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Álbum de família, de Nelson Rodrigues

by Lucas Gomes

Análise da obra

Em 1945 Nelson escreveu a peça Álbum de família, uma tragédia incestuosa de proporções bíblicas. Os censores do governo Dutra proibiram a peça em todo o país sob a alegação de que “preconizava o incesto” e “incitava ao crime”. A peça rotulou Nelson, definitivamente, de autor maldito.

Álbum de Família pode ser considerada uma evolução natural na temática de Nelson Rodrigues. Depois de mostrar a semi-consciência de Alaíde, em Vestido de Noiva, e o delírio de Sônia, em Valsa nº 6, nada mais natural do que um mergulho no inconsciente primitivo do homem. Em Álbum de Família, Nelson Rodrigues escolheu mostrar o cotidiano de uma família aparentemente comum, formada pelo casal, os quatro filhos e a tia solteirona. A normalidade do clã, porém, logo é desmistificado para o público. Não há uma única personagem que não perca sua máscara em algum momento da peça.

O incesto, grande tabu da humanidade, aparece aqui como uma das personagens principais. Glória, a filha, é apaixonada pelo pai; Edmundo, o filho, é apaixonado pela mãe; Guilherme, o primogênito, castrou-se para não ameaçar a virgindade da irmã, por quem ainda é apaixonado; Jonas, o pai, compensa o amor irrealizável pela filha desvirginando meninas de 12 a 16 anos na própria casa; Dona Senhorinha, a mãe, é apaixonada pelo filho Nonô, louco que vive pelado pelos arredores da fazenda. Álbum de Família é, antes de tudo, uma peça freudiana. Nela aparecem típicos personagens de Freud, como Édipo, o garoto que se casa com a mãe, e Electra, a menina que não consegue superar seu amor pelo pai.

Neste contexto, não existe a mínima possibilidade de as personagens de Álbum de Família parecerem pessoas comuns. Representando arquétipos da psicologia, elas simbolizam idéias como o impulso natural ao incesto, a paixão carnal entre irmãos, a sexualidade instintiva e a frigidez. Extremamente ousada para a época, a peça inaugurou um novo filão na dramaturgia de Nelson Rodrigues: o teatro desagradável. Aterrorizada com “a torpeza, a incapacidade literária, a falta de nobreza, o sacrilégio e a imoralidade”, a censura do governo getulista segurou o texto e não liberou nem sob protestos de vários intelectuais da época. Manuel Bandeira, já considerado um dos melhores poetas do Brasil, saiu em defesa de Nelson Rodrigues com um artigo onde garantia que o autor de Álbum de Família era, de longe, o maior poeta dramático que já apareceu na literatura brasileira.

Como vingança à hostilidade do governo, Nelson Rodrigues publicou a peça em livro, levantando ainda mais polêmica. O crítico Álvaro Lins, até então amigo pessoal do dramaturgo, aproveitou a confusão e dedicou sua coluna no jornal para falar mal da peça. “Se todos são incestuosos, onde está a tragédia”, perguntava-se, indignado. E foi mais longe: “Álbum de Família é banal na concepção, vulgar na forma, chula, primária, grosseira, além de um mar de enganos, erros, atrapalhações e insuficiências”, concluiu.

Graças à polêmica que permeou a publicação do texto, Nelson Rodrigues teve que carregar pelo resto da vida o estigma de “dramaturgo maldito”. A repercussão foi tanta que a peça, escrita em 45, só foi encenada pela primeira vez em julho de 67. Mas é exatamente pelas questões abordadas, responsáveis pela censura que manteve a peça afastada dos palcos por mais de vinte anos, que Álbum de Família merece um lugar de destaque na dramaturgia brasileira.

Forma, personagens e teorias

Em Álbum de família os personagens constituem uma família vivendo como que isolada da realidade social que não seja ela própria: eles se amam e se odeiam, dentro da própria família. Isso leva à concentração de vários tipos de incestos: pai e filha, mãe e filho, irmão e irmã. Mostram o homem brutalizado, transgredindo as regras sociais. Mostram, através de uma família desintegrada, toda uma sociedade patriarcal decadente.

