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Elenco de cronistas modernos (Parte 1), de Carlos Drummond de Andrade

by Lucas Gomes

Elenco de Cronistas Modernos

é uma obra que reúne crônicas de Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector,
Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz e Rubem Braga. Foram selecionadas dez
textos de cada autor, além de breve biografia desses autores.

Crônicas são sempre curtas, tematizando os acontecimentos triviais
da vida. Pode-se observar nestas setenta crônicas o predomínio
do foco narrativo em primeira pessoa, um tom confessional, uma linguagem leve,
o humor e as reminiscências.

Nesta parte veremos

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Geração Moderna – Itabira: 1902 – 1987 R.J.
– Adolescente começa escrever
– A Revista
– é considerado o maior Poeta de todos os tempos
– Poeta Gauche
– O ser e o macro-cosmo

Crônicas

1. Caso de canário – Rapaz mora com o sogro, dá sumiço no canário. Contra vontade coloca no lixo. No outro dia
a empregada percebe que o canário está vivo.

– Covardia – Transferência de reponsabilidade.
– Tema: A relação humanizada das pessoas com os animais de estimação.
– Eutanásia – Sensibilidade do genro
– Linguagem simples, aproximação com a fala, embora correta. Narração em terceira pessoa.
Discurso indireto e direto.

Íntegra:

Casara-se havia duas semanas. E por isso, em casa dos sogros, a família resolveu que ele é que daria cabo do canário:
– Você compreende. Nenhum de nós teria coragem de sacrificar o pobrezinho, que nos deu tanta alegria.
Todos somos muito ligados a ele, seria uma barbaridade.
Você é diferente, ainda não teve tempo de afeiçoar-se
ao bichinho. Vai ver que nem reparou nele, durante o noivado.
– Mas eu também tenho coração, ora essa. Como é que vou matar um pássaro só porque o conheço há menos tempo do que vocês?
– Porque não tem cura, o médico já disse. Pensa que não tentamos tudo? é para ele não sofrer mais e não
aumentar o nosso sofrimento. Seja bom; vá.
O sogro, a sogra apelaram no mesmo tom. Os olhos claros de sua mulher pediram-lhe com doçura:
– Vai, meu bem.
Com repugnância pela obra de misericórdia que ia praticar, ele aproximou-se da gaiola. O canário nem sequer abriu o olho. Jazia a um
canto, arrepiado, mortovivo.
é, esse está mesmo na última lona, e dói ver a lenta agonia de um ser tão gracioso, que viveu para cantar.
– Primeiro me tragam um vidro de éter e algodão. Assim ele não sentirá o horror da coisa.
Embebeu de éter a bolinha de algodão, tirou o canário para fora com infinita delicadeza, aconchegou-o na palma da mão esquerda e,
olhando para outro lado, aplicou-lhe a bolinha no bico. Sempre sem olhar para a vítima, deu-lhe uma torcida rápida e leve,
com dois dedos, no pescoço.
E saiu para a rua, pequenino por dentro, angustiado, achando a condição
humana uma droga. As pessoas da casa não quiseram aproximar-se do cadáver.
Coube à cozinheira recolher a gaiola, para que sua vista não despertasse saudade e remorso em ninguém.
Não havendo jardim para sepultar o corpo, depositou-o na lata de lixo.
Chegou a hora de jantar, mas quem é que tinha fome naquela casa enlutada? O sacrificador, esse, ficara rodando por aí,
e seu desejo seria não voltar para casa nem para dentro de si mesmo.
No dia seguinte, pela manhã, a cozinheira foi ajeitar a lata de lixo para o caminhão, e recebeu uma bicada voraz no dedo.
– Ui!
Não é que o canário tinha ressuscitado, perdão, reluzia vivinho da silva, com uma fome danada?
– Ele estava precisando mesmo era de éter – concluiu o estrangulador, que se sentiu ressuscitar, por sua vez.

2. O Dono – Crônica subjetiva.

Adelino, dono de restaurante. Bacalhau a Gomes de Sá. Se coloca do outro lado. Refinada ironia.
Valores – técnica de venda – qualidade – conhecimento
Narração em primeira pessoa.

