Home EstudosLivros A quinta história (Conto das obras Felicidade clandestina e A legião estrangeira), de Clarice Lispector

A quinta história (Conto das obras Felicidade clandestina e A legião estrangeira), de Clarice Lispector

by Lucas Gomes

Este conto descreve com muito humor e certa dose de suspense, experiências sobre
o extermínio de baratas. Relata uma história, a de como matar baratas, em cinco
versões, o que leva ao questionamento sobre as muitas formas de narrar um fato,
o que incluir, o que excluir, e como um mesmo fato pode originar histórias muito
diferentes. Nesse conto, encontra-se a reflexão sobre o fazer literário que acompanha
os contos de Clarice Lispector.

A narradora conta que se queixou a uma vizinha de que subiam no seu apartamento
as baratas que vinham do térreo. Então a vizinha lhe deu a seguinte receita para
matar as baratas: misturar em partes iguais açúcar, farinha e gesso. “A farinha
e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de-dentro delas”. Assim foi feito
e as baratas morreram.

Como vimos, Clarice Lispector desdobra quatro ou cinco vezes uma historieta
banal. Trata-se, em certo patamar, exatamente do mesmo fato, deflagrado sempre
pela da mesma queixa contra baratas.

Contadas diversamente, cada versão dos mesmos fatos se transforma efetivamente
em outra história, conforme indicam os títulos que a autora sugere: “Como matar
baratas”, “O assassinato” e “Estátuas”. A quarta história não tem nome, mas
insere uma mudança real: a substituição da técnica artesanal para matar baratas
por recursos industriais, marcando a passagem do vício à virtude. Já a quinta
história, que batiza o conto, se chamaria “Leibniz e a transcedência do amor na
Polinésia”. Ao contrário da anterior, a respeito desta sabemos apenas o nome e
que começa com a mesma fatídica frase – que, por sua vez, é a última do conto:
“Queixei-me de baratas”.

O mecanismo de “A quinta história”, onde um único relato é reiniciado várias
vezes, até que, estabelecido o mecanismo, o narrador abandona o texto,
sugerindo que este continuará se repetindo por inércia, é tão explicito, que
insinua uma intenção demonstrativa.

Entre uma e outra versão do mesmo relato, encontramos uma baratinha
desesperada ante a morte não apenas irremediável, mas iminente. Ela tem as
antenas brancas, sujas do pó branco usado pela narradora para matar baratas,
uma mistura de farinha, açúcar e gesso – “A farinha e o açúcar as atrairiam,
o gesso esturricaria o de dentro delas” – e grita desnorteada – “é que olhei
demais para dentro de mim!”.

Esta imagem guarda certa literalidade: suas antenas estão brancas, exatamente
por ela ter revolvido o veneno preparado pela escritora: um amálgama de
substâncias que, ingerido, se alojada em seu estômago e a matará. Não se pode
negar que a barata, se não “olhara”, pelo menos tocou aquilo que, mediante a
ingestão, passara a constituí-la internamente. Ver e comer são a mesma coisa,
e, uma vez que a distância requerida para que o olho diferencie os objetos uns
dos outros fora absorvida, ou melhor, devorada – o indistinto abarca tudo.

Leia o conto na íntegra:

Esta história poderia chamar-se “As Estátuas”. Outro nome possível é
“O Assassinato”. E também “Como Matar Baratas”. Farei então pelo menos
três histórias, verdadeiras porque nenhuma delas mente a outra. Embora
uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.

A primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: queixei-me de baratas.
Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que
misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar
as atrairiam, o gesso esturricaria o de-dentro delas. Assim fiz.
Morreram.

A outra história é a primeira mesmo e chama-se “O Assassinato”. Começa
assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita.
E então entra o assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia
queixado de baratas, que nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo e
escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só na hora de preparar
a mistura é que elas se tornaram minhas também. Em nosso nome, então,
comecei a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais
intensa. Um vago rancor me tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas
eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão
tranqüila. Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali
estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu
aviava o elixir da longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal
secreto me guiavam. Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar
cada barata que existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a gente,
cansada, sonha. E eis que a receita estava pronta, tão branca. Como
para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que este
mais parecia fazer parte da natureza. De minha cama, no silêncio do
apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área de serviço
onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal. Acordei horas
depois em sobressalto de atraso. Já era de madrugada. Atravessei a
cozinha. No chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a
noite eu matara. Em nosso nome, amanhecia. No morro um galo cantou.

A terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. Começa
dizendo que eu me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora.
Vai indo até o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda sonolenta
atravesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área na sua perspectiva
de ladrilhos. E na escuridão da aurora,um arroxeado que distancia tudo,
distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham
rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro para fora. Algumas
de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria
jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. Sou a primeira
testemunha do alvorecer em Pompéia. Sei como foi esta última noite,
sei da orgia no escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente
como num processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos,
terão sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de
dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência,
e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras — subitamente assaltadas
pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno
que se petrificava! — essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra
é cortada da boca: eu te… Elas que, usando o nome de amor em vão, na
noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja de
branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não
ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: “é que olhei
demais para dentro de mim! é que olhei demais para dentro de…” — de
minha fria altura de gente olho a derrocada de um mundo. Amanhece. Uma
ou outra antena de barata morta freme seca à brisa. Da história anterior
canta o galo.

A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me
de baratas. Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas,
sim. Mas olho para os canos, por onde esta mesma noite renovar-se-á uma
população lenta e viva em fila indiana. Eu iria então renovar todas as
noites o açúcar letal? – como quem já não dorme sem a avidez de um rito.
E todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão? – no vício
de ir ao encontro das estátuas que minha noite suada erguia. Estremeci de
mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E estremeci também ao
aviso do gesso que seca: o vício de viver que rebentaria meu molde interno.
Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem
“adeus”, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou minha
alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude:
“Esta casa foi dedetizada”.

A quinta história chama-se “Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia”.
Começa assim: queixei-me de baratas…

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