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A sereníssima República (Conto de Papéis Avulsos), de Machado de Assis

by Lucas Gomes

Publicado primeiramente na “Gazeta de Notícias” em 20 de agosto de 1882, depois
incluído no livro Papéis avulsos, “A Serenissima República” é mais um daqueles
contos de Machado de Assis em que parece ter, à primeira vista (e só à primeira
vista…), um sentido restrito — no caso, “as nossas alternativas eleitorais”
— que é logo captado e entendido por qualquer leitor, não obstante a forma alegórica
como elas são mostradas.

A história começa com um narrador que pede atenção para uma descoberta da ciência
brasileira superior a uma outra, promovida por um sábio inglês, que teria sido
publicada em O Globo – jornal republicano e de orientação cientificista.
A propósito, John Gledson observa que é bastante provável que o artigo mencionado
no conto não tenha existido e conclui que a citação desse artigo é uma sátira
contra O Globo. E é considerando o contexto dessa sátira ao cientificismo
do jornal O Globo que Machado questiona o materialismo científico em voga na época
quando faz o cônego Vargas embasar a sua descoberta numa citação de Darwin e Büchner,
reputando-os “sábios de primeira ordem”, mas sem absolver “as teorias gratuitas
e errôneas do materialismo”. Frise-se: Machado questiona, mas, como era seu costume,
não se posiciona, deixa a questão em aberto. Em um primeiro nível de significação,
a narrativa do cônego Vargas pode ser lida como uma tentativa de valorizar a produção
científica nacional e como um questionamento do materialismo científico em voga
no final do século XIX.

Como não poderia deixar de ser em Machado, o conto é uma crítica: crítica ao processo eleitoral, feita
como um discurso de um cônego, que afirma ter achado uma espécie de aranha que fala, e ter criado uma
sociedade delas, chamada “Sereníssima República”. Ele escolhe o sistema de eleição baseado no da
República de Veneza, onde se retirava de um saco bolas com o nome dos eleitos. Este sistema vai sendo
fraudado pelas aranhas, corrigindo-se, adaptando-se e variando-se diversas vezes e de diversos modos,
eternamente corrupto.

Na vigorosa sátira política ao sistema eleitoral brasileiro formulada por Machado, o cônego Vargas tenta,
com sucessivos experimentos, dar organização social às aranhas. O conto termina sem que essa pretensão
tenha sucesso, uma vez que as facções políticas e individualidades em confronto sempre darão um jeito de
burlar os sistemas eleitorais instituídos. Roberto Da Matta, aliás, é um dos admiradores entusiastas
desse conto e certa feita sentenciou: “como diria um dos meus escritores brasileiros favoritos, o
velho Machado de Assis, ‘a sereníssima República do Brasil’ continua repousando em berço esplêndido,
tocada pelas mesmas sestas que transformavam o Brasil nas leis e não nas suas práticas sociais mais
arraigadas”
. Até aí, tudo bem, dentro de certas normalidade e formalidade narrativas. Mas trata-se de
Machado, afinal, e recomenda-se ao leitor cuidadosa leitura, prestar atenção ao articulado processo
político que está sendo construído, principalmente, quando o narrador lança mão de recursos que podem
provocar “audaciosas interpretações…”.

E como se trata de Machado, nada é somente o que parece ser, à primeira vista e à primeira leitura: seu
contumaz narrador — em primeira-pessoa —, a par da crítica política, faz uma inquirição a respeito da
alma exterior do homem. Por meio de uma alegoria eleitoral, sob a forma de uma conferência de um
cientista, Machado discursa a respeito do homem e da sociedade que ele constrói — algo como sendo o
homem de múltiplas faces, cabe buscar a perfeição, tentar driblar a própria natureza; para tanto, não
importam os outros ,e sim seu interesse pessoal
, e aqui manifesta-se, mais uma vez, um tema caro a
Machado: a discussão sobre a Ciência e a Filosofia, já feita por exemplo em O alienista e em
contos como “A causa secreta” — ambos críticos com relação às correntes filosóficas em voga na segunda
metade do século XIX (o determinismo, o cientificismo, etc.) e como a ciência (aliada ao poder político)
pode levar o homem a se perder na variedade inexplicável dos indivíduos.

Mas como sempre em Machado, também em “A Sereníssima República” pode-se perceber a intenção do autor em
analisar as cruéis relações de dominação entre seres iguais, todos subjugados por um sistema político e
social marcado pelo autoritarismo, mas que não hesitam em reproduzir e legitimar a opressão de que são
vítimas.

