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Um homem sem profissão – Sob as ordens de mamãe, de Oswald de Andrade

by Lucas Gomes

No início de 1954, Oswald de Andrade publicou o primeiro volume de sua memórias, Um homem sem
profissão: Sob as ordens de mamãe
. O livro conta seus primeiros passos até o início da carreira
jornalística, nos anos 10. Não teve repercussão alguma, o que desgostou o escritor.

Na obra, Oswald de Andrade constrói uma personagem acerca de si mesmo unindo pessoa e personagem.
Segundo Antônio Cândido, no “prefácio inútil” do livro, nada separa Oswald de seus personagens,
tornando-o o principal e operando a fusão poética do real e do fantástico, onde as pessoas tornam-se
personagens, imperceptivelmente, e, quando menos esperamos, o real se compõe segundo as tintas da
fantasia.

O autor tenta reconstruir o passado como relato, mas com uma visão crítica, adaptando uma persona
(máscara em italiano) à sua história. Ele cria uma personagem revolucionária acima do que realmente foi,
poetizando e dando ares retumbantes como justificativa de não pegar o bonde da história.

A máscara semântica funde pessoa a personagem na construção e um sujeito revolucionário que desde menino
lê Vitor Hugo e se emociona a ouvir a palavra “liberdade” nos hinos da escola.

Esse clarão presidiu até hoje a toda minha vida. Como poucos, eu conheci as lutas e as tempestades.
Como poucos, eu amei a palavra Liberdade e por ela briguei.

Assim ele constrói a lógica da personagem, apoiando-se no todo da obra pra criar essa ótica particular e
vice-versa. A dimensão de suas escolhas sempre opta pelo viés que confronta uma reflexão sobre o passado,
uma autocrítica que insiste na dinâmica do homem livre com seu lugar como sujeito na e da história.

O autor usa um clichê poético para metaforizar a força da primeira revolução daquele “menino” vindo da
aristocracia do café e filho de vereador, que se intitula revolucionário, anarquistas e libertário, que
odeia dançar, mas que no Largo São Francisco ensaiava passos de maxixe no meio da pretada no coreto.

Evidentemente definia-se assim minha intensa adesão ao povo, seus ideais e costumes.

O eixo do texto memorialístico, neste caso, se organiza a partir do sujeito, como uma espécie de fusão
de mitos que pressupõe a fantasia da grandiosidade, de Narciso ou Ompahalos, si mesmo é o centro do
mundo, em que o cerne estrutural é provido de tênue carga semântica.

Ou seja, toda revolução é uma aurora se visto a máscara do revolucionário.

Trecho da obra

Anunciou-se que São Paulo ia ter bondes elétricos. Os tímidos veículos puxados a burros, que cortavam
a morna cidade provinciana, iam desaparecer para sempre. Não mais veríamos, na descida da ladeira de
Santo Antônio, frente à nossa casa o bonde descer sozinho equilibrado pelo breque do condutor. E o par
de burros seguindo depois.

Uma febre de curiosidade tomou as famílias, as casas, os grupos. Como seriam os novos bondes que andavam
magicamente, sem impulso exterior? Eu tinha notícia pelo pretinho Lázaro, filho da cozinheira de minha
tia, vinda do Rio, que era muito perigoso esse negócio de eletricidade. Quem pusesse os pés nos trilhos
ficava ali grudado e seria esmagado facilmente pelo bonde. Precisava pular. (…)

O projeto aprovado, começaram logo os trabalhos da execução. E anunciaram que numa manhã apareceria o
primeiro bonde elétrico. Indicaram-me a atual Avenida de São João como o local por onde transitaria o
veículo espantoso.

Um mistério esse negócio de eletricidade. Ninguém sabia como era. Caso é que funcionava. Para isso, as
ruas da pequena São Paulo de 1900 enchiam-se de fios e de postes. (…)

Um amigo de casa informava: – o bonde pode andar até a velocidade de nove pontos. Mas, aí é uma
disparada dos diabos. Ninguém aguenta. É capaz de saltar dos trilhos. E matar todo o mundo…

A cidade tomou um aspecto de revolução. Todos se locomoviam, procuravam ver. E os mais afoitos queriam
ir até a temeridade de entrar no bonde, andar de bonde elétrico!

Naquele dia de estréia ninguém pagava passagem, era de graça. A afluência tornou-se, portanto, enorme.

No centro agitado, eu desci a ladeira de São João que não era ainda a Avenida de hoje. Fiquei na esquina
da rua Líbero Badaró, olhando para o largo de São Bento, de onde devia sair a maravilha mecânica.

A tarde caía. Todos reclamavam. Por que não vem?

Anunciava-se que a primeira linha construída era a da Barra Funda. É pra casa do prefeito! – O bonde
deixava o Largo de São Bento, entrava na Rua Libero Badaró, subia a Rua São João, entrava na Rua do
Seminário.

Um murmúrio tomou conta dos ajuntamentos. Lá vinha o bicho! O veículo amarelo e grande ocupou os trilhos
do centro da via pública. Um homem de farda azul e boné o conduzia, tendo ao lado um fiscal. Uma
alavanca de ferro prendia-o ao fio esticado, no alto. Uma campainha forte tilintava abrindo as alas
convergentes do povo. Desceu devagar. Gritavam:

– Cuidado! Vem a nove pontos!

Um italiano dialetal exclamava para o filho que puxava pelo braço:

– Lá vem o bonde! Toma cuidado!

O carro lerdo aproximou-se, fez a curva. Estava apinhado de pessoas, sentadas, de pé. Uma mulher
exclamou:

– Ota gente corajosa! Andá nessa geringonça!

Passou. Parou adiante, perto do local onde se abre hoje a Avenida Anhangabaú. Houve tumulto. Acidente?

Não andava mais, gente acorria de todos os lados. Muitos saltavam.

– Rebentaram a trave do lado! Não é nada!

Tiravam a trave quebrada, o veículo encheu-se de novo, continuou mais devagar ainda, precavido.

E ficou pelo ar, ante o povo boquiaberto que rumava para as casas, a atmosfera dos grandes
acontecimentos. Nas ruas, os acendedores de lampião passavam com suas varas ao ombro acendendo os
acetilenos da iluminação pública.

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