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Úrsula, de Maria Firmina dos Reis

by Lucas Gomes

Ao publicar Úrsula, pela primeira vez em 1859, a autora, Maria
Firmina dos Reis, assinou com o pseudônimo “Uma Maranhense”,
estratégia muito utilizada por mulheres naquela época, por várias
razões, entre elas porque deviam ficar com mais liberdade para expressar
suas idéias, sem se preocupar tanto com as opiniões da sociedade.
No caso de Maria Firmina, as novas idéias eram não somente sobre
a condição feminina, mas também sobre a condição
do negro.

Maria Firmina desconstrói igualmente uma história literária
etnocêntrica e masculina até mesmo em suas ramificações
afro-descendentes. Úrsula não é apenas o primeiro
romance abolicionista da literatura brasileira, fato que, inclusive, nem todos
os historiadores admitem. É também o primeiro romance da literatura
afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afro-descendente,
que tematiza o assunto “negro” a partir de uma perspectiva interna
e comprometida politicamente em recuperar e narrar a condição
do ser negro no Brasil. Acresça-se a isto o gesto (civilizatório)
representado pela inscrição em língua portuguesa dos elementos
da memória ancestral e das tradições africanas. Texto fundador,
Úrsula polemiza com a tese segundo a qual nos falta um “romance
negro”, pois apesar de centrado nas vicissitudes da heroína branca,
pela primeira vez em nossa literatura, tem-se uma narrativa da escravidão
conduzida por um ponto de vista interno e por uma perspectiva afro-descendente.

No prólogo da obra, a autora afirma saber que “pouco
vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação
acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados
.”
Por trás dessa declaração de modéstia, a escritora
revelou sua condição social: o fato de não ter estudado
na Europa, nem dominar outros idiomas, como era comum entre os homens educados
de sua época, por si só indicava o lugar que ocupava na sociedade
em que nasceu. É desse lugar intermediário, mais próximo
da pobreza que da riqueza, que Maria Firmina corajosamente levantou sua voz
através do que chamou “mesquinho e humilde livro”. E, mesmo
sabendo do “indiferentismo glacial de uns” e do “riso mofador
de outros”, desafiou: “ainda assim o dou a lume”.

O romance trata de uma trágica história de amor entre dois jovens:
a pura e simples Úrsula e o nobre bacharel Tancredo, e, aparentemente,
é uma clássica
história de amor impossível, como muitas de seu tempo. Porém,
logo se nota, pelo tratamento dado aos personagens negros, às mulheres
e à escravidão, que as
preocupações presentes no romance são outras, pois, apesar
de ter sido escrito num período de nacionalismo exacerbado, destoa da
literatura produzida em sua época em muitos aspectos, já que não
parece estar comprometido com o projeto romântico que era fundar a idéia
de nação, construindo através de suas
narrativas um ser nacional.

O prólogo estabelece o território cultural que embasa o projeto
do romance. Era 1859, momento em que a prosa de ficção dava seus
primeiros passos na literatura brasileira. Com seu gesto, sob muitos aspectos
inaugural, Maria Firmina apontou o caminho do romance romântico como atitude
política de denúncia de injustiças, há séculos
arraigadas na sociedade patriarcal brasileira e que tinham no escravo e na mulher
suas principais vítimas. Foi, portanto, como mulher e como afro-brasileira
que a autora pôs-se a narrar o drama da jovem Úrsula e de sua desafortunada
mãe, ao qual se acrescentaram os infortúnios de Tancredo, traído
pelo próprio pai, e a tragédia dos escravos Túlio, Susana
e Antero, que receberam no texto um tratamento marcado pelo ponto de vista interno,
pautado por uma profunda fidelidade à história oculta da diáspora
africana no Brasil. Essa solidariedade para com o oprimido é absolutamente
inovadora se comparada àquela existente em outros romances abolicionistas
do século XIX, pois nasceu de uma outra perspectiva, pela qual a escritora,
irmanada aos cativos e a seus descendentes, expressou, pela via da ficção,
seu pertencimento a este universo de cultura.

