Home EstudosLivros Darandina (Conto de Primeiras estórias), de Guimarães Rosa

Darandina (Conto de Primeiras estórias), de Guimarães Rosa

by Lucas Gomes

Análise da obra

Darandina é narrado em primeira pessoa, por uma testemunha do episódio, um plantonista de um hospício.

É um conto que se situa entre o anedótico e o satírico. Seu título não é explicado pelo autor. Os dicionários passaram a incluir “darandina” em suas edições mais recentes – talvez devido exatamente ao emprego desse termo por Guimarães Rosa – com o sentido de atrapalhação, confusão.

Darandina é um dos 21 contos, narrativas curtas, integrantes da obra Primeiras estórias, de Guimarães Rosa, onde a estória coloca, como O Alienista, de Machado de Assis, a questão das fronteiras entre a normalidade e a loucura: ou estão todos loucos, caso em que ninguém é louco?

Este é um dos poucos contos urbanos da obra. Claramente, sua temática é a loucura: uma pessoa comum que, por isso, consegue realizar uma façanha que espanta a todos os viventes e espectadores de um dia comum: escala, sem dificuldade alguma, uma palmeira e se instala no seu topo, resistindo a todas as tentativas que se fizeram para arrancá-la de lá. As conseqüências desse fato inusitado são as mais diversas, mas o principal é que se chega à conclusão de que faltam conceitos para explicá-lo.

Sua maluca subida, além de fazer lembrar Ismália, do simbolista Alphonsus de Guimarães, mostra uma confusão que a personagem faz entre plano denotativo (sair do chão, ao pé da letra) e plano conotativo (sair do chão no sentido de buscar a transcendência).

Em meio ao impasse produzido pela cena nova e deslumbrante (o homem no topo da palmeira brilha e fere como o sol ao meio-dia), o narrador expõe suas dúvidas, desconfiando que o mundo se deixa abalar não tanto por conteúdos renovados, mas pela maneira como estes conteúdos se estruturam na sua apresentação.

Outro aspecto interessante é o que acontece no chão. Além do absurdo que é os especialistas discutirem a rotulação da insanidade do sujeito, sem solucionarem o problema, chama também a atenção a cidade inteira acompanhar o espetáculo do rapaz. Tudo isso autoriza o seguinte questionamento: quem é louco?

O incrível é que o louco consegue um equilíbrio espantoso no alto da palmeira (outra diferença entre os planos denotativo e conotativo), tornando-se, portanto, um excesso humano. Isso é que explica a profundidade de sentido de suas frases, como “Viver é impossível!”.

Infelizmente, recobra de súbito a sanidade e passa a ter medo da queda. De fato, chegar tão longe do comum do chão assusta – é o mesmo medo que sentiu o narrador de A Terceira Margem do Rio e Sionésio, de Substância. É conduzido para baixo pelos bombeiros. A população fica irritada com o fim do espetáculo. O ex-louco, talvez por segurança, tem (ou simula) outro surto, devolvendo alegria à cidade, que volta, alimentada, para o seu cotidiano.

A ação desenvolve-se em região urbana não especificada: uma praça vizinha de hospício. Não é cidade muito pequena, pois nela há Secretário de Finanças e um Corpo de Bombeiros equipado com maiores recursos.

Como ocorre nos demais contos, há um acontecimento-núcleo, do qual se originam os desdobramentos relacionados. No caso, como já citado, um doido com boa aparência abriga-se no alto de uma palmeira, fugindo da perseguição após pequeno furto que ele praticou. Em torno desse fato, comentários, providências, discussões, discursos… tendo a loucura como pano de fundo. O leitor se vê diante de um protagonista doente mental que profere frases desconexas, aparentemente filosóficas e proféticas, capazes de levar a multidão de ouvintes ao delírio triunfante, a ponto de tratar o insano como herói. O que parecia trágico termina cômico. É o tragicômico.

Enredo

A manhã era clara. O narrador, já em horário de serviço, estava junto ao portão do prédio de uma instituição destinada a tratar de doenças mentais, onde trabalhava, provavelmente como médico. De repente, alguém gritou e o narrador, embora de relance, percebeu que um senhor distinto que passava por ali furtou a caneta-tinteiro da lapela do paletó de outro transeunte e saiu correndo, perseguido. Apesar de vestido socialmente, não tirou os sapatos para se refugiar no alto de uma palmeira da praça, na qual havia subido com rapidez.

Sem demora, formou-se, em volta da árvore, uma pequena multidão de curiosos que faziam comentários ou ameças. O narrador julgou tratar-se de um camelô importuno que queria vender canetas. Adalgiso, colega de serviço – a dupla estava de plantão – puxou-o pelo braço e lá se foram os dois, passando no meio do ajuntamento formado ao pé da árvore. As pessoas supunham que o tal homem fosse um doido que fugira e, por isso, facilitavam a passagem dos dois plantonistas, identificados assim pelo avental que usavam. Adalgiso comentou baixo que o fugitivo não devia ser um louco, pois tinha aparência de normal.

Lá de cima o homem discursava. Afirmava que não era demente, mas percebia que estava quase sendo tomado pela insanidade ao ver a humanidade enlouquecida. Por isso, resolveu internar-se num hospício, no qual estaria protegido quando a humanidade piorasse.

