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O último voo do flamingo, de Mia Couto

by Lucas Gomes

Em O último voo do Flamingo, romance de Mia Couto, a editora optou por manter, inclusive no título,
a ortografia vigente em Moçambique. É uma obra em que pulsa uma grande força humanista: depois da guerra
de Independência e dos anos de guerrilha, Moçambique vive um momento de reestruturação social e
política.

A obra é abordagem sobre o período pós-guerra civil no país, uma ficção sobre os tempos em que estiveram
em Moçambique soldados da ONU integrados na missão de manutenção de paz. O romance narra estranhos
acontecimentos de uma pequena vila imaginária, Tizangara, ao sul do país.

O livro começa com um fato insólito: um pênis é encontrado no meio da rua de Tizangara. Mais um soldado
das Nações Unidas havia explodido e aquilo era a única coisa que restara dele.

A vila está cercada por um mistério: corpos de soldados estrangeiros que começam, subitamente, a explodir.
Um oficial das Nações Unidas, o italiano Massimo Risi, é destacado para investigar o caso. Tudo é contado
pelo tradutor destacado pelos poderes oficiais da vila para acompanhar o italiano. Bem, quase tudo. À
medida que os fatos se sucedem, outras vozes ganham espaço no texto, deslocando-se o foco narrativo para
outros personagens: Massimo Risi, Estêvão Jonas – o administrador da vila -, a velha-moça Temporina, a
prostituta Ana Deusqueira, o feiticeiro Zeca Andorinho e o velho Sulplício, o pai do narrador. Eles
apresentam suas versões dos fatos, ou contam sonhos ou lembranças essenciais para a compreensão dos
fatos – vôos sobre o tempo dos acontecimentos e o tempo da memória.

O mistério adensa-se. Os soldados da paz morreram ou foram mortos? Os outros personagens, dona Ermelinda
(a “administratriz”), Chupanga (o adjunto do administrador) e padre Muhando completam a atmosfera de
Tizungara, envolta em verdade e ficção, realidade e magia, natureza e sobrenatural, o mundo dos vivos e
o mundo dos mortos; e um presente que balança entre a força dos antepassados e a ausência de futuro.

Com toda a sabedoria da velha África, Mia Couto revela-nos, uma vez mais – na ironia, no sentido de humor,
no espírito crítico, na palavra cáustica e no comentário acerado, no recurso à metáfora e na carga cheia
de simbolismo da frase -, o seu absoluto domínio da escrita e da língua portuguesas, o conhecimento e o
amor profundos que tem e dedica a esse belíssimo e atormentado continente, neste novo romance, O
Último Voo do Flamingo
.

O autor sabe como ninguém manejar seu discurso literário ora fantástico, ora poético, ora divertido e
irônico:

“Há aqueles que nascem com defeito. Eu nasci por defeito. Explico: no meu parto não me extraíram todo,
por inteiro. Parte de mim ficou lá, grudada nas entranhas de minha mãe. Tanto isso aconteceu que ela não
me alcançava ver: olhava e não me enxergava. Essa parte de mim que estava nela me roubava de sua visão.
Ela não se conformava:
– Sou cega de si, mas hei-de encontrar modos de lhe ver!
A vida é assim: peixe vivo, mas só vive no correr da água. Quem quer prender esse peixe tem que o matar.
Só assim o possui em mão. Falo de tempo, falo de água. Os filhos se parecem com água andante, o
irrecuperável curso do tempo. Um rio tem data de nascimento?”

Para falar de uma vila onde “acontecimento era coisa que nunca sucedia”, e que só “os factos são
sobrenaturais”, Mia Couto parece tomado por um encantamento pela linguagem. Ele mistura num as culturas
tradicionais africanas e a cultura ocidental, o português “colonizador” com as variantes dialetais da
população moçambicana – há um glossário no final do livro.

Outros ingredientes são o uso de aforismos, desconstrução de provérbios e ditos populares (“contra os
factos tudo são argumentos”). Mia Couto “desarranja” a linguagem, em muitos momentos a aproximar-se de
Guimarães Rosa (“o motor nhenhenhou-se”) ou, mesmo, da sintaxe do poeta Manoel de Barros, já na parte
final do romance (“as sujidades se definitivam”), e da qual emerge a relação profunda entre o homem e a
terra.

