Home EstudosLivros A Chinela Turca (Conto de Papéis Avulsos), de Machado de Assis

A Chinela Turca (Conto de Papéis Avulsos), de Machado de Assis

by Lucas Gomes

Este conto de Machado de Assis foi publicado, pela primeira vez, na Época, nº 1, de 14 de novembro de
1875.

A Chinela Turca, além de um texto enriquecedor por fazer uso de uma linguagem agradável, com certa
dose de humor, expressa a língua magnífica, que deve ser sempre instrumento de reflexão. Sabe-se que o
texto foi escrito no século dezenove e mantém as características próprias da época. O texto é uma ficção,
o fictício se completa com o imaginário, num desnudamento das relações intratextuais, relativizadas no
contexto do leitor.

A relação do real com o fictício e o imaginário apresenta uma propriedade fundamental do texto ficcional.
Quando a realidade repetida no fingir se transforma em signo, ocorre uma transgressão de sua
determinação. Daí o ato de fingir ser uma transgressão de limites. Nisso se expressa sua aliança com o
imaginário.

Em A chinela turca é por intermédio da visão que a “realidade” se confunde com o sonho. As
transições são calcadas na visão. Assim, a passagem da “realidade” ao sonho: “De repente, viu Duarte que
o major enrolava outra vez o manuscrito, […]”. E a passagem do sonho à “realidade”: “Fitou os olhos no
homem. Era o major Lopo Alves. O major, empunhando a folha, cujas dimensões iam-se tornando extremamente
exíguas, exclamou […]”.

Machado de Assis distingue-se de outros autores por apresentar vazios para que o leitor possa se
apropriar desses espaços transformando-se em co-autor, sem que este mesmo leitor se perca do caminho
traçado pelo autor.

O fictício é a vertente intencional do autor, a obra que ele apresenta para o leitor. Esta vertente se
torna contexto para a vertente do imaginário, vertente espontânea. Estabelece-se o jogo, um espaço de
troca, de expectativas, de suspense, de interação. É no fingir que emerge um imaginário que se relaciona
com a realidade do texto. O autor seleciona fatos, personagens, lugares e combina todos estes elementos
constituindo ações, transgressões intratextuais, rompe com os limites do próprio texto, permitindo que o
leitor crie a partir destas situações, outras tantas que caracterizam o imaginário do leitor.

A história se passa na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1850. O bacharel Duarte prepara-se para ir a
um baile, onde encontrará uma jovem com quem está a namorar há pouco tempo, quando lhe anunciam a visita
do major Lopo Alves, velho amigo da família. Causa-lhe horror a visita àquela hora. O major vem lhe dar a
notícia de que acabara de escrever um drama. O bacharel custa a crer que isso realmente estava
acontecendo com ele, naquela hora da noite, só pensava em Cecília. Empalideceu quando viu o major abrir o
rolo que trazia, seria breve na leitura, afinal não passava o drama de cento e oitenta folhas
manuscritas. O major começou a leitura, o bacharel mergulhou o corpo e o desespero numa vasta poltrona de
marroquim, resoluto a não dizer palavra para ir mais depressa ao termo.

O drama dividia-se em sete quadros. Os sentimentos do bacharel não faziam crer tamanha ferocidade; mas a
leitura de um mau livro é capaz de produzir fenômenos ainda mais espantosos.

Neste momento o escritor está preparando o leitor para viver o imaginário que a partir deste ponto da
obra vai ser criado pelo bacharel.

Voava o tempo, e o ouvinte já não sabia a conta dos quadros… De repente, viu Duarte que o major
enrolava outra vez o manuscrito, erguia-se, empertigava-se, cravava nele uns olhos odiendos e maus, e
saía arrebatadamente do gabinete… autor e drama tinham desaparecido. Por que não fez ele isso há mais
tempo?

Mal tem tempo de suspirar com alegria, quando o empregado vem anunciar-lhe outra visita. Era a polícia!

Era acusado de furtar uma chinela turca, preciosa. Duarte suspeitou que o homem fosse doido ou um ladrão.
Não teve tempo de examinar a suspeita, viu entrar cinco homens armados, que lhe levaram. Meteram-no à
força em um carro e partiram.

