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Histórias sem data, de Machado de Assis

by Lucas Gomes

Análise da obra

Histórias sem data reúne 18 contos de Machado de Assis publicados ao longo de 1883 em periódicos cariocas.

A escolha do título, “Histórias sem Data”, de acordo com o próprio Machado de Assis no prefácio de advertência da 1ª edição:

De todos os contos que aqui se acham há dous que efetivamente não levam datas expressas; os outros a têm, de maneira que este título Histórias sem Data parecerá a alguns ininteligível, ou vago. Supondo, porém,que o meu fim é definir estas páginas como tratando, em substância, de cousas que não são especialmente do dia, ou de um certo dia, penso que o título está explicado. E é o pior que lhe pode acontecer, pois o melhor dos títulos é ainda aquele que não precisa de explicação. M. de A.

À primeira vista, como num prefácio normal, Machado de Assis anuncia sua independência de seu tempo, sua extemporaneidade. Com efeito, mais de um século decorrido, verificamos que o tempo atua a seu favor, como um aliado que cronicamente o desvela e fortalece. Fato indiscutível é que o autor não nos quer presos a qualquer data, e nem sequer à descrição que faz de seus próprios personagens.

Histórias sem Data foi publicado em 1884, três anos depois de Memórias póstumas de Brás Cubas e quando o autor provavelmente já idealizava o romance Quincas Borba. Este quarto livro de contos tem todos os ingredientes que fazem de Machado de Assis um contista modelar. Desde os chamados “perfis femininos” até sondagens mais profundas da alma humana, em que investiga, recorrentemente, a diferença entre a “alma exterior” e a “alma interior”, como já definira o narrador Jacobina, de O Espelho (Papéis avulsos, 1882), passamos por histórias de loucura, tema freqüente do autor, e somos levados por diferentes narradores, a passear pelas ruas e bairros de um Rio de Janeiro que não existe mais.

Os contos de Histórias sem data são:

A Igreja do Diabo – Este conto presenta a história do dia em que o diabo resolveu fundar uma igreja, a fim de concorrer com as diversas religiões. Leia mais…

O Lapso – Neste conto, o protagonista, Dr. Jeremias Halma, é um médico que trata exatamente das “doenças da alma”, podendo figurar entre aqueles personagens machadianos dotados de traços semelhantes aos de um analista.

Último Capítulo – O conto Último Capítulo é o bilhete de um suicida.

Narrado em primeira pessoa, Machado de Assis nos traz a figura sombria do bacharel em direito, Matias Deodato de Castro e Melo, de 51 anos de idade, que está prestes a cometer o suicídio, no ano de 1871, e começa a explicar a razão dos termos de seu testamento, no qual dispõe que sejam seus objetos e um casebre que possui vendidos, e o dinheiro revertido na compra de sapatos e botas novas, a serem distribuídos conforme indicação sua.

Mais precisamente, Matias Deodato, homem amargurado, que se define como “um grande caipora, o mais caipora de todos os homens”, sintetiza, nas entrelinhas, as agruras de uma vida marcada por reveses que vão desde a infância solitária a uma carreira sem brilhantismo, passando pelo casamento insosso e pela tragédia de um filho tão esperado que nasceu morto, culminando com a descoberta – após a morte da mulher Rufina, vítima de “uma febre perniciosa” –, que ela o traíra com o amigo Gonçalves, confidente e quase compadre.

O caiporismo foi comigo, na garupa do burro, e onde eu me apeei, apeou-se ele também. Vi-lhe o dedo em tudo, nas demandas que não vinham, nas que vinham e valiam pouco ou nada, e nas que, valendo alguma coisa, eram invariavelmente perdidas. Assim, Matias Deodato resume a falta de sorte que o acompanhou por toda a vida, até que, cansado e sem esperança de ser feliz, desiste de viver. E o conto bem poderia chamar-se “O caipora”, não fosse a descoberta que nosso amigo faz enquanto se prepara para o “mergulho na eternidade”.

Debruçado na janela, vê passar um homem conhecidamente vítima de vários infortúnios, que segue, no entanto, risonho, contemplando os sapatos de verniz bem talhados, conforme observa nosso caipora. Ia alegre; via-se lhe no rosto a expressão de bem-aventurança. Evidentemente era feliz; e, talvez, não tivesse almoçado; talvez mesmo não levasse um vintém no bolso. Mas ia feliz, e contemplava as botas (…) nada vale, para ele, um par de botas, comenta ele, concluindo assim que a felicidade é um par de botas.

