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Catar Feijão, de João Cabral de Melo Neto

by Lucas Gomes

O poema Catar Feijão faz parte do livro A
Educação pela pedra
, de João Cabral de Melo Neto,
cuja primeira edição foi publicada em 1965.

Catar feijão

1.

Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

2.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.

No poema João Cabral de Melo Neto revela sua concepção
do ato criador. Tem como objeto a construção do poema, toma como
referência um ato do cotidiano em que também o escolher, o combinar
são necessários. O jogar as palavras é a primeira etapa
criadora: a inspiração. Essa leva o artista a colocar no papel
suas iniciais impressões. Porém, o verdadeiro artista não
fica aí: ele, assim como o catador de feijões, seleciona os melhores
grãos, a fim de construir uma poesia que fale, não pelo excesso,
mas pela contenção, desfazendo- se de tudo o que for leve e oco,
palha e eco. O que já foi dito não interessa repetição.
Sua paixão e consciência buscam a originalidade da forma e do conteúdo.

Em Cabral, o eu-lírico está presente com toda a força que
sua ausência impõe, diferentemente de outros poetas, seus contemporâneos
ou antecessores, que propuseram uma lírica subjetiva, idealizadora do mundo
em oposição a este, quer expressando uma visão pessimista,
irônica ou inconformada. Cabral não. Ele silencia a voz valorativa.
Apresenta uma poética, em sua maior parte, crua, destituída de individualidade.
Mas não isenta de seu olhar original sobre a realidade. Olhar que corta.

O poeta seleciona, vê e revela, mesmo disfarçando,
o que seus olhos percebem. Numa postura inovadora: a pedra dando à frase
seu grão mais vivo; o prazer mais vivo.

O rigor composicional do poema largamente difundido pela crítica
nesse livro chega a seu ápice. São quarenta e oito poemas escritos
em duas estrofes que muito se assemelham a quadros pictóricos, visualmente
considerados. Ao todo cada poema atinge dezesseis ou vinte e quatro versos e
o universo temático sempre tendo a ver com o Nordeste / Espanha, a condição
humana e o fazer poético. Tudo isso numa rede de inter-relações
lucidamente arquitetada. Catar feijão se apresenta composicionalmente
em duas partes, com a marcação da segunda delas como o número
2.

Na primeira parte o poeta descreve o que se pode denominar
de habitual, comum num ato de catar feijão: a limpa, isto é, “jogar
fora o leve e oco, palha e eco” que é a sobra, a sujeira – o “eco”,
pois o bom do feijão fica no fundo. Ocorre, porém, que já
desde aí o poema conotativamente inicia seu jogo poético. A começar
pelo título: Catar feijão. Nada mais despistador. Na
verdade, ao término de sua leitura, sabe-se que lhe interessa mesmo é
o “catar” palavras. E nessa linha do despiste, o primeiro verso enuncia
que “catar feijão se limita com escrever, quando quer mesmo a idéia
de que escrever se limita com catar feijão. O jogo através do
símile se faz o inverso, toma-se o real comparado na condição
de comparante. A composição começa por demonstrar assim
que ela toma-se a si mesma como modelo desse catar feijão em que a
pedra dá à frase seu grão mais vivo:/ obstrui a leitura
fluviante, flutual, /açula a atenção, isca-a com o risco
.

