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Uma noite em Curitiba, de Cristóvão Tezza

by Lucas Gomes

No livro Uma noite em Curitiba, o romancista enfrenta o desafio de
uma história de amor com as armas já comprovadas pela crítica
em seus livros anteriores: na linguagem, na segurança narrativa, a ironia
e os paradoxos dos pontos de vista, no tema, a classe média brasileira
que povoa sua Curitiba.

Neste romance de Tezza a linguagem do filho que narra a história e a
do pai que escreve as cartas se confundem. Ou seja, elas não caracterizam
os personagens. A do filho está além da linguagem de um universitário.
E a de Frederico está aquém da de um pesquisador conceituado.
Esta inadequação faz com que o livro, marcado por duas estruturas
e por dois pontos de vista, se torne um pouco literário.

Espaço

O romance está ambientado na cidade de Curitiba, que torna a ocupar
um papel relevante. O paralelo que se tem feito com Dalton Trevisan, comporta
algumas diferenças essenciais. Se ambos pensam o mundo a partir deste
ponto definido que é a cidade, eles se distanciam pela própria
natureza deste espaço. A Curitiba de Dalton não é a de
todo mundo, é dele exclusivamente – funcionando como uma espécie
de superposição de pianos em que passado e presente se amalgamam
para formar uma urbe pessoal. Esta cidade está fora do tempo e do espaço
históricos e habita os forros da memória do contista. Desse modo,
Trevisan transforma a Curitiba de todo mundo numa Curitiba que só pode
ser visitada em suas obras. A Curitiba de Tezza, menos exclusiva, é a
que percorremos cotidianamente e está num tempo e num espaço bem
delimitados: é a capital tipicamente classe média. Isso nos permite
pensar que, mesmo coincidindo externamente, cidades ficcionais dos dois escritores
têm papéis e consistência próprias. A Curitiba de
Cristovão é onde o homem Dalton Trevisan vive, enquanto a deste
é um local-síntese.

Neste romance encontram-se referências a um espaço muito definido:
o prédio da Reitoria da Federal, Santa Felicidade, a esquina da XV com
a Mariano Torres. Mas a cidade não funciona apenas como uma paisagem
decorativa, como enchimento do texto. Ela aparece para caracterizar o espaço
em que se movem os personagens, servindo, assim, para defini-los. Sendo uma
cidade classe média por excelência, ela é o paraíso
do funcionário público, das ilusões provincianas de consumismo
e de estabilidade social. É para reforçar isso que as referências
topográficas ganham destaque.

Temática

Uma Noite em Curitiba recicla o tema: adaptação ao mundo
capitalista. O passado de lutas, desta que foi a última geração
revolucionária, aparece aqui como um caminho pessoal de autenticidade,
mas sem saída. Para Frederico a ética revolucionária torna-se
uma ética de prazer e de marginalidade que o leva ao suicídio.
A sua vitória sobre a máscara foi, por isso, uma vitória
relativa, mas moralmente válida. O fracasso desta geração
é mais uma vez retratado por Cristovão, que encontrou no estudo
das mudanças históricas dos últimos 30 anos um material
rico.

O título Uma noite em Curitiba é uma chave para o livro.
Existe mesmo uma noite longa no romance, várias vezes revisitada nas
cartas do professor, que sintetizam as memórias de uma vida inteira.
E há outros signos que lhe são caros no título. Um deles
é a imagem da noite: quase toda a literatura do escritor é noturna,
ele e seus personagens gostam da noite. Outro é a própria cidade,
Curitiba, que se fez ao longo dos anos espaço literário de Tezza,
um espaço basicamente mental.

Enredo

A narrativa de Uma noite em Curitiba se desenvolve em duas linhas
paralelas – as cartas do professor Rennon à atriz e o texto do filho,
comentando os acontecimentos a que elas se referem. “Escrevo este livro
por dinheiro
“, avisa o filho logo no início. Nem tanto assim.
Ele também está procurando resgatar a imagem de um pai distante
e imperfeito.