A narrativa se articula a partir de um triângulo amoroso formado por
Adelaide, Tancredo e seu pai. Esse triângulo é desfeito com a derrota
de Tancredo. Cria-se, então, um segundo triângulo formado por Tancredo,
Úrsula e seu tio. Mas há, também, uma tríade, formada
por três personagens negros, que vão aparecendo ao longo da narrativa,
cuja importância vai tomando proporções cada vez maiores:
Túlio, Mãe Susana e Antero que, juntamente com o jovem Tancredo,
dão o tom diferente à narrativa. Um leitor desavisado pode entender
seus papéis como mero acessório para o drama dos demais personagens,
porém, ao ler com o cuidado que o romance merece, percebe-se que o drama
dos escravos vai tomando proporções cada vez maiores, a ponto
de prender a atenção do leitor.

Do ponto de vista formal, o texto marca-se pela linearidade narrativa e por
personagens desprovidos de maior complexidade psicológica. Tais figuras
vivem quase sempre situações extremas, marcadas pelo acaso e por
mudanças bruscas do destino. Situando Úrsula no contexto
da narrativa folhetinesca, pode-se aquilatar o quanto a escritora se apropria
das técnicas do romance de fácil aceitação popular,
a fim de utilizá-las como instrumento a favor da dignificação
dos oprimidos, em especial a mulher e o escravo. O triângulo amoroso formado
pela jovem Úrsula, seu amado Tancredo e pelo tio Comendador, que surge
como encarnação de todo o mal sobre a terra, ocupa o plano principal
das ações. Além de assassinar o pai e abandonar a mãe
da protagonista anos e anos entrevada numa cama, o Comendador compõe
a figura sádica do senhor cruel que explora a mão de obra cativa
até o limite de suas forças. Ao final, enlouquecido de ciúmes,
o vilão mata Tancredo na própria noite do casamento deste com
Úrsula, o que provoca a loucura, o posterior falecimento da heroína
e o inconsolável remorso que também leva o tio à morte,
não sem antes passar pela libertação de seus escravos e
pela reclusão num convento. O texto descarta o final feliz e opta pelos
esquemas consagrados no romance gótico a fim de estabelecer a empatia
com o público.

Todavia, o livro cresce na medida em que emergem os dramas dos escravos. A
narrativa se inicia com o jovem Túlio – único cativo da
decadente propriedade da mãe de Úrsula – salvando a vida
de Tancredo num acidente. Não por acaso, o primeiro capítulo,
destinado à apresentação do cenário e dos dois personagens,
se intitula “Duas Almas Generosas” e logo sabe-se porquê.
De imediato, destaca-se a humanidade condoída do sujeito afro-descendente,
cujo perfil dramático e existencial vai além da mera força
de trabalho ou do papel de porta-voz do ódio rancoroso dos quilombolas.

Na construção dos personagens nota-se uma valorização
das características próprias dos afro-descendentes, rompendo-se,
assim, com o estereótipo racial que
sempre deu ao negro uma conotação negativa – o que podemos
perceber na seguinte descrição de Túlio que é uma
verdadeira exaltação à raça negra:

O homem que assim falava era um pobre rapaz, que ao muito parecia contar
25 anos, e que na franca expressão de sua fisionomia deixava adivinhar
toda a nobreza de um coração bem formado. O sangue africano refervia-lhe
nas veias; o mísero ligava-se à odiosa cadeia da escravidão;
e embalde o sangue ardente que herdara de seus pais, e que o nosso clima e a
escravidão não puderam resfriar, embalde – dissemos –
se revoltava; porque se lhe erguia como barreira – o poder do forte contra
o fraco
(Reis, 2004: 22).

A composição do personagem já indica a perspectiva que
orienta a representação do choque entre as etnias no texto de
Maria Firmina dos Reis. A escravidão é “odiosa”, mas
nem por isto endureceu a sensibilidade do jovem negro. Eis a chave para compreender
a estratégia da autora de combate ao regime sem agredir em demasia as
convicções dos leitores brancos. Túlio era vítima,
não algoz. Sua revolta se fazia em silêncio, pois não tinha
meios para confrontar o poder dos senhores. Não os sabotava nem os roubava,
todavia, como os escravos presentes em As
Vítimas-algozes
, de Joaquim Manoel de Macedo (1869). Seu comportamento
pautava-se pelos valores cristãos, apropriados pela autora a fim de melhor
propagar seu ideário:

Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima
– ama a teu próximo como a ti mesmo – e deixará de
oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!…
aquele que também era livre no seu país… aquele que é
seu irmão?!