O verbo catar assume o sentido de escolher. Porque catar feijão
é, como catar palavras, recolher, retirar o que não é feijão
ou não é feijão bom ,o que não é palavra
adequada ou não é palavra boa. Nota-se que o rigor de escolha
é mesmo exemplar. Conquanto haja o propósito de conceituar o ato
de escrever, com a importância fundamental que lhe dá de ser dada,
o poeta usa o verbo limitar para estabelecer proximidades (e não igualdade)
entre comparante e comparado: “Catar feijão se limita com escrever”,
e não é o mesmo que catar feijão é como escrever.
As diferenças e semelhanças dos dois atos ficam garantidamente
asseguradas nos versos do poema. E para demonstrar concretamente essa imagem,
seguem-se os verso dois, três e quatro, com os quais estabelece simultaneamente
a semelhança / diferença no ato de jogar: “joga-se os grãos
na água do alguidar” é semelhante apenas na intenção
de escolher a “e as palavras na folha de papel”. E a imagem da diferença
novamente se estabelece, pois, ao contrário dos grãos, as palavras
não vão fundo, bóiam no papel, não obstante chumbo:
Certo, toda palavra boiará no papel, / água congelada, por
chumbo seu verbo
. A imagem é muito significativa, ainda mais quando
se observa que a “água-papel” se contrasta com a “água
– alguidar” não apenas quanto à imagem produzida: líquida,
a do alguidar, sólida (e branca), a do papel, amas também porque
a complexidade do verbo boiar é muito maior pelo efeito que o contexto
lhe confere. Ora, na água – papel, efetivamente as palavras não
bóiam porque não há fundo, mas conotativamente bóiam,
quando ao texto não se ajustam, sendo então necessário
“catá-las”. Com o visível propósito de evidenciar,
concretizar a imagem buscada, o poema efetivamente se constrói sob o
efeito de uma espécie de hipálage, atribui-se o que é próprio
do catar feijão ao escrever (poesia) e vice-versa, numa estrutura sintática
direcionada pelo símile. E nessa linha se fecha a primeira fase: “pois
para catar esse feijão, soprar nele e jogar o leve e oco, a palha e eco.
“Esses são elementos concretamente próprios do ato de catar
feijão jogado no alguidar: o que sobe é leve, palha, oco e, pois,
eco (sujeira). Mas poeticamente é no “catar” palavras que ele
se aplica: jogar fora as que são palha, ocas, portanto, eco. Deve-se
atentar ainda para a especial conotação da palavra eco, que no
poema é eco (sujeira de que se deve livrar) por fazer eco, (som desagradável,
que se deve evitar).

Na segunda parte, a segunda estrofe, o poema expõe uma
das conseqüências ou um dos resultados possíveis desse ato
de catar feijão; o risco que se corre, pois pode ficar no fundo algo
que, como o feijão, não bóia e que, estranho, é
um perigo: “um grão qualquer, pedra ou indigesto, um grão
imastigável, de quebrar dente”. Isto para esse real catar feijão
na água do alguidar. Entretanto para acatar palavra o efeito é
outro bem contrário: “a pedra dá à frase seu grão
mais vivo:” Como se verifica, o processo composicional estabelecido se
mantém. Apenas que desta feita a implícita comparação
se dá de forma direta. A pedra para o “catar palavra” não
é indigesta, mas sim renovadora. Melhor dizendo, o indigesto em “catar
palavras”, qual seja, o que rompe o tradicional (o habitual) não
causa problemas, ao contrário, instaura o novo, criativamente considerado,
“a pedra dá à frase se grão mais vivo: / obstrui a
leitura fluviante, flutual.

A sintaxe do poema é também bem peculiar. Sua
estrutura dá sustentação à forma lógico-argumentativa
em que se organiza. A reflexão sobre o fazer poético que busca
limites no catar feijão se conduz por acirrada linguagem lógico
– argumentativa. Os versos não as medidas extensas e variáveis,
mais apropriados e adequados a esse tipo de raciocínio, no caso, poemático.
Mas o que singulariza a sintaxe poemática de Catar feijão
é a construção firmada em frase elípticas, o que
concorre tanto para a economia vocabular do poema enquanto para a sua pauta
rítmica. Sirvam de exemplo: a elisão de água em: as palavras
na da folha de papel;” v.3; e a intrincada construção com
versos 5, 6 e 7: “Acertos, toda a palavra boiará no papel. Água
congelada (que é água congelada), por chumbo seu verbo (por ser
de chumbo o seu verbo); / pois para catar esse feijão, soprar nele (é
necessário soprar nele)”. Catar feijão é,
pois, uma poema em que a construção poemática é
brevemente discutida, melhor diria, argumentada (em dezesseis versos), porém
numa linguagem poética lógico – discursiva bastante densa e rigorosamente
trabalhada, dando-se próprio poema como exemplo desse fazer poético
que ele mesmo preconiza. Há uma perfeita sintonia entre a cadência
rítmica assegurada pela freqüência quase exclusiva de vocábulos
paroxítonos e oxítonos alternado-se, a grande incidência
da aliteração, da assonância e a reiteração
de determinadas palavras ou expressões como já se observou. Essa
sintonia se faz presente no amálgama dessa camada sonora com o campo
semântico e sintático, o que também já ficou aqui
observado. Se há uma certa dissonância: a rima toante feita de
forma bem peculiar, a variabilidade da métrica nos versos, a sintaxe
singularmente elíptica e outros, é porque “quando ao catar
palavras “a pedra dá à frase seu grão mais vivo”.

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