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A caçada (Conto da obra Antes do baile verde), de Lygia Fagundes Telles

by Lucas Gomes

Este conto está inserido na obra Antes
do baile verde
, de Lygia Fagundes Telles.

Em A Caçada, de 1965, Lygia Fagundes Telles emprega um narrador
extradiegético, com relação ao nível narrativo, e heterodiegético, quanto
à sua relação com a história, ou seja, a voz que conta está ausente da
história.

O cenário é uma loja de antigüidades e é apresentado ao leitor por meio
do discurso narrativizado. Para compor o espaço físico onde a ação irá
se desenvolver, o narrador emprega imagens de percepção sensória. Assim,
o leitor sente o cheiro da loja: “tinha o cheiro de uma arca de sacristia
com seus panos embolorados e livros comidos de traça” (p. 41); tem a
sensação do tato, por intermédio da personagem, que, “com a ponta dos
dedos” (p. 41), toca em uma pilha de livros; vê detalhes do lugar,
“uma mariposa levantou vôo e foi chocar-se contra uma imagem de mãos
decepadas” (p. 41). As imagens literárias produzidas com o uso de
detalhes transferem maior verossimilhança à narrativa.

Existem duas personagens, uma velha, provavelmente a dona da loja, ou
então uma funcionária, há muito tempo no estabelecimento, e um homem,
que vai ao estabelecimento atraído por uma tapeçaria antiga, com a
representação de uma caçada. As personagens não têm nome e o narrador
não faz descrições sobre seus aspectos físicos para caracterizá-las.

O tempo da história abrange um período de dois dias. No primeiro dia,
o homem vai à loja de antigüidades. O diálogo entre as personagens é
apresentado pelo narrador.

Observe-se algumas falas desse diálogo: a mulher diz para o homem
“– Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso…” (p. 41);
“– Parece que hoje está mais nítida…” (p. 41); “– Notei uma diferença.”
(p. 41). Por meio dessas falas das personagens, o leitor pode perceber
que os dois já se conhecem, não é a primeira vez que o homem vai àquela
loja, o homem já havia estado ali anteriormente e manifestado interesse
pela tapeçaria.

O emprego do discurso modalizante nas frases do homem, “– Parece que
hoje está mais nítida…” (p. 41), “– Parece que hoje tudo está mais
próximo” (p. 42), em contraposição com as opiniões emitidas pela
mulher, permite que o leitor conclua que, na verdade, quem está
diferente é a personagem masculina, e não a tapeçaria.

É a maneira como ele enxerga a tapeçaria que sofreu alteração. Também
é estabelecida uma oposição entre a atitude do homem e da mulher frente
à tapeçaria. Assim, enquanto para ele aquele trabalho artesanal parece
ter importância crucial, o procedimento da mulher é de desprezo: tem
“um muxoxo” (p. 42), ela encolhe os ombros, limpa “as unhas com o
grampo” (p. 42), disfarça “um bocejo” (p. 43).

Através do emprego de uma analepse e utilizando-se da voz da personagem
feminina, o narrador explica, por meio do discurso direto, a origem e a
antigüidade da tapeçaria:

– Foi um desconhecido que trouxe, precisava muito de dinheiro. Eu
disse que o pano estava por demais estragado, que era difícil encontrar um
comprador, mas ele insistiu tanto… Preguei aí na parede e aí ficou. Mas
já faz anos isso. E o tal moço nunca mais me apareceu.
(Telles, 1982,
p. 42)

A narração é ulterior aos acontecimentos, os tempos verbais empregados pelo
narrador são do pretérito. Entretanto, as falas das personagens estão no
presente, proporcionando uma sensação de simultaneidade ao leitor, uma
“presentificação” da narração, ou seja, o leitor fica com a impressão da
narração ser contemporânea da ação, as cenas estariam se desenvolvendo ante
o olhar do leitor/observador.

O primeiro momento de tensão do conto é criado pelo narrador com a frase “O
homem estava tão pálido e perplexo quanto a imagem.” (p. 41). Por que essa
reação da personagem ao observar a tapeçaria? Posteriormente, o motivo da
inquietação do homem começa a ser revelado: (…) “Sua mão tremia. Em que
tempo, meu Deus! em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?…”
(p. 42). A personagem está perturbada por já haver presenciado a cena
retratada na tapeçaria. Nesse último trecho citado, pode-se observar, ainda,
a alteração do tipo de focalização. Até o momento em que o narrador afirma
“Sua mão tremia.” (p. 42), o texto foi desenvolvido por meio da focalização
externa.

Depois, há a passagem para a focalização interna e o leitor passa a entrar
em contato com os pensamentos da personagem masculina, por meio do discurso
indireto livre. Conhecendo as indagações do homem, passa a observar mais de
perto seu drama e a ter maior proximidade psicológica com a personagem.