E ad eternum, o que mais interessa a Machado não é a denúncia explícita e panfletária de certos
males da sociedade brasileira, como o sistema político e eleitoral, as diferenças sociais, a escravidão
ou a violência, mas retratar (e levar o leitor à reflexão) o modo pelo qual esses males se agregam ao
cotidiano das relações humanas.

Como todos sabemos, o que de mais significativo se extrai da leitura dos contos
de Machado de Assis é a impossibilidade de respostas prontas e acabadas diante
do mistério essencial que habita o ser humano e que responde pela motivação de
muitos de seus atos.

Leia o conto na íntegra:

A SERENÍSSIMA REPÚBLICA

(Conferência do cônego Vargas)

Meus senhores,
Antes de comunicar-vos uma descoberta, que reputo de algum lustre para o nosso país, deixai que vos
agradeça a prontidão com que acudisses ao meu chamado. Sei que um interesse superior vos trouxe aqui; mas
não ignoro também, — e fora ingratidão ignorá-lo, — que um pouco de simpatia pessoal se mistura à vossa
legítima curiosidade científica. Oxalá possa eu corresponder a ambas.

Minha descoberta não é recente; data do fim do ano de 1876. Não a divulguei então, — e, a não ser o
Globo, interessante diário desta capital, não a divulgaria ainda agora, — por uma razão que achará fácil entrada
no vosso espírito. Esta obra de que venho falar-vos, carece de retoques últimos, de verificações e experiências
complementares. Mas o Globo noticiou que um sábio inglês descobriu a linguagem fônica dos insetos, e cita o
estudo feito com as moscas. Escrevi logo para a Europa e aguardo as respostas com ansiedade. Sendo certo,
porém, que pela navegação aérea, invento do padre Bartolomeu, é glorificado o nome estrangeiro, enquanto o
do nosso patrício mal se pode dizer lembrado dos seus naturais, determinei evitar a sorte do insigne Voador,
vindo a esta tribuna, proclamar alto e bom som, à face do universo, que muito antes daquele sábio, e fora das
ilhas britânicas, um modesto naturalista descobriu coisa idêntica, e fez com ela obra superior.

Senhores, vou assombrar-vos, como teria assombrado a Aristóteles, se lhe perguntasse: Credes que se
possa dar um regime social às aranhas? Aristóteles responderia negativamente, com vós todos, porque é
impossível crer que jamais se chegasse a organizar socialmente esse articulado arisco, solitário, apenas
disposto ao trabalho, e dificilmente ao amor. Pois bem, esse impossível fi-lo eu.

Ouço um riso, no meio do sussurro de curiosidade. Senhores, cumpre vencer os preconceitos. A
aranha parece-vos inferior, justamente porque não a conheceis. Amais o cão, prezais o gato e a galinha, e não
advertis que a aranha não pula nem ladra como o cão, não mia como o gato, não cacareja como a galinha, não
zune nem morde como o mosquito, não nos leva o sangue e o sono como a pulga. Todos esses bichos são o
modelo acabado da vadiação e do parasitismo. A mesma formiga, tão gabada por certas qualidades boas, dá
no nosso açúcar e nas nossas plantações, e funda a sua propriedade roubando a alheia. A aranha, senhores,
não nos aflige nem defrauda; apanha as moscas, nossas inimigas, fia, tece, trabalha e morre. Que melhor
exemplo de paciência, de ordem, de previsão, de respeito e de humanidade? Quanto aos seus talentos, não há
duas opiniões. Desde Plínio até Darwin, os naturalistas do mundo inteiro formam um só coro de admiração
em torno desse bichinho, cuja maravilhosa teia a vassoura inconsciente do vosso criado destrói em menos de
um minuto. Eu repetiria agora esses juízos, se me sobrasse tempo; a matéria, porém, excede o prazo, sou
constrangido a abreviá-la. Tenho-os aqui, não todos, mas quase todos; tenho, entre eles, esta excelente
monografia de Büchner, que com tanta subtileza estudou a vida psíquica dos animais. Citando Darwin e
Büchner, é claro que me restrinjo à homenagem cabida a dois sábios de primeira ordem, sem de nenhum
modo absolver (e as minhas vestes o proclamam) as teorias gratuitas e errôneas do materialismo.