A religiosidade tem presença marcante na obra, como se servisse de fachada para esconder o pecado, a hipocrisia, a imoralidade. Analisando os personagens e seus nomes, observamos que nos remetem insistentemente a um contexto religioso.

Jonas é o patriarca, está relacionado a Jesus. Jesus e Jonas são nomes iniciados com a mesma letra e têm o mesmo número de letras. Jonas e Jesus comparam-se sob a vista de Glória, a filha de Jonas. “Eu sou o pai. O pai é sagrado, o pai é o senhor”. Age como se a esposa e os filhos fossem propriedade sua. Agressivo, diabólico, estupra meninas-moças pobres, engravida-as, como se esta fosse a forma de impingir castigo à esposa, por suspeitar de infidelidade conjugal. É traído por D. Senhorinha e pelo filho Nonô. Jonas tem quatro filhos com D. Senhorinha. Edmundo é casado com Heloísa, mas não a ama e nem se relaciona com ela e nem com ninguém. Ama a mãe e se sente traído por Nonô.

Nonô vive na loucura, é louco. E o diferente causa vergonha: “Eu conheço o grito dele. Aliás, não é grito, uma coisa, não sei. Parece uivo, sei lá. Se eu fosse você, tinha vergonha!” (Tia Rute). Anda despido para tirar a sujeira, o pecado. Busca, dessa forma, o “ser ?puro”. Vive a sua loucura para fugir da realidade. Lambe o chão, como se quisesse limpar a alma e encontrar a verdadeira essência, a sua purificação. “Você não viu, outro dia, da janela, ele lambendo o chão?”. Gosta da chuva porque lava a sujeira. “Ele está feliz com a chuva. Gosta da chuva se esfrega nas poças de água…” (Guilherme). Nonô nutre ódio pelo pai e amor pela mãe, complexo de Édipo. Há uma relação incestuosa entre os dois.

Guilherme, seminarista, ama sua irmã Glória. Mutila-se por amor. Na castração, procura uma solução para não cometer o pecado de possuir a irmã. Age como protetor de Glória, guardando-a do seu próprio pai.

Glória, amante de Teresa, uma colega no internato de freiras, Glória, amante platônica do irmão, Guilherme. E amante de Jonas, o pai, consumação do complexo de Electra. A volta de Glória ao lar inicia a série de tragédias familiares.

Tia Rute é cunhada de Jonas, relacionara-se sexualmente com ele uma vez, quando se encontrava embriagado. É feia e nutre profunda inveja por sua irmã, D. Senhorinha, por sua beleza e por ter se casado com Jonas.

D. Senhorinha relaciona-se com Nossa Senhora, tanto na grafia do nome, como no enredo da peça. Entretanto, se pela beleza física as duas se aproximam, quanto a modelos, não podemos dizer que D. Senhorinha, mãe que mantém relações sexuais com o filho, seja um exemplo a ser seguido. Senhorinha como diminutivo de senhora, já expressa a inferioridade da personagem como mãe, em relação a Nossa Senhora. Ela não foi, como convém à mãe, um elo de união da família, pelo contrário, foi um elemento forte de desagregação familiar. Prima e esposa oprimida de Jonas, bonita, individualista e rebelde, de certa forma, fez seu próprio destino. Tenta libertar-se de um casamento asfixiante, dando vazão a suas fantasias e age por impulsos. Ela não é uma mulher normal para os padrões vigentes. D. Senhorinha agride, surpreende e mostra uma força interior ainda não reconhecida pela sociedade, na primeira metade do século XX, libertando-se, de certa forma, da passividade a ela imposta. Os conflitos da mulher não encontram solução favorável. Ela tem alguma coisa de vítima, mesmo parecendo vilã.

Através de uma breve análise das sete fotos que compõem o álbum, que são feitas depois de uma coreografia do fotógrafo frente à imobilidade das pessoas da família, temos a trajetória dos membros dessa família.