Íntegra:

O dono do pequeno restaurante é amável, sem derrame, e a fregueses mais antigos costuma oferecer,
antes do menu, o jornal do dia “facilitado”, isto é, com traços vermelhos cercando as notícias importantes.
Vez por outra, indaga se a comida está boa, oferece cigarrinho, queixa-se do resfriado crônico e pergunta
pelo nosso, se o temos; se não temos, por aquele regime começado em janeiro, e de que desistimos. Também
pelos filmes de espionagem, que mexem com ele na alma.
Espetar a despesa não tem problema, em dia de barra pesada. Chega a descontar
o cheque a ser recebido no mês que vem (“Falta só uma semana, Seu Adelino”).
Além dessas delícias raras, Seu Adelino faculta ao cliente dar
palpites ao cozinheiro e beneficiar-se com o filé mais fresquinho, o
palmito de primeira, a batata feita na hora, especialmente para os eleitos. Enfim, autêntico papo-firme.
Uma noite dessas, o movimento era pequeno. Seu Adelino veio sentar-se ao lado
da antiga freguesa. Era hora do jantar dele, também. O garçom
estendeu-lhe o menu e esperou. Seu Adelino, calado, olhava para a lista inexpressiva
dos pratos do dia. A inspiração não vinha. O garçom
já tinha ido e voltado duas vezes, e nada. A freguesa resolveu colaborar:
– Que tal um fígado acebolado?
– Acabou, madame – atalhou o garçom.
– Deixe ver… Assada com coradas, está bem?
– Não, não tenho vontade disso – e Seu Adelino sacudiu a cabeça.
– Bem, estou vendo aqui umas costeletas de porca com feijão branco, farofa e arroz…
– Não é mau, mas acontece que ainda ontem comi uma carnezita de porco, e há dois dias que me servem feijão ao almoço – ponderou.
A freguesa de boa vontade virou-se para o garçom:
– Aqui no menu não tem, mas quem sabe se há. Um bacalhau à
qualquer coisa? – pois Seu Adelino (refletiu ela) é português, e como todo lusíada que se preza, há de achar isso a pedida.
Da cozinha veio a informação:
– Tem bacalhau à Gomes de Sá. Quer?
– é, pode ser isso – concordou Seu Adelino, sem entusiasmo.
Ao cabo de dez minutos, veio o garçom brandindo a Gomes de Sá.
A freguesa olhou o prato invejando-o, e, para estimular o apetite de Seu Adelino:
– Está uma beleza!
– Não acho muito não – retorquiu, inapetente.
O prato foi servido, o azeite adicionado, e Seu Adelino traçou o bacalhau, depois de lhe ser desejado bom apetite. Em silêncio.
Vendo que ele não se manifestava, sua leal conviva interpelou-o:
– Como é, está bom?
Com um risinho meio de banda, fez a crítica:
– Bom nada, madame. Isso não é bacalhau à Gomes de Sá
nem aqui nem em Macau. é bacalhau com batatas. E vou lhe dizer: está
mais para sem gosto do que com ele. A batata me sabe a insossa, e o bacalhau salgado em demasia, ai!
A cliente se lembrou, com saudade vera, daquele maravilhoso Gomes de Sá
que se come em casa de Dona Concessa. E foi detalhando:
– Lá em casa é que se prepara um legal, sabe? Muito tomate, pimentão,
azeite de verdade, para fazer um molho pra lá de bom, e ainda acrescentam um ovo…
Seu Adelino emergiu da apatia, comoveu-se, os olhos brilhando desta vez em sorriso aberto:
– Isso mesmo! Ovo cozido e ralado, azeitonas portuguesas, daquelas… Um santo, santíssimo prato! Mas, encarando o concreto:
– Essa gente aqui não tem a ciência, não tem a ciência!
– Espera aí, Seu Adelino, vamos ver no jornal se tem um bom filme de espionagem para o senhor se consolar.
Não tinha, infelizmente.

3. Domingo na Estrada – Crônica lírica.

– Descrição subjetiva da uma manhã. Impressões campestres. Intertextualidade com Guimarães Rosa.
– Reflexões – cotidiano – pacadismo.
– Linguagem poética. Narração em primeira pessoa.