Sim, senhores, descobri uma espécie araneida que dispõe do uso da fala; coligi alguns, depois muitos
dos novos articulados, e organizei-os socialmente. O primeiro exemplar dessa aranha maravilhosa
apareceu-me no dia 15 de dezembro de 1876. Era tão vasta, tão colorida, dorso rubro, com listras azuis,
transversais, tão rápida nos movimentos, e às vezes tão alegre, que de todo me cativou a atenção. No dia
seguinte vieram mais três, e as quatro tomaram posse de um recanto de minha chácara. Estudei-as
longamente; achei-as admiráveis. Nada, porém, se pode comparar ao pasmo que me causou a descoberta do
idioma araneida, uma língua, senhores, nada menos que uma língua rica e variada, com a sua estrutura
sintáxica, os seus verbos, conjugações, declinações, casos latinos e formas onomatopaicas, uma língua que
estou gramaticando para uso das academias, como o fiz sumariamente para meu próprio uso. E fi-lo, notai
bem, vencendo dificuldades aspérrimas com uma paciência extraordinária. Vinte vezes desanimei; mas o amor
da ciência dava-me forças para arremeter a um trabalho que, hoje declaro, não chegaria a ser feito duas
vezes na vida do mesmo homem.

Guardo para outro recinto a descrição técnica do meu arácnide, e a análise da língua. O objeto desta
conferência é, como disse, ressalvar os direitos da ciência brasileira, por meio de um protesto em tempo; e,
isto feito, dizer-vos a parte em que reputo a minha obra superior à do sábio de Inglaterra. Devo
demonstrá-lo, e para este ponto chamo a vossa atenção.

Dentro de um mês tinha comigo vinte aranhas; no mês seguinte cinqüenta e cinco; em março de 1877
contava quatrocentas e noventa. Duas forças serviram principalmente à empresa de as congregar: — o
emprego da língua delas, desde que pude discerni-la um pouco, e o sentimento de terror que lhes infundi. A
minha estatura, as vestes talares, o uso do mesmo idioma, fizeram-lhes crer que era eu o deus das aranhas, e
desde então adoraram-me. E vede o benefício desta ilusão. Como as acompanhasse com muita atenção e
miudeza, lançando em um livro as observações que fazia, cuidaram que o livro era o registro dos seus
pecados, e fortaleceram-se ainda mais na prática das virtudes. A flauta também foi um grande auxiliar. Como
sabeis, ou deveis saber, elas são doidas por música.

Não bastava associá-las; era preciso, dar-lhes um governo idôneo. Hesitei na escolha; muitos dos
atuais pareciam-me bons, alguns excelentes, mas todos tinham contra si o existirem. Explico-me. Uma forma
vigente de governo ficava exposta a comparações que poderiam amesquinhá-la. Era-me preciso, ou achar
uma forma nova, ou restaurar alguma outra abandonada. Naturalmente adotei o segundo alvitre, e nada me
pareceu mais acertado do que uma república, à maneira de Veneza, o mesmo molde, e até o mesmo epíteto.
Obsoleto, sem nenhuma analogia, em suas feições gerais, com qualquer outro governo vivo, cabia-lhe ainda
a vantagem de um mecanismo complicado, — o que era meter à prova as aptidões políticas da jovem
sociedade.

Outro motivo determinou a minha escolha. Entre os diferentes modos eleitorais da antiga Veneza, figurava
o do saco e bolas, iniciação dos filhos da nobreza no serviço do Estado. Metiam-se as bolas com os nomes
dos candidatos no saco, e extraía-se anualmente um certo número, ficando os eleitos desde logo aptos
para as carreiras públicas. Este sistema fará rir aos doutores do sufrágio; a mim não. Ele exclui os
desvarios da paixão, os desazos da inépcia, o congresso da corrupção e da cobiça. Mas não foi só por isso
que o aceitei; tratando-se de um povo tão exímio na fiação de suas teias, o uso do saco eleitoral era de
fácil adaptação, quase uma planta indígena.

A proposta foi aceita. Sereníssima República pareceu-lhes um título magnífico, roçagante, expansivo,
próprio a engrandecer a obra popular.

Não direi, senhores, que a obra chegou à perfeição, nem que lá chegue tão cedo. Os meus pupilos não são
os solários de Campanela ou os utopistas de Morus; formam um povo recente, que não pode trepar de um
salto ao cume das nações seculares. Nem o tempo é operário que ceda a outro a lima ou o alvião; ele fará
mais e melhor do que as teorias do papel, válidas no papel e mancas na prática. O que posso afirmar-vos é
que, não obstante as incertezas da idade, eles caminham, dispondo de algumas virtudes, que presumo
essenciais à duração de um Estado. Uma delas, como já disse, é a perseverança, uma longa paciência de
Penélope, segundo vou mostrar-vos.