A primeira foto mostra o casal de primos, Jonas e Senhorinha, um dia depois do casamento. Treze anos depois, o mesmo ritual com a segunda foto, o casal mais os quatro filhos, todos estáticos. Na terceira foto, temos Glória, sozinha, na primeira comunhão, representando, numa pose mística, inclusive com as duas alegorias esquecidas inicialmente pelo fotógrafo: o rosário e o livrinho de missa. O quarto retrato é o de D. Senhorinha e sua irmã – tia Rute – duas irmãs, a bela e a feia que disputaram o mesmo homem. A quinta fotografia nos mostra o misterioso Nonô ao lado da mãe e amante, D. Senhorinha. Jonas, sozinho e como se estivesse morto por dentro, mostra-se na sexta foto. Na sétima e última foto, aparece o casal Edmundo e Heloísa, demonstrando frieza e solidão.

Com uma história controversa como esta, nem mesmo Nelson Rodrigues esperava cair no gosto do público – muito menos no gosto da censura. O que pouca gente percebeu na época, porém, foi o tom propositalmente absurdo que o dramaturgo imprimiu à peça. A família de Jonas e dona Senhorinha vive num mundo à parte, além do bem e do mal e completamente distante de qualquer tipo de realidade. Os pais e os quatro filhos não entraram no jogo social a que todos são submetidos, muito menos reprimiram seus impulsos. Não criaram tabus e, de certa forma, seguiram como bichos seus próprios instintos.

As personagens de Álbum de Família não têm censura e são avessas a quaisquer padrões. O mundo criado pelo dramaturgo desta vez é absolutamente mítico, imaginativo, sem compromisso algum com a realidade. Várias meninas morrem grávidas de Jonas sem que haja nenhum inquérito policial, por exemplo. Não existem vizinhos nem ninguém para contrabalancear a existência absurda da família de Senhorinha. Tudo é mostrado como se aquela família fosse a única do mundo. Ou, indo mais longe, como se a família de Jonas fosse a representação de todas as família existentes no mundo.

Outra característica importante nesta quarta peça de Nelson Rodrigues é a ausência de metáforas. Tudo é muito claro e, de certa forma, desprovido de fantasia. O crítico Sérgio Milliet, por exemplo, disse que “a literatura de Álbum de Família descamba para a ilustração psicanalítica e deixa de nos empolgar como obra de arte em si”. De certa maneira, a crueza com que o autor trata o incesto, mostrando uma família que não consegue manter outro tipo de relação, distancia o espectador daquele universo. Provavelmente ninguém se identificou com aquelas vidas no palco, nem mesmo com as suas atitudes. Deste modo, o espetáculo passa a ser visto como um verdadeiro absurdo, algo completamente distante da (assim chamada) “vida real”.

Por causa deste aspecto surreal, as personagens de Álbum de Família existem para justificar alguma teoria. Representando arquétipos muito mais do que pessoas reais, a família incestuosa desta “tragédia em três atos” é essencialmente freudiana. Nelson Rodrigues abandona de vez a consistência psicológica das personagens para mergulhar nas desordenadas raízes inconscientes. A teia de relações incestuosas e conflitantes da família de dona Senhorinha e Jonas revela ao espectador uma condição inerente ao ser humano, mas que, por causa da sociedade, foi jogada para baixo do tapete. A tragédia certamente jamais aconteceria com a família do espectador. Mas ela serve, por exemplo, para representar de modo extremado aquela facilidade que a filha mulher tem de se entender melhor com o pai e vice versa. Em Álbum de Família, Nelson Rodrigues faz o espectador olhar com lupa situações que costumam passar despercebidas no cotidiano. E a lente que ele usa para enxergar essas situações provoca um aumento extremamente distorcido e tendencioso, como convém a um dramaturgo que procura focar determinados conflitos humanos.