Íntegra:

Do avião saltamos para a jardineira, a caminho da cidade. A princípio,
só o trajeto aborrecido, na pressa de chegar. Que fazer desses ermos
lobrigados de passagem, que nos sensibilizam a vista, e daqui a pouco esqueceremos
na contemplação de outras formas naturais menos secas? Há
uma lagoa na região, e não se deixa ver. De repente começamos
a sentir que essa terra humilde vai nos interessando em seu desconforto. O mato
dos barrancos perdeu o verde nativo; tudo ficou vermelho, amarelo ou pardo,
tocado de pó incansável. Como se chamam esses vegetais só
Riobaldo Tatarana sabe, e hei de consultá-lo na volta. A paisagem toca
pelo que não tem, pela pobreza calma. Não há imprevisto.
Nos pastos de grama pouca, só as grandes bossas dos cupins se expõem,
bichos imobilizados. E à paz do campo mineiro se ajunta, aprofundando-a, a paz do domingo mineiro.
Nunca será tão domingo como aqui, e domingos e domingos de eternidade
se concentram em vigorosa dominicalização. Não acontecer
nada, que beatitude! Deixar o mato crescer – mas o próprio mato foge à obrigação, e goza o domingo. Lá estão o
touro zebu e seu harém de nobres e modestas vacas – porque o zebu alia
à majestade indiana a placidez das Minas, e boi nenhum se fez tão
mineiro quanto esse, e bicho nenhum é tão mineiro quanto o boi,
em seu calado conhecimento da vida, sua participação no trabalho.
O rebanho amontoa-se em círculo, algumas reses em pé, outras deitadas,
chifres cumprimentando-se sem ruído. Parece um só boi espalhado,
maginando. Com o pincel do rabo executa o milenar movimento de repelir a mosca,
se é que não o pratica pelo prazer de abanar-se. Mas há
bois esparsos, bois solitários, que se postam junto a árvores,
aparentemente recolhidos; ou fitam o carro que levanta poeira sobre a poeira habitual, e ruminam não sei que novelas de boi.
A terra é um universal domingo, as estampas não se destacam, desaparecem
na série. Figura humana é que custa a aparecer. Só o garotinho
que brincava no barro, entre galinhas, e o braço de homem, no fundo escuro da casa desbeiçada, erguendo a garrafa.
Gente começa afinal a surgir, desembocando da ruazinha de arraial, em
caminhões alegres, com inscrições: “Fé em Deus
e pé na tábua”, “Chiquinha casa comigo”, e um ar
de festa que é também domingueiro, festa nas roupas claras, nos
lenços coloridos das cabeças; no riso largo, nos gritos. Rapazes
de calção, viajando de pé, aos berros. Vão disputar
a grande partida em um dos dez lugares da redondeza onde o futebol resolveu
o problema da felicidade repartindo-a com todos, do meritíssimo doutor
juiz de direito aos presos da cadeia, que assistem atrás de grades ou
por informação, e tomam conhecimento do gol do seu clube pelo
ruído particular dos foguetes. As moças vão também,
salve ó moças! Já não têm nenhum ar especificamente
montanhês, o cabelo aparado em pontas irregulares, a calça comprida
e justa internacionalizaram há muito o tipo feminino, as garotas não
são mais da França, da Turquia ou do Ceará, são
todas de capa de revista, e mesmo assim continuam sendo a bem-aventurança
e o licor da terra, e passam chispando no caminhão Fenemê, e desacatam
o policial do posto da divisa, e vão entoando o sagrado nome do clube e a vitória certa.
Há também o bêbado da estrada. Não é patético
como o dos poetas neo-românticos que exploram o gênero, é
simplesmente bêbado, sem pretensões, também ele universal
na pureza de sua irresponsabilidade. Está a mil sonhos do futebol, mas
a parada do caminhão para tomar água lhe comunica a chama do esporte, e ei-lo que engrola a exortação enérgica:
– Vocês me tragam a vitó… a vitóooria! Eu fico esperando a vit…
Todos aplaudem freneticamente. Mas as pernas arriam, e ele fica ali, desmanchado,
à sombra da goiabeira, dormindo na manhã de Minas Gerais…

4. Areia branca (Locus) – O comportamento humano. Reflexão. Enganar para sobreviver. A passividade das pessoas.

O Lirismo é sugerido pelo mesmo personagem que faz transmitir o teor
crítico da crônica: falta de escolas profissionalizantes. Erros do Governo.

