance da
verborragia literária canalizada pelos instantes descritos de silêncio e pela força das palavras, vai ao
extremo das sensações de vazio existencial.

A relação amorosa é abrangida em sua fundamentação no plano sexual, é na cama que ocorrerá a liberação dos
instintos reprimidos pelas convenções da sociedade. A incomunicação dos personagens que compõem a trama se
dá na catarse rompida por um acontecimento externo banal. Com estes e mais outros aspectos, pretende-se
tecer uma análise desta novela de Nassar, com cuja maestria a compôs em apenas quinze dias.

Acompanhando uma tendência contemporânea, esse texto apresenta uma minimalização da ação externa que se
contrapõe ao aumento da ação no plano interno. Isso acontece na obra quando nos deparamos com uma história
aparentemente banal da rotina de um dia na vida de um casal, porém, se o externo aparente é mínimo, o
interno cresce a tal ponto que temos discussões deveras importantes, tais como a disputa dos gêneros, a
alienação e o engajamento, a intertextualidade, a fragmentação do ser, a linguagem do espetáculo etc.

A novela analisada possui ao todo sete capítulos, cada qual composto por um único parágrafo e também por
um só período, com uma pontuação desregrada em razão do tom coloquial empregado na narrativa, além das
expressões de baixo calão, variáveis onomatopaicas e intertextualidade. Cita alguns célebres pensadores em
mescla com a linguagem do teatro, do absurdo, do surreal.

O retrato da crise conjugal brasileira é pintado por Raduan Nassar nesta obra não como mero desacerto
romântico, mas com o teor causticante perpassado na época mais violenta da ditadura. Pode-se concluir,
portanto, que se trata de uma literatura engajada pelas idéias de liberação individual, além de ousada
quanto aos recursos lingüísticos, da imagística e de um psicologismo repleto de nuanças febris das mentes
conflitantes.

Aqui o ser humano é desnudado sem censura, há sim a busca pela identidade através de jogos com o simulacro
e, tão somente sob o jugo de uma ânsia de marginalização é que se pode ir de encontro a qualquer forma de
poderio absoluto.

Pode-se perceber outro nível em que a narrativa é estruturada, o nível do espetáculo. Os protagonistas
sobem no palco e forjam um espetáculo ao longo da trama, são atores e têm plena consciência disso, pelo
menos é o que o discurso dele nos faz saber: “Por alguns momentos lá no quarto nós parecíamos dois
estranhos que seriam observados por alguém, e este alguém era sempre eu e ela, cabendo aos dois ficar de
olho no que eu ia fazendo (…) e eu, sempre fingindo…” (NASSAR, 1992, p. 10). “…eu na rusticidade
daquele camarim..” (NASSAR, 1992, p. 33). “…forjando dessa vez na voz a mesma aspereza que marcava a
minha máscara…” “…eu puxava ali pro palco quem estivesse ao meu alcance, pois não seria ao gosto dela,
mas sui generis, eu haveria de dar espetáculo sem platéia… (NASSAR,1992, p. 34). “(ela sabia representar
bem seu papel) entrou de novo em cena me dizendo…” “… precisava mais do que nunca para atuar, dos
gritos secundários duma atriz, e fique bem claro que não queria balidos de platéia”. “…fiquei parado
(…) um ator sem platéia, sem palco, sem luzes, debaixo de um sol já glorioso e indiferente” (NASSAR,
1992, p. 38). Dessa forma, o narrador brinca com o espetáculo confundindo o leitor que não sabe se a fala
dos dois é verdadeira ou encenação. Nesse ponto, o texto dialoga abertamente com o cenário e com a imagem
teatral organizada por eles para expor (às claras e para todos) sua fragmentação.