O narrador viu no tal homem a confirmação da teoria do professor Dartanhã: 40% das pessoas são loucos reconhecidos e grande parte das demais poderia receber o mesmo diagnóstico.

Adalgiso cochichou que o colega deles, Sandoval, reconheceu o homem da palmeira: era o Secretário das Finanças Públicas. Ia chamar as autoridades para decidirem o que fazer.

Enquanto não aparecia ninguém que tomasse providências, o tal falso louco se equilibrava muito bem e falava como um doido de verdade, que ele não era gente, que ele era uma ilusão.

Chegou o diretor do hospício, acompanhado de policiais, de médicos, do Sandoval, do capelão, de enfermeiros e padioleiros, trazendo camisa-de-força. O diretor e o professor Dartanhã não se davam. Então, começaram a discutir: o primeiro acreditava na normalidade do homem da palmeira, dizendo que se tratava do Secretário; o outro aplicava-lhe um diagnóstico de paciente mental.

De novo o tal homem bradou e a multidão o ouviu em silêncio: “Viver é impossível.” O narrador teve simpatia intelectual por ele. Veio do diretor a idéia de chamar os bombeiros. Enquanto nada se fazia, as vaias dirigidas ao homem da palmeira se fizeram ouvir, quando espalharam sua identidade de pessoa importante. Achavam que não passava de um demagogo. Nesse instante, ele deixou cair um dos sapatos. Dr. Bilôlo exclamou que o homem era um gênio. O povo começou a aplaudi-lo. O outro sapato também foi largado. Mais aplausos.

Vieram os bombeiros e começaram a armar uma escada. Lá do alto da palmeira ouviu-se: O feio está ficando coisa… Nada de cavalo-de-pau! Querem comer-me ainda verde? Pára!… Só morto me arriam, me apeiam! Se vierem, me vou, eu… Eu me vomito daqui!… Diante do murmúrio das pessoas lá de baixo, replicou: Cão que ladra, não é mudo… Prendeu-se à árvore só pelos joelhos e deu a impressão de que ia cair. A multidão pediu: Não! Os bombeiros interromperam as manobras com a escada. O homem parou de balançar-se.

Apareceram o Chefe-de-Polícia e o Chefe-de-Gabinete do Secretário. Este olhou para o alto da palmeira com binóculo e disse que não estava reconhecendo o Secretário. O diretor, ansioso por popularidade, tomou o alto-falante dos bombeiros e tentou resolver a situação. Disse: Excelência… Excelência… Mas a multidão o vaiou. Então, passou o megafone para o narrador e foi ditando o que ele deveria falar, palavas que convencessem o homem a se entregar, mas ele resistiu, não aceitou.

Um impasse estava criado. Parecia não haver solução. Naquele momento, para surpresa geral, apareceu o verdadeiro Secretário das Finanças. De cima do carro dos bombeiros, dirigiu-se ao público e manifestou sua indignação ante o que ele suspeitava ser calúnia, jogo de adversários para destruí-lo. O outro gritou: Vi a Quimera! e começou a tirar a roupa. Jogava peça por peça sobre a multidão, até ficar nu, mostrando um corpo muito branco em contraste com a folhagem verde da palmeira, em pleno meio-dia de sol e calor. Escândalo e algazarra no meio do povo, raiva por parte das autoridades.

Os bombeiros foram novamente acionados. O pessoal da imprensa, fotógrafos e filmadores documentavam tudo. Como reação, para não ser capturado, o homem subiu até o ponto mais alto da árvore e gritou: Minha natureza não pode dar saltos? Achou-se que iria saltar ou cair. A escada avançava, recuava, ajustava-se ao salvamento.

A essa altura, surgiu um grupo de estudantes barulhentos com a intenção de resgatar aquele que eles supunham ser colega deles. No meio da balbúrdia, o Secretário tentou contê-los. Teve relativo sucesso, mas acabou indo para a casa de mansinho, sem ninguém perceber.

O professor Dartanhã, reconciliado com o diretor, explicava para os que lhe estavam ao redor que o infeliz era doente mental. Dr. Bilôlo o considerava um primitivo, no nível dos índios.

O diretor resolveu tentar convencer o desastrado fugitivo de perto. Para tanto, acompanhado do narrador, os dois foram subindo pela escada dos bombeiros. O outro os ouvia, mas gritou: Socorro! Os espectadores lá de baixo estavam enfurecidos com o pobre coitado. O narrador notou que ele merecia piedade porque, de repente, veio-lhe a lucidez. Saiu do delírio em que estivera, entrou em pânico, tomado pela aerofobia e pelo medo da multidão que queria linchá-lo. Conseguiu alcançar a escada manobrada pelos bombeiros. Então, voltando-se para o povo, exclamou, talvez novamente enlouquecido: Viva a luta! Viva a liberdade! As pessoas aglomeradas, em vez de vaiá-lo como vinham fazendo, passavam a aplaudi-lo. Receberam-no festivamente e o carregaram vitorioso.

Os médicos e funcionários do hospício comentavam que tinham acabado de assistir a um caso inédito e sem explicação. Só Adalgiso muito sério, nada falou foi para a cidade comer camarões.

Posts Relacionados