Íntegra:

O lotação ia de Copacabana para o centro, com lugares vazios,
cada passageiro pensando em sua vida; é o gênero de transporte
onde menos viceja a flor da comunicação humana. Quando, em Botafogo, ouviu-se a voz de um senhor lá atrás:
– Olhe aqui, vou atender a você, mas não faça mais isso,
ouviu? é muito feio pedir dinheiro aos outros. Na sua idade, eu já dava duro e ajudava em casa.
E passou a nota ao rapazinho de quinze anos, se tanto, que a recolheu com humildade.
O homem continuava, agora dirigindo-se a outro passageiro:
– Está vendo? Fica essa garotada aí vivendo de expediente, encontra uns sujeitos como eu, que vão na conversa, e depois…
– Isso é um país sem solução, comentou o vizinho.
Não há escola profissional para os meninos, andam jogados ao deus-dará, enquanto o governo só faz besteira. Não vê o porta-aviões?
O rapazinho não parecia interessado na crítica ao Governo, e mudou
de lugar. Foi para junto de outro senhor e expôs-lhe o problema, baixinho.
– Como é?
– Areia Branca. Lá é minha terra. Tou querendo voltar, falta só 27 cruzeiros…
O homem puxou lentamente a carteira, lentamente extraiu uma nota, passou-a ao rapazinho.
– Está vendo? – comentou o senhor do fundo. – Aquele ali caiu também,
quem é que não cai? Aposto que esse menino não vai pedir
àquela senhora da esquerda. Mulher não vai na onda, só tem pena de aleijado e de velhinho.
De fato, o postulante deixou de lado a senhora e a moça que havia no
carro, e foi contar a história mais adiante (com êxito) a outro representante do sexo frágil, isto é, masculino.
– Oba! Já tenho 20, daqui a pouco posso ir para Areia Branca.
E foi sentar-se ao lado de outro jovem que, pelos cadernos de capa grossa na mão, se revelava colegial.
– Quer me ajudar? Então inteire minha passagem para Areia Branca.
Não era pedido; era recomendação, em tom natural, tão
natural que o estudante não discutiu. Sacou do bolso o macinho de notas
miúdas – dinheiro do sorvete e da volta, – contou-as uma por uma, e estendeu cinco.
– Se você quer ajudar, inteira logo. Mais dois.
O outro passou-lhe os dois, que esperara inutilmente salvar da requisição,
e, à guisa de agradecimento, o beneficiado esticou o dedo:
– Espia só o mar: que estouro! Areia Branca é do outro lado.
E levantou-se mais uma vez, foi ao motorista, curvou-se, passou-lhe o braço
nas costas, numa conversa particular e macia. O senhor de trás, moralista
e observador implacável, ia-lhe acompanhando as evoluções:
– Olha só o garoto. Aposto que cantou o motorista para uma carona.
O motorista – de queixo comprido, lembrando agradavelmente o velho atacante Ademir – sem volver o rosto, foi dizendo:
– Cai fora, coisinha.
– Eu não disse? – comentou o de trás, satisfeito com a própria agudeza.
O lotação parou, o meninote desceu. Ai, intervém a senhora, até então muda e queda como penedo:
– Garanto que agora ele vai tomar outro lotação para Copacabana, e repetir o golpe.
– Não duvido nada – secundou o moralista, meio desapontado porque não lhe havia ocorrido esse desenvolvimento.
O rapazinho atravessou a rua – era no contorno do Morro da Viúva – e parou à espera, na calçada.
– Vejam só – continuava exclamando o homem. – Vem com essa conversa de
Areia Branca, Areia Branca, um nome tão poético, lembra o Caymmi,
a gente não resiste mesmo. Se ele dissesse que queria voltar para Areia
Preta, essa não, eu pensava naquela praia do Espírito Santo, em
reumatismo, não soltava um níquel. Mas Areia Branca, esse moleque é impossível!

5. O outro marido – Crônica sutil, irônica.

Santos, casado 23 anos com Dona Laurinha. íntimos e desconhecidos. Descobre na Alfândega a outra família.

Adultério – falsidade – resignação.

6. Entre a orquídea e o presépio – Crônica descritiva.

A descrição do espaço remete a Itabira. Anonimato de servilismo. Alma boa.

Leva o leitor a dois poemas de Drummond: “Cidadezinha qualquer” e “Confidência de Itabirana”.

Narraçao em terceira pessoa.

7. Iniciativa – Altruísmo. Misericórdia. Dedicação. Põe em questionamento o sentimento de solidariedade humana.

Narração em primeira pessoa.

8. Modéstia – Crônica de reminiscência.

Humildade – Modéstia – Soberba.
Irônica a partir do título
Social

9. Dois no Corcovado – Amizade. Dificuldade de aproximar. Gerente e empregado. Descoberta de si mesmo.

10. Voluntário – Temática da solidariedade humana.

A linguagem se utiliza de expressões e gírias da fala gaúcha.
Diálogos em segunda pessoa verbal, próprio da oralidade dos gaúchos.

Fonte: Unievangélica – Carlos Lisboa

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