E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não
lhe embrutecera a alma; porque os sentimentos generosos, que Deus lhe implantou
no coração, permaneciam intactos, e puros como sua alma. Era infeliz;
mas era virtuoso; e por isso seu coração enterneceu-se em presença
da dolorosa cena, que se lhe ofereceu à vista.
(Reis: 2004)
Ressalte-se de início que não se trata de condenar a escravidão
unicamente porque um escravo específico possui um caráter elevado.
Trata-se de condenar a escravidão como instituição. E a
autora o faz partir do próprio discurso religioso oriundo da hegemonia
branca, que afirmou serem todos irmãos independentemente da cor da pele.
Se pensar em termos do longínquo ano de 1859 e da longínqua província
do Maranhão, pode-se aquilatar o quanto tal postura tem de avançado,
num contexto em que a própria Igreja Católica respaldava o sistema
escravista.

E não é só. O primeiro capítulo objetiva apresentar
os dois personagens masculinos que irão encarnar a positividade moral
do texto: um branco e um negro. Assim eles entram em cena, primeiro Tancredo;
depois, Túlio. Entretanto, ao utilizar-se do artifício do acidente,
a autora faz com que o segundo tome a frente do primeiro e cresça enquanto
personagem. Já de início, o leitor passa a conhecê-lo em
suas virtudes, enquanto do outro sabe apenas do atordoamento mental que provocou
o acidente. Há mais: ao despertar do desmaio, Tancredo deparou-se com
o negro à sua frente e, apesar da febre que já lhe turvava novamente
os sentidos, vislumbrou no escravo o homem bom que o salvou:

O cavaleiro começava a coordenar suas idéias, e as expressões
do escravo, e os serviços que lhe prestara tocaram-lhe o mais fundo do
coração. É que em seu coração ardiam sentimentos
tão nobres e generosos como os que animavam a alma do jovem negro: por
isso, num transporte de íntima e generosa gratidão, o mancebo,
arrancando a luva, que lhe calçava a destra, estendeu a mão ao
homem que o salvara.
(Reis: 2004)

O negro não foi apenas colocado na trama em pé de igualdade
frente ao rico cavaleiro. Mais que isto, ele foi a “base de comparação”
para que o leitor aquilatasse o valor do jovem herói branco. Ou seja,
no discurso do narrador onisciente, o negro é parâmetro de elevação
moral. Tal fato se constitui em verdadeira inversão de valores numa sociedade
escravocrata, cujas elites difundiam teorias “científicas”
a respeito da inferioridade natural dos africanos. Assim fazendo, a voz que
narra mostra-se desde o início comprometida com a dignificação
do personagem, ao mesmo tempo em que expressa com todas as letras qual o território
cultural e axiológico que reivindica para si: o da afro-descendência.
Esse pertencimento se traduz ainda na simpatia que a autora devota a Túlio
e aos demais personagens submetidos ao cativeiro.

Ao abrigar o cavaleiro ferido na casa de sua senhora, o escravo propicia o
encontro dos dois e o início da paixão que os leva à breve
felicidade. Mais uma vez, sobressaem nesses momentos o zelo e a dignidade de
Túlio, que termina ganhando a alforria como sinal de gratidão
do homem branco. Um forte elo de amizade passa a uni-los e, a partir de então,
o negro torna-se companhia inseparável de Tancredo. Ele faz a figura
do jovem de bom caráter, que respeita a senhora por não tê-lo
maltratado, e que se julga em dívida com aquele que o libertou. No entanto,
sua nova condição é desmascarada por Mãe Susana,
quando esta ironiza a “liberdade” do alforriado – que afinal,
irá conduzi-lo à morte – comparando-a à vida que
levava em África:

– Tu! tu livre? Ah não me iludas! – exclamou a velha africana
abrindo uns grandes olhos. (…) Liberdade… eu gozei em minha mocidade! –
continuou Suzana com amargura. Túlio, meu filho, ninguém a gozou
mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu.
(Reis:
2004)