Daí a razão do testamento de Matias Deodato, que acredita, com a ação, fazer um certo número de venturosos, e conclui sua narrativa com a expressão Eia, caiporas! Que a minha última vontade seja cumprida. Boa noite, e calçai-vos!.

Cantiga de Esponsais – Tem como tema principal a música, o ato da criação musical. Leia mais…

Singular Ocorrência – Este conto é o relato de um homem a um amigo sobre o caso extraconjugal de um outro amigo. Ele conta que esse amigo e a amante eram apaixonados (ela abandonara a prostituição por ele) e que, numa única vez, o havia traído. E foi este caso que gerou um grande turbilhão emocional que quase acabou no rompimento e suicídio da amante, mas eles por fim se reconciliaram e viveram felizes até que ele mudou de província e morreu antes de voltar.

A traição de uma ex-prostituta, de caráter irreprochável, em relação ao amante, é narrada sem que nenhum dos interlocutores do conto consiga encontrar uma explicação racional para o fato.

Em Singular Ocorrência o autor afasta-se do narrador e deixa o leitor identificar-se consigo mesmo na pessoa do herói-narrador.

Não existe neste conto um narrador explícito, entretanto, no diálogo desenvolvido pelas personagens evidencia que existe uma outra narrativa dentro da primeira, pois fala da história de uma mulher que foi avistada pelas personagens que realizam o diálogo inicial. Portanto, Machado de Assis soube utilizar-se da técnica narrativa do diálogo com perfeição, não havendo, neste caso, a necessidade de utilização de um narrador interferindo na história vivida pelas personagens. Sem, no entanto, deixar de fazer uso da interferência e juízos de valor quando passa a uma das personagens o papel de narrador para contar a história de Marocas.

Galeria Póstuma – O conto narra a história de um rapaz que encontra o diário de seu tio, falecido recentemente, e descobre a surpreendente opinião do homem sobre as pessoas que o cercavam, incluindo o rapaz. É uma crítica à hipocrisia.

Capítulo dos Chapéus – Neste conto Machado de Assis discorre sobre um desejo reprimido que reaparece, deslocado, mas que perturba a jovem Mariana. Leia mais…

Conto Alexandrino – Conto em que o cientificismo naturalista da época vem satirizado, onde Machado de Assis busca dar uma força de realidade à sua ficção. Seu interesse não é meramente realizar um exercício formal, mas dar “realidade à invenção”.

Em Conto Alexandrino, os protagonistas Pitias e Stroibus são cientistas, que vão para Alexandria em busca do reconhecimento e a ação principal envolve uma pesquisa científica. Eles vivisseccionam animais e seres humanos em busca da origem da desonestidade. Em nome da ciência, Stroibus mata lentamente milhares de ratos. Procuram comprovar a teoria de que, ao beber o sangue de um animal, o homem adquiria a característica moral deste. Ao tomar o sangue de uma aranha, o homem desenvolveria o dom da música.

Primas de Sapucaia – Em Primas de Sapucaia o narrador nos convida explicitamente a associações que se ajustem às nossas circunstâncias, para que compreendamos, “calculemos” melhor. A uma bela hora, ele pede que calculemos o seu enfado diante de uma situação involuntariamente ocasionada por essas “fortuitas” primas, para a seguir afirmar:

Não será difícil calculá-lo, porque essas primas de Sapucaia tomam todas as formas, e o leitor, se não as teve de um modo, teve-as de outro. Umas vezes copiam o ar confidencial de um cavalheiro informado da última crise do ministério, de todas as causas aparentes ou secretas, distensões novas ou antigas, interesses agravados, conspiração, crise.

Uma Senhora – No conto Uma Senhora, o autor, Nachado de Assis, conta as dificuldades de uma jovem mulher, dona Camila, de aceitar a velhice, mostrando as artimanhas que faz, de maneira inconsciente, para evitar que a filha case, vendo só defeitos nos pretendentes. Até que, por fim, sem outro remédio, verga-se às imposições da vida, assumindo-se como avó enlevada. Leia mais…

Anedota Pecuniária – Este conto é uma crítica a ganância. Nele um homem “vende” suas sobrinhas aos homens que as amam, por causa de sua fascinação pelo dinheiro.

Fulano – Beltrão é um homem que vai aos poucos se tornando mais um homem público que privado após receber elogios públicos e acaba deixando seu dinheiro para a posteridade e não a família.