No carro, os homens confirmam as suspeitas de Duarte, eles não eram da polícia. Chegaram a uma bela casa.
Duarte já achava que a chinela vinha a ser pura metáfora; tratava-se do coração de Cecília, que ele
roubara, delito de que o queria punir o já imaginado rival. Na casa um homem misterioso apresenta-lhe
uma linda moça, muito parecida com Cecília. O homem diz-lhe que três coisas Duarte vai fazer: casar,
escrever o seu testamento; e engolir certa droga do Levante…

Possuía uma pequena fortuna, deixaria tudo para a moça e depois morreria. Não, não se casaria.

Ao ser chamado, entra um padre, que olha para ele de modo esquisito. Num momento de distração, o padre
revela-lhe que era tenente do exército e que ele deveria pular a janela e fugir.

Duarte não hesitou, pulou a Deus misericórdia por ali abaixo. Deu com um segurança, fechou os punhos e
bateu com eles violentamente nos peitos do homem e deitou a correr. O homem não caiu. Começou então uma
carreira vertiginosa.

Cansado, ferido, ofegante, caiu nos degraus de pedra de uma casa. Um homem que ali estava, lendo um
número de Jornal do Comércio, pareceu não o ter visto entrar. Duarte fitou os olhos no homem. Era o
major Lopo Alves.

O major exclamou repentinamente: Fim do último quadro.

Duarte olhou para ele, esfregou os olhos, respirou à larga. O major pergunta-lhe “Que tal lhe parece?”
“Ah! Excelente!” Respondeu o bacharel, levantando-se. “Paixões fortes, não?” Pergunta-lhe o Major.
“Fortíssimas”, responde Duarte.

O Major despediu-se, eram duas horas. Duarte respirou fundo, foi até a janela e disse para si mesmo:
– “Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original,
substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom negócio. Um negócio e uma grave lição: provaste-me
que muitas vezes o melhor drama está no espectador e não no palco.”

Leia o conto na íntegra:

A CHINELA TURCA

Vede o bacharel Duarte. Acaba de compor o mais teso e correto laço de gravata que apareceu naquele ano de
1850, e anunciam-lhe a visita do major Lopo Alves. Notai que é de noite, e passa de nove horas. Duarte
estremeceu, e tinha duas razões para isso. A primeira era ser o major, em qualquer ocasião, um dos mais
enfadonhos sujeitos do tempo. A segunda é que ele preparava-se justamente para ir ver, em um baile, os
mais finos cabelos loiros e os mais pensativos olhos azuis que este nosso clima, tão avaro deles,
produzira. Datava de uma semana aquele namoro. Seu coração deixando-se prender entre duas valsas, confiou
aos olhos, que eram castanhos, uma declaração em regra, que eles pontualmente transmitiram à moça, dez
minutos antes da ceia, recebendo favorável resposta logo depois do chocolate. Três dias depois, estava a
caminho a primeira carta, e pelo jeito que levavam as coisas não era de admirar que, antes do fim do ano,
estivessem ambos a caminho da igreja. Nestas circunstâncias, a chegada de Lopo Alves era uma verdadeira
calamidade. Velho amigo da família, companheiro de seu finado pai no exército, tinha jus o major a todos
os respeitos. Impossível despedi-lo ou tratá-lo com frieza. Havia felizmente uma circunstância atenuante;
o major era aparentado com Cecília, a moça dos olhos azuis; em caso de necessidade, era um voto seguro.

Duarte enfiou um chambre e dirigiu-se para a sala, onde Lopo Alves, com um rolo debaixo do braço e os
olhos fitos no ar, parecia totalmente alheio à chegada do bacharel.

— Que bom vento o trouxe a Catumbi a semelhante hora? perguntou Duarte, dando à voz uma expressão de
prazer, aconselhada não menos pelo interesse que pelo bom-tom.

— Não sei se o vento que me trouxe é bom ou mau, respondeu o major sorrindo por baixo do espesso bigode
grisalho; sei que foi um vento rijo. Vai sair?

— Vou ao Rio Comprido.