É uma narrativa que, através de cartas (vinte), permeadas da
narração de outros fatos, com comentários do narrador,
conta a história do amor conflituoso de um professor (protagonista) com
uma atriz famosa, Sara Donovan, que acaba com o suicídio do professor
após abandonar sua família e viver algum tempo com a atriz.

Valendo-se novamente de uma estrutura dupla, o livro trata da queda de um historiador
ao reencontrar uma paixão antiga. Este mergulho no amor do passado é
também um mergulho no verdadeiro destino do professor Frederico, interrompido
por uma carreira universitária que funciona como escudo protetor. O fato
deste reatamento dos fios de seu destino levá-lo a um desfecho trágico
não tira o seu valor positivo.

A história é revivida pelo filho do professor, que organiza
e publica as suas cartas, no começo profissionais e depois apaixonadas,
para uma famosa atriz carioca. Estas cartas são uma busca arqueológica
do passado e da face verdadeira do professor. Quem as escreve é um respeitável
catedrático em fim de carreira, que tem dois filhos transviados e uma
mulher indiferente.

A organização de um encontro sobre Literatura e Cinema dá
ao professor a oportunidade de rever a mulher (Sara Donovan) que marcou a sua
juventude. Aos poucos, através de cartas que são um misto de confissão
e poesia, se fica sabendo que o professor Frederico foi um militante político,
um revolucionário e que cometeu um crime no passado. A sua vida constitui
uma tentativa de encontrar uma estabilidade na carreira profissional e familiar,
na esperança de anular este seu outro lado.

O reencontro com Sara é o ressurgimento do amor, mas é também
o desabrochar de um tempo que até então permanecia adormecido.
A recuperação deste tempo perdido se dá através
das cartas, cujo teor vai mudando numa rapidez vertiginosa, rapidez esta que
reflete a ânsia de retomar a vida a partir do ponto interrompido.

Sara é um fantasma da juventude – é bom lembrar que, embora beirando
os 50 anos (Frederico tem 51), ela é uma mulher jovem. Não é,
no entanto, um fantasma de quem se corre e sim para quem se corre. Reencontrar-se
ao reencontrá-la acaba colocando a perder toda uma respeitabilidade,
principalmente a acadêmca, que ele criara como proteção.
Frederico deixa tudo para segui-la. E o fantasma das origens se revela a origem
dos fantasmas.

Há um jogo de papéis que define a excelência deste romance.
Os filhos de Frederico são elementos socialmente desajustados. A filha
abandonou a casa e não dá notícias. O rapaz, ex-traficante
de drogas, vive sem nenhum objetivo definido. É como se eles vivessem
em suspensão. Frederico é moralista e infemiza a vida do filho,
tratando-o sempre como inútil. Na verdade, os filhos são a personificação
do seu passado. Ignorá-los é ignorar a rebeldia de sua juventude,
é uma maneira de não aceitar a sua face criminosa. Logo, a sua
dificuldade de conversar com o filho está psicanaliticamente ligada ao
temor de se reencontrar.

É através das cartas, isto é, da descoberta dos segredos
mais recônditos do pai, que o filho vai derrubando a sua estátua
de perfeição e encontrando o seu próprio destino. Quando
o velho professor foge, assumindo o seu papel verdadeiro e abandonando a máscara,
ele está permitindo que a família volte a viver suas vidas: a
mulher toma-se novamente alegre, passa a sair com as amigas; o filho se dedica
aos estudos e passa no vestibular. Assim, Frederico retoma o seu caminho de
revolta e o filho, que era revoltado, assume o caminho universitário
do pai: começa a cursar história. A rebeldia reencontrada pelo
pai permite ao filho buscar estabilidade econômica (escreve a biografia
paterna por dinheiro), familiar (pretende se casar) e profissional. Os papéis
são trocados, desencadeando talvez o início de uma nova rede de
equívocos, mentiras e máscaras.