Álbum de Família tem dois vetores dramáticos que desencadeiam a ação. Em primeiro lugar aparece a relação lésbica de Glória e Tereza, no dormitório do internato de onde são expulsas. O segundo é a ligação incestuosa entre dona Senhorinha e seu filho Nonô. A ligação entre os dois produz efeitos decisivos que transformam a história. Após transar com a mãe, Nonô enlouquece e fica rondando a casa nu, gritando e uivando como um animal. Outro desdobramento acontece quando Jonas vê um homem sair do quarto de dona Senhorinha pela janela e, sem identificá-lo, começa a deflorar menininhas de doze a dezesseis anos, na própria casa, para se vingar da mulher. Durante os três atos em que se desenrolam essas histórias, ouve-se os gritos (fora de quadro) das dores de parto de uma menina que engravidou de Jonas. Por causa das bacias extremamente estreitas, ineficientes para parir uma criança, ela acaba morrendo no final da peça. Apesar da história da família de Jonas acontecer entre os anos de 1900 e 1924, ela é absolutamente atemporal. Nada impediria que Nelson Rodrigues tivesse escolhido um ano mais recente para situá-la, por exemplo.

Por causa da história intrincada e dos protagonistas fortes e marcantes, Álbum de Família tem poucas personagens secundárias. A mais importante delas é a tia Rute, “solteira, tipo de mulher sem o menor encanto sexual”. Por gratidão a uma noite de amor, Rute arranja as menininhas que Jonas desvirgina – mais uma vez aparece na dramaturgia rodrigueana o envolvimento de duas irmãs com o mesmo homem. As outras personagens secundárias são Tereza, a menina que teve uma relação lésbica com Gloria e lhe jurou fidelidade eterna, e Heloísa, ex-mulher de Edmundo, intocada, que aparece no enterro dele para insinuar a Senhorinha a relação incestuosa dos dois. Existe também o fotógrafo, responsável pela documentação dos momentos expressivos para o álbum da família, e o speaker, homem que fica a peça inteira passando informações erradas sobre as personagens e o desenrolar dos fatos. Nelson Rodrigues o definiu ironicamente como “a opinião pública”.

Ao contrário da imoralidade que a maioria associou à peça na época, Nelson Rodrigues provou ser um grande moralista. O incesto aparece em Álbum de Família como o sinônimo mais exato da morte. Numa espécie de moral da história, o dramaturgo defende que a censura da sociedade, instituição que reprimiu o impulso do ser humano para o incesto, salvou o mundo da barbárie. Não fosse a sociedade, estaríamos todos vivendo como animais, comendo e matando uns aos outros.

Para representar ainda melhor a tensão que significa viver seus próprios instintos sem nenhuma espécie de freio, não há em Álbum de Família uma única personagem que sorri em cena. O clima é árido, os diálogos são dolorosos e a frase que paira no ar durante toda a peça é fatalista e profética: o incesto não compensa, graças a Deus a sociedade está aqui para nos salvar. Para o crítico Sábato Magaldi, “a história e a civilização traem inapelavelmente a inteireza dos impulsos autênticos, disfarçados, transferidos ou sublimados em outros valores. Mas são esses valores que propiciam a continuidade da vida. Se correto esse raciocínio, Álbum de Família deixaria de ser a tragédia que assustou os bens pensantes, para testemunhar o moralismo congênito do dramaturgo”.

Estrutura

Desta vez, Nelson Rodrigues deixou as inovações para o aspecto textual da peça. Ao contrário de Vestido de Noiva, com sua antológica estruturação em três níveis de consciência, Álbum de Família chega a ser até banal na sua representação cênica. A maior inovação está nas presenças do fotógrafo, sempre tirando os retratos para o álbum da família, e do speaker, descrevendo a família com um distanciamento suspeito e um olhar definido pelo autor como uma espécie de “opinião pública”. Sobre o speaker, Nelson Rodrigues escreveu na rubrica da peça: “ele tem mau gosto nos comentários e prima por oferecer informações erradas sobre a família”.

A primeira cena mostra o retrato de Senhorinha e Jonas, um dia após o casamento. Em seguida aparece Gloria e Tereza, no dormitório do internato, jurando amor eterno e fidelidade entre si. Com o clima obsessivo entre as duas meninas, o espectador já está preparado para penetrar na obscura fazenda onde vive a família de Jonas. Já num primeiro contato, a platéia já desconfia que o único sentimento comum a toda aquela família esquisita é o amor incestuoso.