A narrativa estruturada em diálogos, geralmente, fornece um máximo de
informação, com uma presença mínima do informador. Não é o que acontece,
entretanto, neste conto. As cenas fornecem pouca informação ao leitor, o que
causa, como conseqüência, um despertar da curiosidade do leitor. Quem é esse
homem? Qual o mistério que a tapeçaria esconde? Por que proporciona tamanho
fascínio, medo e desconforto naquele que a observa?

A descrição da tapeçaria é realizada por um trecho de um parágrafo, em
discurso narrativizado. O parágrafo seguinte começa da seguinte maneira:
“O homem respirava com esforço. Vagou o olhar pela tapeçaria que tinha a cor
esverdeada de um céu de tempestade.” (p. 42). E a descrição da tapeçaria
continua, só que, agora, fica para o leitor a impressão que está vendo a
tapeçaria através dos olhos da personagem masculina.

O homem consegue enxergar na tapeçaria detalhes que não havia percebido
antes, e que, aparentemente, as outras pessoas também não conseguem
visualizar. Desse modo, a mulher não vê “diferença nenhuma” (p. 42) na
tapeçaria, não vê a seta que o caçador disparou, para ela, é apenas
“um buraco de traça” (p. 42). E, da forma como o narrador apresenta a
cena, o leitor não tem como saber qual das personagens está enxergando a
verdadeira imagem.

A narrativa prossegue, com o narrador alternando a focalização externa
com a interna, apresentada por meio de discurso indireto livre. A
personagem conclui que já conhecia a cena representada na tapeçaria:
“Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu – conhecia tudo tão bem,
mas tão bem!” (p. 43), mas não sabe de que época.

Uma personagem de tapeçaria. Mas qual? (…) Compadeceu-se daquele
ser em pânico, à espera de uma oportunidade para prosseguir fugindo. Tão
próxima a morte! O mais leve movimento que fizesse, e a seta… A velha não a
distinguira, ninguém poderia percebê-la, reduzida como estava a um pontinho
carcomido, mais pálido do que um grão de pó em suspensão no arco.

(Telles, 1982, p. 43)

Pelo trecho selecionado, pode-se observar que o homem conclui que fez parte
daquela cena e, por isso, apenas ele consegue perceber, por exemplo, a
presença da seta.

Essa parte do texto tem a função de um índice de antecipação de desfecho,
uma prolepse, como se percebe após a leitura integral do conto. Ele não tem
mais dúvidas, “sabia ter feito parte da caçada (p. 43). A personagem começa,
então, a formular hipóteses sobre sua participação na tapeçaria. “E se tivesse
sido o pintor que fez o quadro?” (p. 43) Note-se que esta conjetura é feita
em discurso indireto livre, como se o narrador mostrasse ao leitor os pensamentos
do homem. Mais adiante, surgem frases em discurso direto e com a marcação
gráfica das aspas, como se, então, o narrador procurasse demonstrar que a
personagem está falando (e não pensando). É o que acontece, por exemplo, no
trecho a seguir:

Pintara o quadro original e por isso podia reproduzir, de olhos
fechados, toda a cena nas suas minúcias: o contorno das árvores, o céu sombrio,
o caçador de barba esgrouvinhada, só músculos e nervos apontando para a
touceira… “Mas se detesto caçadas! Por que tenho que estar aí dentro?”

(Telles, 1982, p. 43)

O homem continua tentando encontrar a explicação para os sentimentos que a
visão da tapeçaria desencadeiam nele. Afirma para si mesmo, e, conseqüentemente,
para o leitor, que “a caçada não passava de uma ficção” (p. 43). Entretanto, o
trecho a seguir contradiz essa afirmativa:

Atirou a cabeça para trás como se o puxassem pelos cabelos, não, não
ficara do lado de fora, mas lá dentro, encravado no cenário! E por que tudo
parecia mais nítido do que na véspera, por que as cores estavam mais fortes
apesar da penumbra? Por que o fascínio que se desprendia da paisagem vinha
agora assim vigoroso, rejuvenescido?…
(Telles, 1982, p. 43-44)

Inicialmente, observa-se a comparação do gesto da personagem de jogar a
cabeça para trás com um puxão de cabelos. Isso pode provocar a impressão de
que a situação provoca dor física no homem, ou ainda, que a visão da
tapeçaria e as conseqüências que daí virão são como um despertar para a
realidade, ainda que doloroso. A seguir, duas antíteses: “fora”/“dentro” e
“tudo mais nítido”, “cores mais fortes”/“apesar da penumbra”. As antíteses
contribuem para conferir um tom poético à narrativa, além de acentuar a
ambigüidade da situação. Depois, observa-se o emprego dos advérbios de
tempo e de modo, usados para intensificar a sensação da personagem.

O homem sai da loja, “Saiu de cabeça baixa, as mãos cerradas no fundo dos
bolsos.” (p. 44), sua postura física demonstra uma sensação de derrota,
por não conseguir obter as respostas às indagações que a visão da tapeçaria
provocou. Apesar de sentir “o corpo moído, as pálpebras pesadas” (p. 44),
“sabia que não poderia dormir” (p. 44), ele tem certeza que a insônia vai
incomodá-lo. O narrador prossegue alternando as focalizações externa e
interna, para caracterizar aspectos sensoriais relacionados à personagem:
“Levantou a gola do paletó. Era real esse frio? Ou a lembrança do frio
da tapeçaria?” (p. 44), o que confere verossimilhança ao texto.