Personagens

Frederico Rennon – historiador do corpo docente da Universidade
Federal do Paraná (onde, aliás, o próprio escritor leciona)
– é descrito como um homem de 51 anos que “nada tem contra o prazer,
porque nunca pensou nele”.

Margarida – 42 anos, a esposa traída, pura sombra,
sem o peso da voz, espécie de manequim na vitrine do marido; a exata
mulher do lar e que parece ter por única predileção assistir
filme francês no Cine Luz.

O filho – o narrador, 23 anos, cruel e bisbilhoteiro, interessado
em derrubar a estátua paterna, descobre o triângulo amoroso.

A filha – rebelde, abandonou a casa sem dar notícias.

Sara – jovem famosa, que expõe com crueldade os defeitos
de Rennon.

Em rápidas pinceladas dos personagens já se tem a classe média
curitibana, que lota o Guairão para ver comédias digestivas com
atores de tevê e depois vai jantar no Tortuga.

Os personagens atrofiam o mundo, levantando paredes de papel. O que começa
com uma simples correspondência oficial – um convite para ciclo de conferências
– vai assumindo o compromisso da catarse. O professor Rennon não escreve
sobre o que foi, mas no que poderia ter sido. É tomado por uma náusea
ativa. As frustrações verbais apelam a um pensamento mais profundo.
As brechas fônicas queimam como ácido a placidez do discurso.

Posudas no começo, depois cada vez mais dilaceradas, as cartas contrastam
com a ironia do filho – que também perde distanciamento e ganha amargor
ao longo do livro. O que de início parecia um ato de revolta e vingança
contra o pai distante e impertubável em sua sabedoria se transforma no
retrato apaixonado de um homem que não se podia deixar penetrar, uma
vez que não era o que fingia ser.

A relação, impossível, entre pai e filho é construída
com maestria por Tezza. Cada palavra, cada gesto é pesado, medido, sufocado
antes de vir à tona. Numa mesa de bar, um de frente para o outro, um
mundo de coisas para dizer… e nada. A impotência do pai diante da vida
se reflete no filho, fazendo com que se tornem as duas faces de uma mesma moeda,
brilhante, mas já fora de uso. Até reencontrar o amor de sua juventude
– testemunha de sua tragédia – Rennon é uma personagem imersa
em seu medo, no terror do passado.

O amor tardio quebra sua casca, torna-o ridículo, desmonta sua ficção,
mas não o salva. Não é possível fazer o relógio
recuar 25 anos ou escolher uma fatia do passado em detrimento de outra.

O que move Rennon é o conflito entre a facilidade de pensar e a dificuldade
de escrever. Teme oficializar os produtos originais e às vezes perversos
da memória. Antes oculta do que revela, gagueja do que explica. “As
palavras assustam. Ganham uma autonomia que elas não têm
“,
confessa. Sua problemática é converter o crime de ter nascido,
no paraíso de ter vivido. A infidelidade à Margarida fica em segundo
plano. É impossível tomar partido. A confissão inutiliza
a agressão. A expiação é o melhor advogado do professor.
Sara é um detalhe necessário, a gota d’água. A impossibilidade
de aparecer a torna terrível. É a amante que escuta-responde por
telefone. Não aparece na trama, a não ser através da descrição
de Rennon. De repente, nunca existiu. É a “sombra do desejo”,
o demônio feminino que o liberta do pesadelo da razão.

O pensamento está ligado ao despoder, diferente de impotência.
A prosa epistolar permite o deslocamento do centro de gravidade, põe
em xeque aquilo que se julga eterno. As cartas de Fernando Pessoa, por exemplo,
enviadas ao poeta e amigo Mário de Sá-Carneiro desapareceram.
Ninguém as encontrou. Isso não diminui em nada o valor das indagações
de Sá-Carneiro a Pessoa, porque a pergunta deve existir primeiro na resposta.
No caso do protagonista de Tezza, a ausência de Sara é real e essa
é sua forma de estar presente.

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