Além de reforçar a própria condição afro-descendente
do texto, a entrada em cena da velha africana confere maior densidade ao sentido
político do mesmo. Mais uma vez, o território de origem é
mencionado sem rodeios, ao contrário do que se vê em outros escritos
do século XIX, inclusive assinados por afro-brasileiros. Sobressai, então,
a condição diaspórica vivida pelos personagens arrancados
de suas terras e famílias para cumprir no exílio a prisão
representada pelo trabalho forçado. É Mãe Susana quem vai
explicar a Túlio o sentido da verdadeira liberdade, que não seria
nunca a de um alforriado num país racista. Para tanto, a velha escrava
recordava sua terra natal, a infância livre, o amor de seu companheiro
e a vida feliz que levavam junto à filhinha até o dia em que foi
capturada pelos “bárbaros” mercadores de seres humanos. Segue-se
a narrativa do aprisionamento e da crueldade com que foi tratada ao deixar para
sempre “pátria, esposo, mãe, filha, e liberdade”:

Foi embalde que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem
a liberdade: os bárbaros sorriam-se de minhas lágrimas, e olhavam-me
sem compaixão. (…) Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros
de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um
navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto
é necessário à vida passamos nessa sepultura até
que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão
fomos amarrados em pé para que não houvesse receio de revolta,
acorrentados como animais ferozes das nossas matas que se levam para recreio
dos potentados da Europa
. (REIS: 2004)

Sobressai de imediato a postura do sujeito da rememoração, na
qual o eu individual deságua num nó coletivo. É o discurso
do outro fazendo ouvir pela primeira vez na literatura brasileira a voz dos
escravizados. Voz política que denunciava, em plena vigência do
espírito das luzes, o conquistador europeu como bárbaro, invertendo
de forma inédita a acusação racista, corrente na Europa
e presente no pensamento de filósofos do porte de Hegel, que excluía
a África do mundo civilizado. O romance prossegue com o verismo da descrição
sobrepujando-se à ficção propriamente dita. Com isto, o
texto ganhou em densidade histórica e humana o que perdeu porventura
em termos de aprofundamento psicológico dos personagens e do próprio
andamento da trama, suspendendo-se esta para que se ouvisse a versão
das vítimas. A narrativa da vida de Mãe Susana, na África,
e de seu aprisionamento, ocupa todo o nono capítulo e foi inscrita no
texto justamente no momento em que se deu a alforria de Túlio a fim de
relativizá-la enquanto conquista da liberdade.

O discurso anti-escravista perpassa praticamente toda a obra de Maria Firmina.

Além das sofridas lembranças de Mãe Susana e da moldura
cristã que preside a nova condição de Túlio, Úrsula
trata ainda de um outro tipo de escravo: o que perde a auto-estima e se entrega
ao vício. Surge então a figura decrépita de Pai Antero,
sujeito de bom coração, mas dominado pelo alcoolismo. Saudoso
dos costumes de sua terra e do “vinho de palmeira” bebido no ritual
africano do descanso semanal, que Maria Firmina nomeia “festa do fetiche”,
Antero cumpre na trama o contraponto dramático ao caráter elevado
de Túlio. Além disso, ao ressaltar o vício do personagem,
o texto escapa à idealização pela qual todo negro seria
perfeito e todo branco ruim. Com Antero, fechou-se a estrutura trina encimada
por Mãe Susana, e essa tríade negra vai aos poucos seqüestrando
a atenção do leitor e superando em importância o previsível
triângulo amoroso vivido pelos personagens brancos.

Assim, entre a positividade e a ingênua bondade do jovem afro-brasileiro
e a negatividade representada pela decadência do velho africano, Maria
Firmina abre espaço para o discurso de Mãe Susana, elo vivo com
a memória ancestral e com a consciência da subordinação.
Espécie de alter ego da romancista, a personagem configura aquela voz
feminina porta-voz da verdade histórica e que pontua as ações,
ora com comentários e intervenções moralizantes, ora como
verdadeira pitonisa a tecer passado, presente e futuro nos anúncios e
previsões que, por um lado, preparam o espírito do leitor e aceleram
o andamento da narrativa e, por outro, instigam a reflexão e a crítica.
Essa voz feminina emerge, pois, das margens da ação para carregá-la
de densidade, do mesmo modo que sua autora, que também emerge das margens
da literatura brasileira para agregar a ela um instigante suplemento de sentido:
o da afro-brasilidade.

Fontes: Eduardo de Assis Duarte, Prof. de Teoria da Literatura e Literatura
Comparada da UFMG | Adriana Barbosa de Oliveira, Mestra no Programa
de Estudos Literários – UFMG

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