Com efeito, desde que compreenderam que no ato eleitoral estava a base da vida pública, trataram de
o exercer com a maior atenção. O fabrico do saco foi uma obra nacional. Era um saco de cinco polegadas de
altura e três de largura, tecido com os melhores fios, obra sólida e espessa. Para compô-lo foram
aclamadas dez damas principais, que receberam o título de mães da república, além de outros privilégios e
foros. Uma obra-prima, podeis crê-lo. O processo eleitoral é simples. As bolas recebem os nomes dos
candidatos, que provarem certas condições, e são escritas por um oficial público, denominado “das
inscrições”. No dia da eleição, as bolas são metidas no saco e tiradas pelo oficial das extrações, até
perfazer o número dos elegendos. Isto que era um simples processo inicial na antiga Veneza, serve aqui
ao provimento de todos os cargos.

A eleição fez-se a princípio com muita regularidade; mas, logo depois, um dos legisladores declarou
que ela fora viciada, por terem entrado no saco duas bolas com o nome do mesmo candidato. A assembléia
verificou a exatidão da denúncia, e decretou que o saco, até ali de três polegadas de largura, tivesse agora
duas; limitando-se a capacidade do saco, restringia-se o espaço à fraude, era o mesmo que suprimi-la.

Aconteceu, porém, que na eleição seguinte, um candidato deixou de ser inscrito na competente bola, não se
sabe se por descuido ou intenção do oficial público. Este declarou que não se lembrava de ter visto o ilustre
candidato, mas acrescentou nobremente que não era impossível que ele lhe tivesse dado o nome; neste caso
não houve exclusão, mas distração. A assembléia, diante de um fenômeno psicológico inelutável, como é a
distração, não pôde castigar o oficial; mas, considerando que a estreiteza do saco podia dar lugar a exclusões
odiosas, revogou a lei anterior e restaurou as três polegadas.

Nesse ínterim, senhores, faleceu o primeiro magistrado, e três cidadãos apresentaram-se candidatos ao
posto, mas só dois importantes, Hazeroth e Magog, os próprios chefes do partido retilíneo e do partido
curvilíneo. Devo explicar-vos estas denominações. Como eles são principalmente geômetras, é a geometria
que os divide em política. Uns entendem que a aranha deve fazer as teias com fios retos, é o partido
retilíneo; — outros pensam, ao contrário, que as teias devem ser trabalhadas com fios curvos, — é o
partido curvilíneo. Há ainda um terceiro partido, misto e central, com este postulado: — as teias devem
ser urdidas de fios retos e fios curvos; é o partido reto-curvilíneo; e finalmente, uma quarta divisão
política, o partido anti-retocurvilíneo, que fez tábua rasa de todos os princípios litigantes, e propõe
o uso de umas teias urdidas de ar, obra transparente e leve, em que não há linhas de espécie alguma. Como
a geometria apenas poderia dividi-los, sem chegar a apaixoná-los, adotaram uma simbólica. Para uns, a
linha reta exprime os bons sentimentos, a justiça, a probidade, a inteireza, a constância etc., ao passo
que os sentimentos ruins ou inferiores, como a bajulação, a fraude, a deslealdade, a perfídia, são
perfeitamente curvos. Os adversários respondem que não, que a linha curva é a da virtude e do saber,
porque é a expressão da modéstia e da humildade; ao contrário, a ignorância, a presunção, a toleima, a
parlapatice, são retas, duramente retas. O terceiro partido, menos anguloso, menos exclusivista,
desbastou a exageração de uns e outros, combinou os contrastes, e proclamou a simultaneidade das linhas
como a exata cópia do mundo físico e moral. O quarto limita-se a negar tudo.

Nem Hazeroth nem Magog foram eleitos. As suas bolas saíram do saco, é verdade, mas foram inutilizadas, a
do primeiro por faltar a primeira letra do nome, a do segundo por lhe faltar a última. O nome restante e
triunfante era o de um argentário ambicioso, político obscuro, que subiu logo à poltrona ducal, com
espanto geral da república. Mas os vencidos não se contentaram de dormir sobre os louros do vencedor;
requereram uma devassa. A devassa mostrou que o oficial das inscrições intencionalmente viciara a
ortografia de seus nomes. O oficial confessou o defeito e a intenção; mas explicou-os dizendo que se
tratava de uma simples elipse; delito, se o era, puramente literário. Não sendo possível perseguir
ninguém por defeitos de ortografia ou figuras de retórica, pareceu acertado rever a lei. Nesse mesmo dia
ficou decretado que o saco seria feito de um tecido de malhas, através das quais as bolas pudessem ser
lidas pelo público, e, ipso facto, pelos mesmos candidatos, que assim teriam tempo de corrigir as
inscrições.

