Home EstudosLivros Cem anos de perdão (Conto da obra Felicidade clandestina), de Clarice Lispector

Cem anos de perdão (Conto da obra Felicidade clandestina), de Clarice Lispector

by Lucas Gomes

Neste breve conto, também passado nas ruas de Recife, Clarice Lispector aborda
novamente o tema da rosa, que lhe é tão caro.

Em “Cem anos de perdão” ela fala de outra fantasia, tornada talvez realidade, e
cuja satisfação da conquista se assemelha a uma visita aos bairros ricos da cidade,
diferentes do seu, onde em vez de sobrados simples como aquele em que mora há
imponentes palacetes cercados de pomares e jardins, que despertam a sua admiração
e cobiça.

O relato memorialístico lembra a menina Clarice, com uma amiguinha, olhando “com a
cara imprensada nas grades”, estrangeiras e ávidas, o mundo de beleza e fartura
que lhes é vedado, do qual se sentem exiladas e no qual são, efetivamente, proibidas
de entrar. Elas olhavam para os palacetes e disputavam a posse imaginária deles.

O enredo se desenvolve em torno dos cálculos da menina para roubar uma rosa de um jardim.
O objeto do roubo é tão pequeno para a importância que lhe dá a autora, que chega a
produzir uma suspeita no leitor.

Ao contrário dos demais contos, nos quais ela implora a outros a satisfação de seus
desejos, ou cede à frustração dos mesmos, neste conto ela não espera nem se conforma,
ao contrário, tece os seus ardis e vai em busca daquilo que deseja, sem se importar
com as conseqüências. É como se toda aquela exuberância e alegria alheias pudessem ser
experimentadas por vias sorrateiras, ilegais, mas tão legítimas quanto quaisquer outras.

A menina apanha a rosa, tomando cuidado para não ser vista.

Enquanto ela colhia as rosas a fim de levar para casa, a colega vigiava.

As duas, usando dessa estratégia, uma colhia, a outra vigiava, passaram a furtar rosas
com freqüência. Além de rosas, furtavam também pitangas. “Ladrão de rosas e pitangas
têm cem anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem pra ser
colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens.”

O conto é permeado por símbolos: há a alusão ao jardim ou pomar, que evoca o Paraíso
bíblico; há a interdição às crianças, ou aos não-iniciados, da experiência das
delícias e dores do conhecimento; há os diversos motivos ocultistas que ligam à
paixão física à Paixão mística, como a rosa e seus espinhos. O erotismo não se
expressa explicitamente, portanto, mas na escolha dos objetos roubados: rosas e
pitangas; no motivo elementar e ausente do roubo: roubava simplesmente para possuir
as rosas, para comer as pitangas; mas, sobretudo, nas descrições ardentes e sensuais
da flor e do fruto, cuja adjetivação generosa não deixa dúvidas quanto ao papel
alegórico desses elementos na narrativa: “A flor soberana, de pétalas grossas e
aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No centro dela a cor se concentrava e
seu coração quase parecia vermelho”. Vermelho como as pitangas, que “escondidas na
folhagem era preciso buscar às apalpadelas cegas, até sentir o úmido da frutinha”.
O colher das pitangas, que muitas vezes, na sua “pressa”, deixava-lhe os dedos
“como ensangüentados”, imagem que também é utilizada na descrição da colheita da
rosa: “Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e
chupando o sangue dos dedos”, chega a sugerir sucessivos defloramentos, dedução
que a autora reforça no último parágrafo, quando diz que “as pitangas pedem para
ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens”.

Não deixa de ser estranho a autora atribuir à menina o papel de defloradora de
virgens. Mas não há como negar que a descrição das rosas e das pitangas são
sugestivas evocações do órgão sexual feminino. A evidência da proibição e a
presença marcante de uma culpa que deveria, mas não é sentida, são contrapostas
à excitação do roubo e à detalhada descrição do processo, feito a duas: “a menina
vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. Sempre
com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava”. A
satisfação do resultado contribui para a perpetuação da brincadeira: “Foi tão
bom. Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas”.

Uma confissão íntima, velada, de algum jogo sexual infantil, arrancado
alegoricamente à memória culpada (por não sentir culpa) da mulher adulta? Um texto
ocultista, que esconde na aparente simplicidade do tema uma mensagem vedada aos
não-iniciados? Uma alusão metalingüística à natureza do exercício do seu mestrado
literário? “Não me arrependo” – diz ela, afinal. “Ladrão de rosas e de pitangas
tem cem anos de perdão”.

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