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Dias e dias, de Ana Miranda

by Lucas Gomes

O romance Dias e dias, de Ana Miranda, publicado em 2002, é inspirado na poesia “Dias após dias” de
Rubem Fonseca, e constrói a vida do poeta romântico Gonçalves Dias, revelando detalhes pessoais.

Desde o seu começo,
apresenta a voz da narradora Feliciana, hoje, uma mulher, que desde menina fora
apaixonada por Gonçalves Dias. No romance, Feliciana toma conhecimento da vida
íntima de Gonçalves Dias por meio das cartas enviadas pelo poeta a seu grande
amigo Alexandre Teófilo de Carvalho Leal. Mostradas a Feliciana por Maria Luíza,
esposa de Teófilo, as cartas registram muitas das questões existenciais do poeta.
Feliciana descreve de forma emocionante a paixão que as cartas alimentam, e seu
relato revela refinamentos da alma feminina.

Estas cartas, freqüentemente citadas no romance, criam uma ilusão
de realidade, fazem o leitor esquecer-se da ficcionalidade de Feliciana e de outros
personagens que têm existência apenas no romance, colocando-os no mesmo
plano de existência de Alexandre Teófilo e Gonçalves Dias.

O romance retrata o século XIX e ainda traz como destaque a revolta da Balaiada,
ocorrida em Caxias, além de abordar curiosidades e dados biográficos que traçam
o perfil de Gonçalves Dias. A obra combina história e ficção para contar uma história
sobre o amor, os costumes provincianos no interior do Brasil durante esta época,
a descoberta da cultura indígena, a beleza da poesia e os mistérios da sensibilidade.

A história reúne três personagens centrais: Feliciana, o poeta Gonçalves Dias
e o sabi, não um sabiá específico, mas a espécie inteira, que na Canção do
exílio
simboliza a pátria distante.

Feliciana parece ser a própria incorporação do espírito romântico
oitocentista, é uma memória ambulante que transforma Gonçalves Dias num ser
etéreo, intocável e, ao mesmo tempo, tão presente. Feliciana é o sabiá, com toda
a sua brasilidade, preso na gaiola com saudades do poeta romântico nacionalista.
Por outro lado, o romance parece representar justamente a soltura do
sabiá, quando apresenta o nacionalismo romântico como parâmetro para uma
proposta nacionalista atual.

A trama tecida pela autora faz com que o leitor se identifique com a personagem,
que desvenda o que sente por meio da escrita e da memória. Os personagens menores,
o pai de Feliciana, colecionador de sabiás; Adelino, um tímido professor apaixonado
por Feliciana, e Natalícia, a doce e severa preceptora, conferem ao livro uma
grande riqueza humana.

Antonio Gonçalves Dias (1823-1864) é o principal nome da poesia romântica brasileira.
Além de Canção
do exílio
, compôs os principais poemas da vertente indigenista do romantismo,
entre eles I-Juca-Pirama
e Leito de folhas verdes.

Na obra, os fatos são apresentados em flashbacks e há o caráter cíclico da diegese, a narrativa inicia-se
em 03 de novembro de 1864 e ao final do livro nos deparamos com a mesma data, o que sinaliza para os
anacronismos, ou seja, as constantes idas e vindas no tempo da narração.

Sob o ponto de vista desta narradora em primeira pessoa do singular é recordada e relatada não apenas sua
vida, como também a vida do objeto de seu amor, Dias.

Ana Miranda, de maneira muito inteligente, insere em seu texto, além de poemas,
muitas informações verídicas sobre o autor. Esta marca de intertextualidade faz
da trama um “mosaico de citações” por muitas vezes parodizadas. Isto, porque a
autora utilizando os versos de Gonçalves Dias lhes dá um sentido distinto, o que
faz com que, no mínimo, sua leitura deva ser dupla.

Por meio dos poemas inseridos na narrativa de Dias e dias e da presença de correspondências que são
trocadas dentro da diegese, as quais a autora teve acesso por meio de trabalhos rigorosos de pesquisa e
consulta à arquivos, é composta uma espécie de fotografia de nosso país e as informações contidas no
romance contribuem para a formação não só das características do poeta representativo de nosso país, como
também de peculiaridades que dizem respeito à nossa pátria amada.

Dias e dias, ratifica-se como uma bela e prazerosa obra de cunho histórico,
mas, se o leitor não for atento, nem perceberá o tema maior, devido ao caráter
de liricidade romanesca, a história envolvente de um amor platônico. Isto faz
com que a obra não seja apenas um romance histórico, mas uma magnífica biografia
romanceada, feita nos moldes da ficção. Um romance envolvente que é organizado
quase que, como um diário, a partir de sucessivos processos de rememoração de
Feliciana.

Ainda que toda a narrativa gire em torno de observações e declarações de Feliciana, isto é apenas um
pretexto para que se fale do personagem maior, o poeta Gonçalves Dias. Como estratagema, Ana Miranda
utiliza-se de um personagem fictício (Feliciana) para falar de um acontecido histórico. Porém, estes
personagens históricos não protagonizam a diegese, servindo apenas como parte do cenário ou “pano de
fundo”. Quem protagoniza a narrativa são os homens comuns e, por ser mulher, a narradora Feliciana
representa mais do que apenas uma pessoa comum. O fato de as ações serem protagonizadas por seres
ficcionais faz com que a ficção fique muito à frente de um mero enfoque histórico.

A proposta da diegese de Dias e dias diz respeito à leitura que o romance fornece da história, ou
seja, abordar o momento brasileiro em que há a representação da mulher e do homem do século XIX que, via
de regra, o recurso histórico não registrava, Ana Miranda aborda, então, esses elementos que as
enciclopédias históricas não abarcam. O olhar de Feliciana é dirigido para o cotidiano, isto é, para a
história da condição feminina.

O romance de Ana Miranda está entre aqueles
romances da atualidade que apresentam um olhar para dentro do Brasil,
focalizando sua arte, sua história, sua cultura, numa busca insistente, neste
momento, por uma forma de conhecer ou de reconhecer uma identidade brasílica
que se reconstrói por meio da história (literária, no caso de Dias e Dias) e que
traz consigo um movimento e um sentimento de nação. O sabiá, neste sentido,
surge no romance como símbolo desta brasilidade presente tanto nos poemas
de Gonçalves Dias quanto nos romances da atualidade, ainda que de modo
bastante diverso.

Este é um romance que se diferencia de Boca do Inferno (1989) por este
retorno nacionalista, pelo maior destaque dado ao discurso biográfico e pelo
amadurecimento criativo. As notas da autora, ao final do romance, são menos
referências bibliográficas do que indicações que auxiliariam o leitor no
reconhecimento do caráter documental de seu texto. Por outro lado, estas
indicações mostram um caminho para a reescrita ou, pelo menos, para a
reconstrução do romance pelo leitor e, para que ele não considere o texto uma
colagem irresponsável dos textos de Gonçalves Dias, a autora avisa que “poesias
e cartas de Gonçalves Dias foram incorporadas à expressão da narradora.

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