Logo a seguir, outra parte na qual o narrador emprega o discurso direto e
a marcação com aspas: “ ‘Que loucura!… E não estou louco’ concluiu num
sorriso desamparado. Seria uma solução fácil. ‘Mas não estou louco.’ ”
(p. 44). Note-se que o narrador heterodiegético é portador de onisciência,
que ele manifesta na frase assinalada, pois sabe que a loucura da personagem
seria uma solução mais fácil do que o que ele terá que enfrentar. Essa
frase também desempenha a função de prolepse.

O homem entra em um cinema, vaga pelas ruas e volta à loja; parece
desorientado e demonstra uma atração descontrolada pela tapeçaria. Vai
para casa. Em um trecho de analepse, aparentemente um delírio da personagem,
o homem se lembra da mulher da loja de antigüidades, supõe ser o caçador,
sente a presença de sangue em seu queixo. A seguir, o leitor percebe que a
personagem teve um pesadelo, com a tapeçaria, pois o narrador inicia o
parágrafo seguinte com o verbo acordar: “Acordou com o próprio grito (…)”
(p. 44).

Novamente há o uso de uma antítese – “Ah, aquele calor e aquele frio!” (p. 44),
que serve para realçar o momento de confusão por que passa a personagem.
Supõe ser o artesão que confeccionou a tapeçaria. E, prossegue, em meio a
sentimentos contraditórios: “Fechou os punhos. Haveria de destruí-la, não era
verdade que além daquele trapo detestável havia alguma coisa mais, tudo não
passava de um retângulo de pano sustentado pela poeira. Bastava soprá-la,
soprá-la!” (p. 44). O fascínio que o homem sentia pela tapeçaria transforma-se
em raiva, demonstrada pela reação física de fechar os punhos e pelo desejo
de destruir a peça. Passa à negação do que sente, tudo era fruto da
imaginação, bastaria um sopro para destruir o efeito causado nele pela
tapeçaria.

No dia seguinte, o segundo dia da história, o homem vai, novamente, à loja
de antigüidades, mais cedo do que de costume, como realçado pelo advérbio
de tempo e pelo verbo empregados pelo narrador na fala da personagem
feminina: “– Hoje o senhor madrugou.” (p. 44). Essa mesma personagem diz
para o homem “Pode entrar, pode entrar, o senhor conhece o caminho…”
(p. 44), referindo-se ao local onde está pendurada a tapeçaria, na loja.
O homem murmura “Conheço o caminho” (p. 44), referindo-se ao caminho do
bosque, representado na tapeçaria, e, assim, o narrador compõe um paralelo
entre as falas das duas personagens, provocando uma sensação de ambigüidade,
compatível com o estado de espírito da personagem masculina.

Chega-se, então, ao clímax da narrativa. Mais uma vez, são empregadas
imagens sensoriais: “aquele cheiro de folhagem e terra” (p. 44), “a loja
foi ficando embaçada” (p. 45), “seus dedos afundaram por entre galhos e
resvalaram pelo tronco de uma árvore” (p. 45). Nesse trecho se alternam
as focalizações externa e interna, caracterizando a mistura do real e do
fantástico, e retratando o possível delírio pelo qual passa o homem. “Imensa,
real só a tapeçaria a se alastrar sorrateiramente pelo chão” (p. 45), passa
a impressão de que apenas a tapeçaria é real, tudo o mais são elementos do
delírio da personagem. Observe-se o segmento em discurso indireto livre:
“Era o caçador? Ou a caça? Não importava, não importava, sabia apenas que
tinha que prosseguir correndo sem parar por entre as árvores, caçando ou
sendo caçado. Ou sendo caçado?…” (p. 45). O narrador emprega os verbos
saber e ter para caracterizar o estado de espírito da personagem, a certeza
sobre qual a atitude a adotar, nesse momento, como quem realmente já
vivenciou a cena em outra época. Em contraste com essa certeza, surge a
dúvida sobre o seu papel na tapeçaria, teria sido caça ou caçador? –
formando um momento de ambigüidade no discurso, coerente com o momento
da história.

O desfecho do conto é feito com alternâncias de estados de discurso: tem
início com o discurso relatado (reportado) e é seguido por discurso
narrativizado e discurso indireto livre, terminando com o emprego,
novamente, do discurso relatado. Isso proporciona agilidade ao texto,
uma narração frenética e confusa, apropriada à situação vivenciada pela
personagem, o momento da descoberta, da revelação do segredo da tapeçaria.
A revelação é assinalada pela frase: “E lembrou-se.” (p. 45), instante em
que a personagem vivencia a dor provocada pela seta, na cena da tapeçaria,
e morre, na loja de antigüidades.

Fonte: Biblioteca Digital da UNESP

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