As aparições do fotógrafo e do speaker acontecem em momentos cruciais do texto. Logo depois que dona Senhorinha fica sabendo da relação sexual que aconteceu entre Jonas e sua irmã Rute, por exemplo. Na 2ª foto, logo após a revelação, o casal está acompanhado dos quatro filhos. As conclusões do speaker são opostas ao que o espectador acabou de ver ou, pelo menos, bem diferentes das cenas que ele verá em seqüência.

O 2º ato começa com outra página do álbum, desta vez retratando Gloria na 1ª comunhão. Enquanto o fotógrafo está tirando a foto de Gloria, o speaker diz que a menina é muito obediente à mãe e que elas se amam mais do que tudo na vida. Em seguida acontece o encontro entre Guilherme e Glória, já expulsa do colégio interno, e o espectador fica sabendo que ele decidiu ser padre apenas para fugir do desejo que sentia por Gloria. Contrariando o speaker e seu senso comum, a menina confessa que em nenhum momento da sua vida chegou a gostar da mãe.

Na cena da Igreja acontece um fato de bastante apelo dramático: o Cristo que o espectador vê no altar tem o rosto de Jonas. Glória chega a comentar isto com o irmão, mas ele diz que não vê nenhuma semelhança e garante que ela está ficando louca. Mas a imagem de Jesus Cristo está, segundo a indicação de Nelson Rodrigues para o cenógrafo, muito maior do que o normal e tem a expressão e os traços de Jonas. O espectador, nesta cena, é cúmplice da filha caçula. Observa os acontecimentos com os olhos e a mente fantasiosa da menina. Quando Gloria é assassinada pelo irmão, ali mesmo na Igreja, a imagem de Jesus Cristo volta para o tamanho normal e seu rosto passa a ser o habitual. Com recursos expressionistas, Nelson Rodrigues fez com que o espectador visse a cena através dos olhos de Gloria, como uma câmara subjetiva faria no cinema, para, após da morte da menina, ser jogado novamente no mundo real.

A estruturação da tensão em Álbum de Família segue o estilo da maioria das peças de Nelson Rodrigues. A história vai se desenrolando no decorrer do ato, os mistérios vão aparecendo e o ponto máximo de tensão acontece sempre no último quadro dos atos. No final do segundo, por exemplo, é Gloria quem morre. Outro fator de tensão trabalhado na peça são as cenas em que Jonas e dona Senhorinha aparecem juntos. Em nenhum momento, dona Senhorinha encara o marido. Está sempre de perfil para ele e a única vez em que o olha de frente é para matá-lo, no velório de Edmundo e Gloria. A presença cênica invisível da menina grávida, tentando dar a luz uma criança, também é bastante dramática. Trancada num quarto da fazenda, ela vai gritando as dores do parto ao mesmo tempo em que roga praga para a família de Jonas.

O terceiro ato abre novamente com mais uma página no álbum da família. Desta vez é Nonô quem aparece ao lado de dona Senhorinha. Este último ato mostra aos espectadores os resultados de uma família incestuosa. Ao saber de Nonô e sua mãe, Edmundo se mata. Tia Rute vai acompanhar o parto da menina e diz que ela está muito mal, capaz até de morrer. Jonas diz que vai ver o caso de perto e, depois de ser insultado pela menina, aparece novamente em cena arrumando o cinto da calça. Insinua-se que ele transou com a moribunda.

Aparece então a sexta página do álbum, agora com um retrato de Jonas. O speaker diz que ele se enforcou por não agüentar a morte de três de seus quatro filhos. Prato cheio para os fofoqueiros, que logo inventaram que Jonas tinha sido assassinado pela mulher, continua o speaker. Interrompe-se o velório de Edmundo e Gloria para a sétima página do álbum. Quem está posando desta vez é Edmundo e Heloísa, logo após o casamento. A expressão cansada dos recém-casados em nada condiz com os comentários enfáticos do speaker sobre a felicidade de Edmundo e Heloísa. A cena seguinte mostra dona Senhorinha atirando à sangue frio no marido para poder fugir com o filho preferido, o maluco Nonô. A marcha fúnebre acompanha a cena assim como, provavelmente, acompanhará todo o destino deste casal incestuoso. Sugestivamente, dona Senhorinha e Nono foram o único casal que consumou o incesto.