Infelizmente, senhores, o comentário da lei é a eterna malícia. A mesma porta aberta à lealdade serviu à
astúcia de um certo Nabiga, que se conchavou com o oficial das extrações, para haver um lugar na
assembléia. A vaga era uma, os candidatos três; o oficial extraiu as bolas com os olhos no cúmplice, que
só deixou de abanar negativamente a cabeça, quando a bola pegada foi a sua. Não era preciso mais para
condenar a idéia das malhas. A assembléia, com exemplar paciência, restaurou o tecido espesso do regime
anterior; mas, para evitar outras elipses, decretou a validação das bolas cuja inscrição estivesse
incorreta, uma vez que cinco pessoas jurassem ser o nome inscrito o próprio nome do candidato.

Este novo estatuto deu lugar a um caso novo e imprevisto, como ides ver. Tratou-se de eleger um
coletor de espórtulas, funcionário encarregado de cobrar as rendas públicas, sob a forma de espórtulas
voluntárias. Eram candidatos, entre outros, um certo Caneca e um certo Nebraska. A bola extraída foi a de
Nebraska. Estava errada, é certo, por lhe faltar a última letra; mas, cinco testemunhas juraram, nos
termos da lei, que o eleito era o próprio e único Nebraska da república. Tudo parecia findo, quando o
candidato Caneca requereu provar que a bola extraída não trazia o nome de Nebraska, mas o dele. O juiz de
paz deferiu ao peticionário. Veio então um grande filólogo, — talvez o primeiro da república, além de bom
metafísico, e não vulgar matemático, — o qual provou a coisa nestes termos:

— Em primeiro lugar, disse ele, deveis notar que não é fortuita a ausência da última letra do nome
Nebraska. Por que motivo foi ele inscrito incompletamente? Não se pode dizer que por fadiga ou amor da
brevidade, pois só falta a última letra, um simples a. Carência de espaço? Também não; vede: há ainda
espaço para duas ou três sílabas. Logo, a falta é intencional, e a intenção não pode ser outra, senão
chamar a atenção do leitor para a letra k, última escrita, desamparada, solteira, sem sentido.
Ora, por um efeito mental, que nenhuma lei destruiu, a letra reproduz-se no cérebro de dois modos, a
forma gráfica e a forma sônica: k e ca. O defeito, pois, no nome escrito, chamando os
olhos para a letra final, incrusta desde logo no cérebro, esta primeira sílaba: Ca. Isto posto, o
movimento natural do espírito é ler o nome todo; volta-se ao princípio, à inicial ne, do nome
Nebrask. — Cané. — Resta a sílaba do meio, bras, cuja redução a esta outra sílaba
ca, última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. E, todavia, não a demonstrarei,
visto faltar-vos o preparo necessário ao entendimento da significação espiritual ou filosófica da sílaba,
suas origens e efeitos, fases, modificações, conseqüências lógicas e sintáxicas, dedutivas ou indutivas,
simbólicas e outras. Mas, suposta a demonstração, aí fica a última prova, evidente, clara, da minha
afirmação primeira pela anexação da sílaba ca às duas Cane, dando este nome Caneca.

A lei emendou-se, senhores, ficando abolida a faculdade da prova testemunhal e interpretativa dos textos,
e introduzindo-se uma inovação, o corte simultâneo de meia polegada na altura e outra meia na largura do
saco. Esta emenda não evitou um pequeno abuso na eleição dos alcaides, e o saco foi restituído às
dimensões primitivas, dando-se-lhe, todavia, a forma triangular. Compreendeis que esta forma trazia
consigo, uma conseqüência: ficavam muitas bolas no fundo. Daí a mudança para a forma cilíndrica; mais
tarde deu-se-lhe o aspecto de uma ampulheta, cujo inconveniente se reconheceu ser igual ao triângulo, e
então adotou-se a forma de um crescente etc. Muitos abusos, descuidos e lacunas tendem a desaparecer, e o
restante terá igual destino, não inteiramente, decerto, pois a perfeição não é deste mundo, mas na medida
e nos termos do conselho de um dos mais circunspectos cidadãos da minha república, Erasmus, cujo último
discurso sinto não poder dar-vos integralmente. Encarregado de notificar a última resolução legislativa
às dez damas incumbidas de urdir o saco eleitoral, Erasmus contou-lhes a fábula de Penélope, que fazia e
desfazia a famosa teia, à espera do esposo Ulisses.

— Vós sois a Penélope da nossa república, disse ele ao terminar; tendes a mesma castidade, paciência e
talentos. Refazei o saco, amigas minhas, refazei o saco, até que Ulisses, cansado de dar às pernas, venha
tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ulisses é a Sapiência.

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