Paródia, pastiche, intertextualidade, ou ainda, uma espécie de carnavalização se faz presente na obra em
vários momentos. Retoma-se a bíblia, quando, a exemplo de Adão e Eva, o casal come o fruto proibido antes
de cometerem o “pecado original”; também quando reconhece-se que “arrolava insistentemente o nome de Deus
às suas obscenidades” (p. 14), repudiando, assim, um dos mandamentos: “Não tomar seu santo nome em vão”; e
quando ele passa a ser acusado por ela de “ressuscitar como Lúcifer” (p. 63) invertendo os papéis da
ressurreição. Passa por Aristóteles e seu “mundo das idéias” (p. 77), chegando a Fernando Pessoa com o seu
famoso soneto “Autopsicografia”: “eu tinha sido atingido, ou então, ator eu só fingia, a exemplo, a dor que
realmente medoía” (p. 39). Ainda com relação à estruturação da narrativa, observamos perfeitamente bem as
novas formas de narração (pós-modernas). Uma delas é o diálogo que estabelece-se na forma de um esquema:
“duas ou mais personagens põem-se a falar a partir de uma circunstância qualquer, geralmente irrelevante”
como é o caso da destruição da cerca-viva pelas formigas que norteia todo o capítulo “O esporro” (auge da
narrativa) “e quase que de repente, em lugar de examinar suas relações (…) fixam limites, alcances e
discussões de questões filosóficas, sociais e culturais, às vezes árduas” (JITRIK, 1979, p. 240). Outra,
diz respeito às personagens que “buscam-se, projetam-se em outros para achar uma resposta, mudam de pele
como se aquilo que se procura fosse obsessivamente a identidade. É o caso claramente observado no
protagonista: “Por alguns momentos lá no quarto nós parecíamos dois estranhos que seriam observados por
alguém, e este alguém era sempre eu e ela, cabendo aos dois ficar de olho no que eu ia fazendo” (NASSAR,
1992, p. 10). “…eu estava dentro de mim e precisava naquele instante é duma escora mais do que nunca –
para atuar – dos gritos secundários de uma atriz…” (NASSAR, 1992, p. 43). “…e eu ia pondo para fora o
bofe, a carniça e o bucho, enquanto via surpreso e comovido o meu avesso” (NASSAR, 1992, p. 78).

Mais uma vez, a exemplo de Lavoura Arcaica, a carga ideológica opositiva entre amantes – neste caso
– marca e dá consistência à obra de Raduan Nassar. Aqui, não mais um filho adolescente descobrindo a
delinqüência corporal e moral da existência, e sim um adulto, calcado, machucado pelos reversos do tempo.
Seria talvez esse adulto o adolescente que fora André em Lavoura Arcaica? Muito se indaga a esse
respeito, mas evidências ainda estão por vir à tona para corroborar a questão. Mas semelhanças, de fato,
existem.

Na contramão do discurso ideológico do adulto está sua amante, afeita às causas sociais, e aos discursos
cristalizados da modernidade em geral, lutando para imprimir seu verbo latente, e vice-e-versa. O estopim
do “esporro” entre os dois se dá num dia aparentemente calmo, após uma convulsiva noite de sexo, ao se
encontrarem na mesa do café, num silêncio constrangedor, pela manhã. O que tira a ordem do dia é justamente
um bando de formigas que estraga a cerca viva que ele havia feito no quintal. O impulso voraz com que se
envolve com o acontecido provoca na amante indignação suficiente para indagar a respeito do desvario. Daí
se cria o terreno propício para o verbo escandalizado vir à tona.

Ele se enlouquece com a organização ordeira das formigas, transportando todo esse furor à amante que, não
menos desvairada, enfrenta a discussão armada com alfinetes politizados: “Só um idiota recusaria a
precariedade sob controle, sem esquecer que no rolo da vida não interessam os motivos de cada um – essa
questãozinha que vive te fundindo a cuca – o que conta mesmo é mandar a bola pra frente, se empurra também
a história co’a mão amiga dos assassinos; aliás teus altíssimos níveis de aspiração, tuas veleidades tolas
de perfeccionista tinham mesmo de dar nisso: no papo autoritário dum reles iconoclasta – “o velho macaco na
casa de louças, falando ainda por cima nesse tom trágico como protótipo duma classe agônica… sai de mim,
carcaça”.

A cólera a que remete o título da novela corresponde ao fluxo verbal que toma conta das personagens nesse
momento de fúria, onde razão e emoção não mais se dissociam, e tornam-se, sobretudo, uma massa amorfa que
tem como alvo a destruição do outro, ou ainda, a autodestruição. Como resultado do embate, restam, nas
almas desgastadas, um barulhento silêncio e um abarrotado vazio.

Enredo

A narrativa joga com o subjetivismo e com o fluxo de consciência presentes no pensamento caótico e nos
incessantes diálogos dos personagens principais, um homem autoritário e machista de quarenta anos e sua
namorada jornalista, de visão social ampliada, humanista. Espaçada no ambiente rural de uma chácara em
localização indefinida, a história é iniciada e encerrada com capítulos de mesmo título. Começo e fim em:
A Chegada.

Primeiro, a mulher aguarda seu homem com alguma displicência e dúvida. Ao chegar e, a todo momento, ele
está taciturno. Há uma seqüência de olhares, estranhamentos seguidos de entendimento súbito, quando o
protagonista morde um suculento tomate de maneira provocativa, como que em convite animalesco à uma espécie
de dança do acasalamento e se dirigem para o quarto. Estavam de lados opostos.