A tangência das margens do realismo fantástico latino-americano ou, como sugere Mia Couto, o “realismo
animista”, na expressão do angolano Pepetela. Há Temporina, com o rosto de velha e corpo de moça (mas
que, em “flagrante de amor, juvenescia”); uma tia que, após morta, se transforma em louva-a-deus; um
personagem que, quando toca em mulher, suas mãos aquecem até ficarem como “carvão aceso”; outro que, ao
dormir, pendura os próprios ossos fora do corpo; determinados feitiços que faziam com que os enfeitiçados
emagrecessem até ficarem do tamanho de formiga. Diante desses acontecimentos, resta ao italiano Massimo
Risi, entre uma perplexidade e outra, temer pela veracidade do relatório que terá de entregar a seus
superiores (“na capital, a sede da missão da ONU espera por notícias concretas, explicações plausíveis. E
o que tinha ele esclarecido? Uma meia dúzia de estórias delirantes”).

Às vezes, na obra, predomina o sarcasmo, às vezes o espírito crítico, outras vezes ambos. Quando, por
exemplo, um pênis decepado é achado, chamam a prostituta Ana Deusqueira para “identificar o todo pela
parte”. Ou, em outra cena, o administrador relata: “Na véspera de cada visita, nós todos,
administradores, recebíamos a urgência: era preciso esconder os habitantes, varrer toda aquela pobreza”.
Mais ironia: contratado para traduzir, o próprio tradutor é desnecessário. Quando ele se apresenta ao
italiano, este comenta: “Eu posso falar e entender. Problema não é a língua. O que eu não entendo é esse
mundo daqui”.

A narrativa é poética, carregada de lirismo. Entre várias seqüências, percebemos aquela em que Massimo
Risi passa por um terreno minado como “Jesus se deslocou sobre as águas”. Podemos também acompanhar a mãe
do tradutor desfiando a estória dos flamingos que empurravam o sol para que o dia chegasse ao outro lado
do mundo.

Enfim, a obra redimensiona o olhar sobre Moçambique, um dos países mais pobres do mundo, recém-saído de
três décadas de guerra civil fratricida, que matou ao menos 16 milhões de pessoas nesse período (em 2000,
quando o livro foi publicado, comemorava-se os 25 anos de independência de Moçambique).

Mia Couto soube criar o suspense para que passemos toda a narrativa tentando descobrir a causa da
explosão dos soldados.

Trecho do livro

Capítulo décimo sétimo

O PASSARINHO NA BOCA DO CROCODILO
Não me basta ter um sonho.

Eu quero ser um sonho.
(Palavras de Ana Deusqueira)