— Já sei; vai à casa da viúva Meneses. Minha mulher e as pequenas já lá devem estar: eu irei mais tarde,
se puder. Creio que é cedo, não?

Lopo Alves tirou o relógio e viu que eram nove horas e meia. Passou a mão pelo bigode, levantou-se, deu
alguns passos na sala, tornou a sentar-se e disse:

— Dou-lhe uma notícia, que certamente não espera. Saiba que fiz… fiz um drama.

— Um drama! exclamou o bacharel.

— Que quer? Desde criança padeci destes achaques literários. O serviço militar não foi remédio que me c
urasse, foi um paliativo. A doença regressou com a força dos primeiros tempos. Já agora não há mais
remédio senão deixá-la, e ir simplesmente ajudando a natureza.

Duarte recordou-se de que efetivamente o major falava noutro tempo de alguns discursos inaugurais, duas
ou três nênias e boa soma de artigos que escrevera acerca das campanhas do Rio da Prata. Havia porém
muitos anos que Lopo Alves deixara em paz os generais platinos e os defuntos; nada fazia supor que a
moléstia volvesse, sobretudo caracterizada por um drama. Esta circunstância explicá-la-ia o bacharel, se
soubesse que Lopo Alves algumas semanas antes, assistira à representação de uma peça do gênero
ultra-romântico, obra que lhe agradou muito e lhe sugeriu a idéia de afrontar as luzes do tablado. Não
entrou o major nestas minuciosidades necessárias, e o bacharel ficou sem conhecer o motivo da explosão
dramática do militar. Nem o soube, nem curou disso. Encareceu muito as faculdades mentais do major,
manifestou calorosamente a ambição que nutria de o ver sair triunfante naquela estréia, prometeu que o
recomendaria a alguns amigos que tinha no Correio Mercantil, e só estacou e empalideceu quando viu o
major, trêmulo de bem-aventurança, abrir o rolo que trazia consigo.

— Agradeço-lhe as suas boas intenções, disse Lopo Alves, e aceito o obséquio que me promete; antes dele,
porém, desejo outro. Sei que é inteligente e lido; há de me dizer francamente o que pensa deste trabalho.
Não lhe peço elogios, exijo franqueza e franqueza rude. Se achar que não é bom, diga-o sem rebuço.

Duarte procurou desviar aquele cálice de amargura; mas era difícil pedi-lo, e impossível alcançá-lo.
Consultou melancolicamente o relógio, que marcava nove horas e cinqüenta e cinco minutos, enquanto o
major folheava paternalmente as cento e oitenta folhas do manuscrito.

— Isto vai depressa, disse Lopo Alves; eu sei o que são rapazes e o que são bailes. Descanse que ainda
hoje dançará duas ou três valsas com ela, se a tem, ou com elas. Não acha melhor irmos para o seu
gabinete?

Era indiferente, para o bacharel, o lugar do suplício; acedeu ao desejo do hóspede. Este, com a liberdade
que lhe davam as relações, disse ao moleque que não deixasse entrar ninguém. O algoz não queria
testemunhas. A porta do gabinete fechou-se; Lopo Alves tomou lugar ao pé da mesa, tendo em frente o
bacharel, que mergulhou o corpo e o desespero numa vasta poltrona de marroquim, resoluto a não dizer
palavra para ir mais depressa ao termo.

O drama dividia-se em sete quadros. Esta indicação produziu um calafrio no ouvinte. Nada havia de novo
naquelas cento e oitenta páginas, senão a letra do autor. O mais eram os lances, os caracteres, as
ficelles, e até o estilo dos mais acabados tipos do romantismo desgrenhado. Lopo Alves cuidava pôr por
obra uma invenção, quando não fazia mais do que alinhavar as suas reminiscências. Noutra ocasião, a obra
seria um bom passatempo. Havia logo no primeiro quadro, espécie de prólogo, uma criança roubada à
família, um envenenamento, dois embuçados, a ponta de um punhal e quantidade de adjetivos não menos
afiados que o punhal. No segundo quadro dava-se conta da morte de um dos embuçados, que devia ressuscitar
no terceiro, para ser preso no quinto, e matar o tirano do sétimo. Além da morte aparente do embuçado,
havia no segundo quadro o rapto da menina, já então moça de dezessete anos, um monólogo que parecia durar
igual prazo, e o roubo de um testamento.