Álbum de Família é, sem dúvida, a peça mais ousada, difícil e ambiciosa de Nelson Rodrigues. Seus estudiosos especulam que ele só decidiu escrevê-la porque já tinha na manga o reconhecimento pelo seu trabalho anterior, Vestido de Noiva. Mesmo carregando uma assinatura famosa, Álbum de Família acabou ficando vinte anos censurada por “preconizar o incesto e incitar o crime”. O mais inusitado é que a censura federal não fez nenhuma menção ao lesbianismo.

Enredo

Álbum de Família conta a história de uma família entre os anos de 1900, quando os primos Senhorinha e Jonas se casaram, e 1924, quando a família apodreceu completamente. A peça abre com um fotógrafo tirando uma foto dos recém-casados, Senhorinha e Jonas, e um speaker dando à platéia informações sobre o casal. À medida que os atos vão se construindo no palco, aparecem novas fotos do álbum da família e novos comentários errados e imbecilizados (segundo as rubricas do próprio autor) do speaker.

A peça se inicia com os gemidos de uma menina parindo que vai ser escutado ao longo de toda a trama. Logo descobrimos que a menina está grávida de Jonas que, apesar de casado com D. Senhorinha, manda a cunhada trazer-lhe meninas novinhas, virgens, com ele se deitarem. Todas as meninas engravidam e acabam morrendo na hora do parto pois “não têm quadris”. Essa imagem forma um pano de fundo sacrificial sobre o qual a história da família vai se desenrolar.

A família é composta por dona Senhorinha, “frígida” e passiva; Jonas, que desvirgina meninas em casa; Edmundo, o filho que retorna ao lar depois de se separar da mulher; Guilherme, primogênito e aprendiz de padre; Nonô, filho mais novo e completamente maluco; Gloria, a caçula que é expulsa do colégio interno após ter uma relação amorosa com a colega de quarto; e tia Rute, irmã solteirona e feia de dona Senhorinha. As primeiras impressões da família já são estranhas. Porém o espectador ainda não conhece o verdadeiro protagonista de Álbum de Família: o incesto.

Com o tempo, o que é confuso fica ainda pior. Jonas transa com as meninas virgens apenas para desviar seu profundo desejo pela filha. Tia Rute é quem arranja as meninas por gratidão ao dia em que, bêbado, Jonas transou com ela (são várias as menções do autor à feiúra desta personagem, por isso a enorme gratidão que ela tem pelo único homem que teve coragem de tocá-la). Depois de se castrar para ficar livre da tentação de transar com sua irmã Gloria, Guilherme desiste de ser padre e volta para a casa para salvá-la das garras de Jonas. Este, por sua vez, justifica sua luxúria lembrando um dia em que viu um homem sair do quarto de sua mulher pela janela. Na época, insistiu para que Senhorinha revelasse a identidade do amante. Assim que soube tratar-se do jornalista Teotônio, amigo do casal, pediu que a mulher marcasse um novo encontro e matou o amante no quarto onde Senhorinha e ele dormiam.

A pincelada cômica dada a Álbum de Família foi introduzida através do speaker. Ao atuar como opinião pública, faz comentários idiotas, inoportunos e de mau gosto, um irônico enobrecendo dos valores da família patriarcal. Ele é o típico bufão: (…) aquele cuja função é incentivar a ndência à alegria, em vez de contribuir para o enredo.

O speaker surge como que para resgatar o riso e a burla que havia sido excluída, internamente, da peça que, sem dúvida, tem por traço determinante o trágico. Entretanto, através da comicidade, o speaker escancara a seriedade hipócrita e falsa da sociedade da época.

Enquanto externamente, através do fotógrafo e do speaker, se faz um esforço artificial para que a família pareça sobreviver, em sua essência, a família aristocrata brasileira expressa sua deteriorização, por suas próprias ações na peça. A obra termina de maneira extremamente violenta: Guilherme mata a irmã para que ela não fosse possuída pelo pai; Edmundo suicida-se, por não poder concretizar seu amor pela mãe; D. Senhorinha mata Jonas e parte para uma nova fase, a sós com o filho Nonô.

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