Entrei no quarto de Massimo e uma multidão de papeladas estava espalhada em todos os móveis.
– Não me diga que desbotaram as letras outra vez?!
– Não.
Me assaltou então um frio. O italiano empacotava suas coisas. Se retirava. Uma inesperada tristeza me
sombreou. Eu já me afectuava ao estrangeiro?
– Vai partir?
O homem confirmou, apenas com um aceno de cabeça. Eu o espicacei: ia desistir, baixar as mãos da obra?
Abandonava a sua ambição de promoção assim, no meio do caminho?
– Que caminho?
Eu não sabia responder. Ele tinha razão. Havia, quando muito, um labirinto. Mais tempo ali, mais ele
ficaria perdido. Assim, arrumando suas roupas na mala, o estrangeiro parecia dobrar a sua própria alma.
Num certo momento, parou, com um sorriso estranho. Por que se ria?
– Você não diz que eu devia era contar estórias? Pois me lembro agora de uma.
– Finalmente uma estória! Conte, Massimo.
– Não é uma estória, é uma lembrança. Recordei-me do que faziam com meu avô, quando ele envelheceu lá na
Itália.
– O que faziam?
À noite levavam o velho à prostituta. Chamavam a meretriz à parte e lhe pediam para ela lhe dar ternura.
Simples carinho sem anexos nem sexo. Afinal, o prazo do velho já passara. A meretriz que simplesmente
cantasse para o adormecer. Assim combinavam com ela, sem que o velho se apercebesse. E pagavam ainda mais
para que ela, no dia seguinte, corroborasse com a mentira do sucesso dele. Tanto vigor nem os mais
jovens! Familiares e prostituta gabavam a frescura do velho, participando na farsa. O que sucedeu, com os
anos, é que a moça se converteu e se dedicou, em exclusividade, ao idoso avô. Nunca mais nenhum homem lhe
foi conhecido. Até que, um dia, a prostituta apareceu grávida. Ninguém levantava dúvida: a criança seria
do avô.
E você, Massimo, se lembra disto porquê?
– Essa criança sou eu.
Preferi nada dizer. Nem me parecia verdade, aquela confissão dele. Porquê me entregava a mim aquele
segredo dele? Mas o italiano prosseguia: que havia um destino, sim. Esse destino o tinha conduzido até
ali, o tinha atirado para aqueles confins e lhe entregara, inclusive, uma prostituta que guardava
segredos.
– A mão de um bom santo me protegeu.
Só agora avaliava essa protecção. Noites seguidas, ele não dormira com medo de estourar como os outros.
Não sabia eu porquê ele tinha sido poupado? Se ele ficara inexplodível era porque beneficiara de uma
bondosa protecção. Sobrevivera graças a um amor.
– E acredita nisso, Massimo? Acredita nessas nossas coisas?
O importante não era a verdade do assunto. Contava era ter havido alguém que intercedera por ele. Essa
era a única verdade que lhe interessava.
– E quem você acha que foi?
Acreditava ter sido Temporina. Seu coração lhe dizia isso. Eu sabia que a moça-velha não podia encomendar
um feitiço. Nenhuma mulher pode chamar serviço de curandeiro sem chegar a ser mãe.
– Não foi Temporina. Foi outra.
Ele sorriu, certo que tinha sido Temporina. Continuou arrumando seus haveres. No momento, uma cassete
lhe parecia sobrar. Lembrou-se: era um depoimento de Ana. Tinha ali uma gravação que ele sozinho
registara. Numa tarde em que eu fora à administração o italiano visitara a prostituta.
– Afinal, você anda por aí sem mim? Sem o seu tradutor oficial?
O europeu se envergonhou. Começou a justificar-se, mas eu o dispensei da culpa. Massimo ainda hesitou.
Porém, acabou ligando o gravador e os dois nos calámos a escutar a voz de Ana Deusqueira:
O senhor se cuide, Massimo Risi: a boca é grande e os olhos são pequenos. Ou como
se diz aqui: o burro come espinhos com a sua língua suave. É que isto aqui é mais
perigoso que o senhor pensa. Perigoso porquê? O senhor vai descobrir como o pato.
Sim, como pato que descobre a dureza das coisas só depois de partir o bico.
É que no meio de tudo há sangue, monos a quem não cobriram o rosto. Esses mortos dormiram no relento,
impurificaram a noite. Para o senhor, com certeza, isso não traz gravidade. Aqui não é a morte, mas os
mortos que importam. Entende? Ainda vai morrer mais gente, lhe asseguro. Não faça essa cara. Eu espero
que a desgraça lhe passe nas suas costas, a si que me parece um homem bom.
Fui mandada para aqui pela Operação Produção. Quem se lembra disso? Atafulharam camiões com putas,
ladrões, gente honesta à mistura e mandaram para o mais longe possível. Tudo de uma noite para o dia,
sem aviso, sem despedida. Quando se quer limpar uma nação só se produzem sujidades.
Em Tizangara até me receberam bem. Esta gente se afastava, como não querendo ser contaminada. Contudo,
não me maltrataram. No início eu me sentia como numa prisão, sem grades, mas cercada por todo o lado. Eu
estava como o prisioneiro que encontra no carcereiro o único ser com quem trocar as humanidades. E
pergunto: por que nos ensinaram essa merda de sermos humanos? Seria melhor sermos bichos, tudo instinto.