Eram quase onze horas quando acabou a leitura deste segundo quadro. Duarte mal podia conter a cólera; era
já impossível ir ao Rio Comprido. Não é fora de propósito conjeturar que, se o major expirasse naquele
momento, Duarte agradecia a morte como um benefício da Providência. Os sentimentos do bacharel não faziam
crer tamanha ferocidade; mas a leitura de um mau livro é capaz de produzir fenômenos ainda mais
espantosos. Acresce que, enquanto aos olhos carnais do bacharel aparecia em toda a sua espessura a grenha
de Lopo Alves, fugiam-lhe ao espírito os fios de ouro que ornavam a formosa cabeça de Cecília; via-a com
os olhos azuis, a tez branca e rosada, o gesto delicado e gracioso, dominando todas as demais damas que
deviam estar no salão da viúva Meneses. Via aquilo, e ouvia mentalmente a música, a palestra, o soar dos
passos, e o ruge-ruge das sedas; enquanto a voz rouquenha e sensaborona de Lopo Alves ia desfiando os
quadros e os diálogos, com a impassibilidade de uma grande convicção.

Voava o tempo, e o ouvinte já não sabia a conta dos quadros. Meia-noite soara desde muito; o baile estava
perdido. De repente, viu Duarte que o major enrolava outra vez o manuscrito, erguia-se, empertigava-se,
cravava nele uns olhos odientos e maus, e saía arrebatadamente do gabinete. Duarte quis chamá-lo, mas o
pasmo tolhera-lhe a voz e os movimentos. Quando pôde dominar-se, ouviu o bater do tacão rijo e colérico
do dramaturgo na pedra da calçada.

Foi à janela; nada viu nem ouviu; autor e drama tinham desaparecido.

— Por que não fêz ele isso a mais tempo? disse o rapaz suspirando.

O suspiro mal teve tempo de abrir as asas e sair pela janela fora, em demanda do Rio Comprido, quando o
moleque do bacharel veio anunciar-lhe a visita de um homem baixo e gordo.

— A esta hora? exclamou Duarte.

— A esta hora, repetiu o homem baixo e gordo, entrando na sala. A esta ou a qualquer hora, pode a polícia
entrar na casa do cidadão, uma vez que se trata de um delito grave.

— Um delito!

— Creio que me conhece…

— Não tenho essa honra.

— Sou empregado na polícia.

— Mas que tenho eu com o senhor? de que delito se trata?

— Pouca coisa: um furto. O senhor é acusado de ter subtraído uma chinela turca. Aparentemente não vale
nada ou vale pouco a tal chinela. Mas há chinela e chinela. Tudo depende das circunstâncias.

O homem disse isto com um riso sarcástico, e cravando no bacharel uns olhos de inquisidor. Duarte não
sabia sequer da existência do objeto roubado. Concluiu que havia equívoco de nome, e não se zangou com a
injúria irrogada à sua pessoa, e de algum modo à sua classe, atribuindo-se-lhe a ratonice. Isto mesmo
disse ao empregado da polícia, acrescentando que não era motivo, em todo caso, para incomodá-lo a
semelhante hora.

— Há de perdoar-me, disse o representante da autoridade. A chinela de que se trata vale algumas dezenas
de contos de réis; é ornada de finíssimos diamantes, que a tornam singularmente preciosa. Não é turca só
pela forma, mas também pela origem. A dona, que é uma de nossas patrícias mais viajeiras, esteve, há
cerca de três anos no Egito, onde a comprou a um judeu. A história, que este aluno de Moisés referiu
acerca daquele produto da indústria muçulmana, é verdadeiramente miraculosa, e, no meu sentir,
perfeitamente mentirosa. Mas não vem ao caso dizê-la. O que importa saber é que ela foi roubada e que a
polícia tem denúncia contra o senhor.