A Segunda Vida – Machado de Assis apresenta em A Segunda Vida a sua versão do mito de Er, como descrito por Sócrates no Livro X da República. Trata-se da história de um certo José Maria que, após sua morte, procura o Monsenhor Caldas alegando ter passado por outras vidas. O Monsenhor percebe que é um maluco e manda um serviçal chamar a polícia. Enquanto isso, vai distraindo o visitante. Ele alega que falecera no dia 20 de março de 1860, quando tinha 68 anos. Como era a milésima alma de uma seqüência, foi premiado com o retorno à Terra. Ele declarou então que lhe era “indiferente nascer mendigo ou potentado. Escolheu nascer experiente.

Apesar do “riso universal” com que os anjos ouviram o seu desejo, ele teimou e conseguiu o que queria.

Noite de Almirante – O conto Noite de almirante foi publicado em 10 de fevereiro de 1884, no Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, e depois incluso na coletânea Histórias sem Data, do mesmo ano. Leia mais…

Manuscrito de um Sacristão

Ex-Cathedra

A Senhora do Galvão – Em A Senhora do Galvão conhece-se o caso de uma mulher, Maria Olímpia, com a “vocação da vida exterior”, que se sente ameaçada em seu casamento com um advogado depois que começa a receber cartas anônimas insinuando amores de seu marido com a jovem viúva de um brigadeiro.

No conto Maria Olímpia recebe tantas cartas pelo correio, que o marido suspeita tratar-se de correspondência amorosa entre a esposa e um provável amante e a obriga a entregar-lhe as cartas. As cartas são, no entanto, cartas anônimas que acusam não a mulher mas o marido. A cena é narrada com um rigor microscópio:

Galvão abriu a carta e deitou-lhe os olhos ávidos. Ela enterrou a cabeça na cintura, para ver de perto a franja do vestido. Não o viu empalidecer. Quando ele, depois de alguns minutos, proferiu duas ou três palavras, tinha já a fisionomia composta e um esboço de sorriso. Mas a mulher, que o não adivinhava, respondeu ainda de cabeça baixa; só a levantou daí a três ou quatro minutos, e não para fitá-lo de uma vez, mas aos pedaços, como se temesse descobrir-lhe nos olhos a confirmação do anônimo. Vendo-lhe, ao contrário, um sorriso, achou que era o da inocência, e falou de outra coisa.”

Apesar da denúncia, a instituição do casamento permanece intocável. O “curto-circuito emocional” provocado pela presença de um amante na relação de propriedade que se firma com o casamento, não ocasiona, na versão feminina de descoberta de uma amante, reações radicais de rompimento, semelhantes às tomadas por Vilela, em A Cartomante, e por Bentinho, em Dom Casmurro.

As Academias de Sião – Em As academias de Sião o fantástico explícito se traveste de situações alegóricas, um recurso muito usado pelo autor em suas intermitentes incursões ao fantástico. A intenção inicial, no caso, é satirizar as acadêmicas literárias e científicas, tão em voga em fins do século XIX, mas o conto acaba tendo mais efetividade na situação prática vivida pelos dois personagens principais. Pois eles resolvem ‘trocar’ se sexo: um rei passa a ser mulher e uma rainha assume o papel masculino dentro da trama.

Machado de Assis tem o objetivo de pôr a descoberto a problemática do comportamento humano. Ao enfocar a troca de identidade entre a princesa Kinara e o rei Kalapanko, o autor delineia a cruel ambição do indivíduo pelo poder. Se por um lado a morte é termo inevitável, a perfídia caracteriza a verdadeira ruptura de lucidez. É nesse plano que vão emergir, no pano das idéias, prováveis sentimentos sob os quais o mundo é regido.

Kinara, em corpo de rei, transcende as emoções humanas e descobre que mesmo aqueles a quem se eleva com valores de notoriedade, sugerem controvérsias quando o assunto é virtude. Os intelectuais surgem, então, com o triunfo de serem “o arroz da ciência e a luminária do mundo”. Machado, com extrema sutileza, ao metamorfosear corpo e alma, destrona valores ditos sociais para entronizar o que realmente vai no pensamento humano: a hipocrisia, a mentira, a injúria, a falsidade, a traição.

Se U-Tong, também personagem do conto, denuncia a todos como sendo pulhas do reino, também ele o é, porque esquece que está igualmente inserido no contexto social. E como entender das transformações que ocorrem no coração daqueles que, na primeira oportunidade de exercerem o poder, se tornam mandatários?

Machado de Assis mistura ficção e realidade num fascinante jogo de idéias ao trazer a figura de Kalapanko às vistas do leitor. Os personagens são a legitimidade das contradições humanas.

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