Podermos violar, morder, matar. Sem culpa, sem juízo, sem perdão. A desgraça é esta: só uns poucos
aprenderam a lição da humanidade.
Certa vez, fugi. Meti-me pelos matos até lá onde a floresta se despenteia mesmo sem nenhum vento. Fiquei
tombada como mona, junto a uma ponte no leito seco do rio. Senti que chegava alguém, me levantava em seus
braços. Eu estava leve como entranha de morcego. Fui levada para uma casa linda, nem meus olhos haviam
sido ensinados a contemplar tais belezas. Nunca identifiquei quem me tratava: eu estava exausta, tudo me
chegava entre névoas e tonturas. Depois me deixaram na igreja quando eu já podia comigo. Hoje, creio que
foi tudo sonho. Essa casa nunca houve. E, se houve uma tal casa, ela ruiu, desabada em poeira sem
lembrança. É que todas as mulheres do mundo dormem ao relento. Como se todas fossem viúvas e se
sujeitassem aos rituais da purificação. Como se todas as casas tivessem adoecido. E o luto se estendesse
por todo o mundo. Às vezes, em breves momentos de alegria, nós fazemos de conta que repousamos sobre esse
tecto perdido. Às vezes me parece reencontrar essa voz que me salvou, essa casa que me abrigou.
Estes poderosos de Tizangara têm medo de suas próprias pequenidades. Estão cercados, em seu desejo de
serem ricos. Porque o povo não lhes perdoa o facto de eles não repartirem riquezas. A moral aqui é assim:
enriquece, sim, mas nunca sozinho. São perseguidos pelos pobres de dentro, desrespeitados pelos ricos de
fora. Tenho pena deles, coitados, sempre moleques.
Assim, aprendi minhas sabedorias: passo como penumbra no poente. Sou pessoa muito cabida. Como aqueles
passaritos que comem na boca do crocodilo. Lhe aparo sujidades nos dentes e ele me aceita. Me protejo
fazendo morada no centro do perigo. Minha vida é um acerto de favores, um negócio entre dentes e maxilas
dos matadores.
Aprenda isto, amigo. Sabe por que gostei de si? Foi quando lhe vi atravessar a estrada, o modo como
andava. Um homem se pode medir pelo jeito como anda. Você caminhava, timiudinho, faz conta um menino que
sempre se dirige para a lição. Foi isso que apreciei. O senhor é um homem bom, eu vi des-de-desde. Lembra
que falei consigo no primeiro dia da sua chegada? Lá de onde o senhor vem também há os bons. E isso me
basta para eu ter esperança. Nem que seja só um. Unzinho que seja, me basta.
Ao vê-lo, logo no primeiro dia eu disse para mim: este vai-se salvar. Porque aqui você precisa de calar a
sua sabedoria para sobreviver. Conhece a diferença entre o sábio branco e o sábio preto? A sabedoria do
branco mede-se pela pressa com que responde. Entre nós o mais sábio é aquele que mais demora a responder.
Alguns são tão sábios que nunca respondem.
Faz bem, Massimo: não aspire ser centro de nada. A importância aqui é muito mortal. Veja, por exemplo,
essas avezitas que pousam no dorso dos hipopótamos. Sua grandeza é o seu tamanho mínimo. É essa a nossa
arte, nossa maneira de nos fazermos maiores: catando nas costas dos poderosos.
Desculpa, tenho que interromper essa minha declaração, mas você me está atrapalhar. Está-me olhar assim,
porquê? Me está desejar, não é Massimo? Mas não pode ser. Com você não pode ser. Se me tocar você vai
morrer.
– Eu sei me prevenir, trouxe o preservativo.
– Não é isso. Esta é outra doença.
– Então morro como?
– As mulheres aqui foram tratadas…
– Tratadas como?
– Deixe isso, Massimo. Deixe, depois alguém lhe há-de explicar tudo.
Quem sabe, mais tarde, nos encontraremos, longe de tudo isto? Agora, vou só lhe contar como sucedeu
naquela noite com o zambiano. Nunca contei isto a ninguém, você é o primeiro a saber o que aconteceu.
Pois, esse soldado me visitou sem nenhumas maneiras. O homem nem perdeu tempo com beijo. Você sabe como
é a minha gente. Me subiu assim, sem preparo, mais salivoso que cachorro. E ali se serviu, todo por cima
de mim, completamente nu, excepto a boina na cabeça. Transpirado, aguando-se pela pele, ia gemendo,
arfalhudo. Suspiros e gemidos iam crescendo, cada mais frequentes, eu já aliviada por ver a coisa a
terminar. Foi nesse instante: em vez de se vir, o tipo rebentou-se, todo estampifado. Me assustei, quase
de morrer. Fechei os olhos. Eu já tinha ouvido falar disso, dos estrangeiros explodirem quando montam nas
meninas. Porém, nunca tinha acontecido comigo, nunca. Eu não queria nem abrir os olhos, ver a sangraria
toda espalhada, tripas dependuradas nos candeeiros. Mas, afinal, não tive que limpar nada. O homem
explodira como um balão. Aquele vivente se tinha espatifurado sem vestígio.
E agora se vá. Vire costas e não volte para trás. Nem me espreite. Pois você me veria lhe deitando olho
desejoso. Vá, que um outro tempo nos há-de visitar.

(Continua…)

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