Neste ponto do discurso, chegara-se o homem à janela; Duarte suspeitou que fosse um doido ou um ladrão.
Não teve tempo de examinar a suspeita, porque dentro de alguns segundos, viu entrar cinco homens armados,
que lhe lançaram as mãos e o levaram, escada abaixo, sem embargo dos gritos que soltava e dos movimentos
desesperados que fazia. Na rua havia um carro, onde o meteram à força. Já lá estava o homem baixo e
gordo, e mais um sujeito alto e magro, que o receberam e fizeram sentar no fundo do carro. Ouviu-se
estalar o chicote do cocheiro e o carro partiu à desfilada.

— Ah! ah! disse o homem gordo. Com que então pensava que podia impunemente furtar chinelas turcas,
namorar moças louras, casar talvez com elas… e rir ainda por cima do gênero humano.

Ouvindo aquela alusão à dama dos seus pensamentos, Duarte teve um calafrio. Tratava-se, ao que parecia,
de algum desforço de rival suplantado. Ou a alusão seria casual e estranha à aventura? Duarte perdeu-se
num cipoal de conjeturas, enquanto o carro ia sempre andando a todo galope. No fim de algum tempo,
arriscou uma observação.

— Quaisquer que sejam os meus crimes, suponho que a polícia…

— Nós não somos da polícia, interrompeu friamente o homem magro.

— Ah!

— Este cavalheiro e eu fazemos um par. Ele, o senhor e eu fazemos um terno. Ora, terno não é melhor que
par; não é, não pode ser. Um casal é o ideal. Provavelmente não me entendeu?

— Não, senhor.

— Há de entender logo mais.

Duarte resignou-se à espera, enfronhou-se no silêncio, derreou o corpo, e deixou correr o carro e a
aventura. Obra de cinco minutos depois estacavam os cavalos.

— Chegamos, disse o homem gordo.

Dizendo isto, tirou um lenço da algibeira e ofereceu-o ao bacharel para que tapasse os olhos. Duarte
recusou, mas o homem magro observou-lhe que era mais prudente obedecer que resistir. Não resistiu o
bacharel; atou o lenço e apeou-se. Ouviu, daí a pouco, ranger uma porta; duas pessoas, — provavelmente
as mesmas que o acompanharam no carro, — seguraram-lhe as mãos e o conduziram por uma infinidade de
corredores e escadas. Andando, ouvia o bacharel algumas vozes desconhecidas, palavras soltas, frases
truncadas. Afinal pararam; disseram-lhe que se sentasse e destapasse os olhos. Duarte obedeceu; mas ao
desvendar-se, não viu ninguém mais.

Era uma sala vasta, assaz iluminada, trastejada com elegância e opulência. Era talvez sobreposse a
variedade dos adornos; contudo, a pessoa que os escolhera devia ter gosto apurado.

Os bronzes, charões, tapetes, espelhos, — a cópia infinita de objetos que enchiam a sala, era tudo da
melhor fábrica. A vista daquilo restituiu a serenidade de ânimo ao bacharel; não era provável que ali
morassem ladrões.

Reclinou-se o moço indolentemente na otomana… Na otomana! Esta circunstância trouxe à memória do rapaz
o principio da aventura e o roubo da chinela. Alguns minutos de reflexão bastaram para ver que a tal
chinela era já agora mais que problemática. Cavando mais fundo no terreno das conjeturas, pareceu-lhe
achar uma explicação nova e definitiva. A chinela vinha a ser pura metáfora; tratava-se do coração de
Cecília, que ele roubara, delito de que o queria punir o já imaginado rival. A isto deviam ligar-se
naturalmente as palavras misteriosas do homem magro: o par é melhor que o terno; um casal é o ideal.

— Há de ser isto, concluiu Duarte; mas quem será esse pretendente derrotado?