No capítulo “Na Cama”, embora pareçam dois estranhos, o sexo se apresenta como a única linguagem passível
de entendimento aos dois seres. Ao que ela diz: “É este canalha que eu amo!” A nudez inicial dos pés
descalços do homem, comparados a dois lírios brancos, conota o fetichismo da mulher e antecipa o
extravasamento de ambos no ato sexual. O Levantar. Após uma noite de intenso gozo, a sedução persiste. Ela
o quer prender à cama ainda, mas ele se impacienta e tem pressa, reluta: “me deixe, trepadeirinha”,
ergue-se nu a olhar a paisagem da janela, distante. Ela o circunda, prende. Vão ao chuveiro.

Em “O Banho” o jogo erótico avança. A mulher, no gesto aparentemente submisso ao banhar, ensaboar o
namorado, massageando experiente o seu corpo inteiro, dos pés à nuca, na verdade o detém, pois o atiça ao
ápice do deleite através das mãos firmes.

Ele fecha os olhos, entregando-se intimamente a esse momento que o veste e o reveste de passividade
lacônica: “(…) e me fazendo estender meus pesados sapatos no seu regaço pra que ela, dobrando-se cheia de
aplicação, pudesse dar o laço, eu só sei que me entregava inteiramente em suas mãos pra que fosse completo
o uso que ela fizesse do meu corpo.”

Até o capítulo “O Café da Manhã”, o protagonista se mantém rígido na sua indiferença, especialmente com
Dona Mariana, a empregada da casa, austera, a servir o café: “Mariana entrou com seu jeitão de mulata
protestante (…)”.

“(…) Nos cumprimentando como sempre encabulada, mas sem dar bola pro seu embaraço eu imediatamente
encomendei ‘o café’, e ela sabia muito bem, pelo tom, que eu queria dizer com isso (…)”.

É no capítulo seguinte que se delineiam os instantes de maior impacto na trama: “O Esporro”. Interessante
salientar a conotação do título, que traz ambigüidade de significados. Esporro pode bem ser caracterizado
pela ejaculação ou pela exposição abrupta de palavras, um jorro lingüístico da sublimação do sexo. Nota-se
muita força no discurso das personagens que se digladiam no revezamento de poder. O foco narrativo passa do
masculino ao feminino, com a guerra dos sexos marcada por um tolo incidente.

O cume conflituoso é estabelecido no momento em que o protagonista se vê embrutecido pelo fato de sua cerca
ser invadida por formigas saúvas. A gota d’água da tempestade num copo de cólera. Decerto, a cerca de
plantas rompida encerre a metáfora do rompimento com o si, o ego abalado, corroído pela realidade imposta.
O protagonista diante da sua própria impotência, arremessando frustrações à mulher, aos empregados, ao
cachorro Bingo e ao mundo, verbaliza tão freneticamente, que chega à agressão física por desgosto, em
recusa à cumplicidade amorosa. Ele não se conforma com o bom senso da mulher, mas acaba por reconhecer o
raciocínio ágil dela intimamente:

Eu devia cumprimentar a pilantra, não tinha o seu talento, não chegava a isso meu cinismo, fingir
indiferença assim perto duma fogueira, dar gargalhadas à beira do sacrifício, e tinha de reconhecer a
eficiência do arremedo, um ligeiro branco me varreu um instante a cabeça, senti as pernas de repente
amputadas, caí numa total imobilidade(…).

É com a descrição de sua derrota que o capítulo mais extenso se desfecha. Prostrado ao chão em espasmos de
ressentimento profundo, quando é logo amparado pelos empregados Dona Mariana e Seu Antônio como se fosse um
menino acalentado. Esta cena última dá vazão, enfim, ao último capítulo, “A Chegada”, em que a mulher o
encontra regredido por completo, agora na posição fetal como se estivesse à sua espera. E ela, ao sentir-se
inundada por um aflorado instinto maternal, encerra a trama ambientada pelos resquícios de alguma trégua:

(…) Deitado de lado, a cabeça quase tocando os joelhos recolhidos, ele dormia, não era a primeira vez
que me prestaria aos seus caprichos, pois fui tomada de repente por uma virulenta vertigem de ternura, tão
súbita e insuspeitada, que eu mal continha o ímpeto de me abrir inteira e prematura pra receber de volta
aquele enorme feto.

Fontes: Unicentro – Editora | Apostilas
Orfeu | Paola Fonseca Benevides

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