Neste momento abriu-se uma porta do fundo da sala e negrejou a batina de um padre alvo e calvo. Duarte
levantou-se, como por efeito de uma mola. O padre atravessou lentamente a sala, ao passar por ele
deitou-lhe a bênção, e foi sair por outra porta rasgada na parede fronteira. O bacharel ficou sem
movimento, a olhar para a porta, a olhar sem ver, estúpido de todos os sentidos. O inesperado daquela
aparição baralhou totalmente as idéias anteriores a respeito da aventura. Não teve tempo, entretanto, de
cogitar alguma nova explicação, porque a primeira porta foi de novo aberta e entrou por ela outra figura,
desta vez o homem magro, que foi direito a ele e o convidou a segui-lo. Duarte não opôs resistência.
Saíram por uma terceira porta, e, atravessados alguns corredores mais ou menos alumiados, foram dar a
outra sala, que só o era por duas velas postas em castiçais de prata. Os castiçais estavam sobre uma mesa
larga. Na cabeceira desta havia um homem velho que representava ter cinqüenta e cinco anos; era uma
figura atlética, farta de cabelos na cabeça e na cara.

— Conhece-me? perguntou o velho, logo que Duarte entrou na sala.

— Não, senhor.

— Nem é preciso. O que vamos fazer exclui absolutamente a necessidade de qualquer apresentação. Saberá em
primeiro lugar que o roubo da chinela foi um simples pretexto…

— Oh! decerto! interrompeu Duarte.

— Um simples pretexto, continuou o velho, para trazê-lo a esta nossa casa. A chinela não foi roubada;
nunca saiu das mãos da dona. João Rufino, vá buscar a chinela.

O homem magro saiu, e o velho declarou ao bacharel que a famosa chinela não tinha nenhum diamante, nem
fora comprada a nenhum judeu do Egito; era, porém, turca, segundo se lhe disse, e um milagre de pequenez.
Duarte ouviu as explicações, e, reunindo todas as forças, perguntou resolutamente:

— Mas, senhor, não me dirá de uma vez o que querem de mim e o que estou fazendo nesta casa?

— Vai sabê-lo, respondeu tranqüilamente o velho.

A porta abriu-se e apareceu o homem magro com a chinela na mão. Duarte, convidado a aproximar-se da luz,
teve ocasião de verificar que a pequenez era realmente miraculosa. A chinela era de marroquim finíssimo;
no assento do pé, estufado e forrado de seda cor azul, rutilavam duas letras bordadas a ouro.

— Chinela de criança, não lhe parece? disse o velho.

— Suponho que sim.

— Pois supõe mal; é chinela de moça.

— Será; nada tenho com isso.

— Perdão! Tem muito, porque vai casar com a dona.

— Casar! exclamou Duarte.

— Nada menos. João Rufino, vá buscar a dona da chinela.

Saiu o homem magro, e voltou logo depois. Assomando à porta, levantou o reposteiro e deu entrada a uma
mulher, que caminhou para o centro da sala. Não era mulher, era uma sílfide, uma visão de poeta, uma
criatura divina.

Era loura; tinha os olhos azuis, como os de Cecília, extáticos, uns olhos que buscavam o céu ou pareciam
viver dele. Os cabelos, deleixadamente penteados, faziam-lhe em volta da cabeça um como resplendor de
santa; santa somente, não mártir, porque o sorriso que lhe desabrochava os lábios, era um sorriso de
bem-aventurança, como raras vezes há de ter tido a terra.

Um vestido branco, de finíssima cambraia, envolvia-lhe castamente o corpo, cujas formas aliás desenhava,
pouco para os olhos, mas muito para a imaginação.

Um rapaz, como o bacharel, não perde o sentimento da elegância, ainda em lances daqueles. Duarte, ao ver
a moça, compôs o chambre, apalpou a gravata e fez uma cerimoniosa cortesia, a que ela correspondeu com
tamanha gentileza e graça, que a aventura começou a parecer muito menos aterradora.

— Meu caro doutor, esta é a noiva.

A moça abaixou os olhos; Duarte respondeu que não tinha vontade de casar.

— Três coisas vai o senhor fazer agora mesmo, continuou impassivelmente o velho: a primeira, é casar; a
segunda, escrever o seu testamento; a terceira engolir droga do Levante…

— Veneno! interrompeu Duarte.

— Vulgarmente é esse o nome; eu dou-lhe outro: passaporte do céu.

Duarte estava pálido e frio. Quis falar, não pôde; um gemido, sequer, não lhe saiu do peito. Rolaria ao
chão, se não houvesse ali perto uma cadeira em que se deixou cair.

— O senhor, continuou o velho, tem uma fortunazinha de cento e cinqüenta contos. Esta pérola será a sua
herdeira universal. João Rufino, vá buscar o padre.

O padre entrou, o mesmo padre calvo que abençoara o bacharel pouco antes; entrou e foi direto ao moço,
engrolando sonolentamente um trecho de Neemias ou qualquer outro profeta menor; travou-lhe da mão e
disse:

— Levante-se!

— Não! Não quero! Não me casarei!

— E isto? disse da mesa o velho, apontando-lhe uma pistola.

— Mas então é um assassinato?

— É; a diferença está no gênero de morte: ou violenta com isto, ou suave com a droga. Escolha!

Duarte suava e tremia. Quis levantar-se e não pôde. Os joelhos batiam um contra o outro. O padre
chegou-se-lhe ao ouvido, e disse baixinho:

— Quer fugir?

— Oh! Sim! exclamou, não com os lábios, que podia ser ouvido, mas com os olhos em que pôs toda a vida
que lhe restava.

— Vê aquela janela? Está aberta; embaixo fica um jardim. Atire-se dali sem medo.

— Oh! Padre! disse baixinho o bacharel.

— Não sou padre, sou tenente do exército. Não diga nada.

A janela estava apenas cerrada; via-se pela fresta uma nesga do céu, já meio claro. Duarte não hesitou,
coligiu todas as forças, deu um pulo do lugar onde estava e atirou-se a Deus misericórdia por ali
abaixo. Não era grande altura, a queda foi pequena; ergueu-se o moço rapidamente, mas o homem gordo, que
estava no jardim, tomou-lhe o passo.

— Que é isso? perguntou ele rindo.

Duarte não respondeu, fechou os punhos, bateu com eles violentamente nos peitos do homem e deitou a
correr pelo jardim fora. O homem não caiu; sentiu apenas um grande abalo; e, uma vez passada a
impressão, seguiu no encalço do fugitivo. Começou então uma carreira vertiginosa. Duarte ia saltando
cercas e muros, calcando canteiros, esbarrando árvores, que uma ou outra vez se lhe erguiam na frente.
Escorria-lhe o suor em bica, alteava-se-lhe o peito, as forças iam a perder-se pouco a pouco; tinha uma
das mãos feridas, a camisa salpicada do orvalho das folhas, duas vezes esteve a ponto de ser apanhado, o
chambre pegara-se-lhe em uma cerca de espinhos. Enfim, cansado, ferido, ofegante, caiu nos degraus de
pedra de uma casa, que havia no meio do último jardim que atravessara.

Olhou para trás; não viu ninguém, o perseguidor não o acompanhara até ali. Podia vir, entretanto; Duarte
ergueu-se a custo, subiu os quatro degraus que lhe faltavam, e entrou na casa, cuja porta, aberta, dava
para uma sala pequena e baixa.

Um homem que ali estava, lendo um número do Jornal do Comércio, pareceu não o ter visto entrar. Duarte
caiu numa cadeira. Fitou os olhos no homem. Era o major Lopo Alves.

O major, empunhando a folha, cujas dimensões iam-se tornando extremamente exíguas, exclamou
repentinamente:

— Anjo do céu, estás vingado! Fim do último quadro.

Duarte olhou para ele, para a mesa, para as paredes, esfregou os olhos, respirou à larga.

— Então! Que tal lhe pareceu?

— Ah! excelente! Respondeu o bacharel, levantando-se.

— Paixões fortes, não?

— Fortíssimas. Que horas são?

— Deram duas agora mesmo.

Duarte acompanhou o major até à porta, respirou ainda uma vez, apalpou-se, foi até à janela. Ignora-se o
que pensou durante os primeiros minutos; mas, a cabo de um quarto de hora, eis o que ele dizia consigo:
— Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original,
substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom negócio. Um bom negócio e uma grave lição:
provaste-me ainda uma vez que o melhor drama está no espectador e não no palco.

Posts Relacionados