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Livro sobre nada, de Manoel de Barros

by Lucas Gomes

Livro sobre Nada

, de Manoel de Barros, é um livro de poesia e prosa,
de poesia em prosa, de “pensamentos” e fragmentos. Um livro diferente, sem um
gênero definido.

Na abertura de sua obra, diz o poeta:

[…]o nada de meu livro é nada mesmo. É coisa nenhuma por escrito: um alarme
para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso
de veludo, etc etc. O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer
coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora.

Com essas palavras, o autor quebra as expectativas em relação ao niilismo e reduz
o nada à palavra “nada”, materializando-a para, em seguida, desmaterializá-la: a
palavra incapaz de ocupar o lugar de uma imagem. O antesmente verbal: a despalavra
mesmo, segundo o desejo e a esperança do poeta.

É quando lembramos que o território em decurso de investigação assenta-se na poesia,
organização muito especial de signos que se estabelece, particularmente, em função
da subversão dos elementos componentes da ordem lingüística. Nesta direção, o poeta
trilha a senda da transgressão verbal, dos deslimites do discurso.

Logo no primeiro poema deste livro ouvimos o eu lírico dizer: As coisas tinham
para nós uma desutilidade poética. / Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o
nosso dessaber.
E não só isto. Antes mesmo de iniciar seu livro, o próprio
autor anuncia em seu “Pretexto”: “(…)O que eu queria era fazer brinquedos com
as palavras. Fazer coisas desúteis(…)” A “desutilidade” , o “dessaber” , o
“desúteis” são uma freqüente na obra de Manoel de Barros.

O texto é pouco mas denso, uma grande metáfora, na verdade, para falar apenas
de uma das muitas figuras de linguagem usadas pelo autor. Figuras com as quais
consegue boas visões poéticas. Mas também emprega muitas palavras não usuais.
Isso não facilita a compreensão, que já é difícil, porque Livro sobre Nada
não é um livro comum, o autor avisa, no início, que queria um livro que se
sustentasse só pelo estilo. Talvez tenha conseguido este objetivo.

Por outro lado, o fato de usar palavras desconhecidas de grande parte dos leitores
é um laboratório no mínimo interessante, pois além de forçar o leitor a ampliar
o seu vocabulário, embora não vá usar aquelas palavras nem na sua fala nem
na sua escrita, os significados das figuras construídas são originais e singulares,
beirando o incompreensível. E realmente resultam num estilo próprio, cumprindo
outro objetivo do autor, qual seja o de “fazer brinquedos com as palavras”.
Para isso, ele inventa palavras, também, deixando a poesia ou a prosa mais incomum,
ou, como ele mesmo diz, “coisa nenhuma por escrito” ou “um abridor de amanhecer”.

O Pretexto de Livro sobre Nada nos conduz, na esfera da produção de sentido
e em continuidade aos efeitos provocados pelo título da obra, ao próprio non
sense, à seara do paradoxo, a um silêncio, portanto. Ora, este silêncio se evidencia
(e se diferencia) na medida em que sucedemos à leitura dos capítulos “Arte de
infantilizar formigas”, “Desejar ser”, “O livro sobre nada” e “Os Outros: o
melhor de mim sou Eles”.

O poema “A arte de infantilizar formigas” tem um alto grau do jogo de palavras
instaurado para criar uma realidade própria:

Depois de ter entrado para rã, para árvore, para pedra
– meu avô começou a dar germínios
Queria ter filhos com uma árvore.
Sonhava de pegar um casal de lobisomem para ir
vender na cidade.
Meu avô ampliava a solidão.
No fim da tarde, nossa mãe aparecia nos fundos do
quintal : Meus filhos, o dia já envelheceu, entrem pra
dentro.
Um lagarto atravessou meu olho e entrou para o mato.
Se diz que o lagarto entrou nas folhas, que folhou.
Aí a nossa mãe deu entidade pessoal ao dia.
Ela deu ser ao dia,
e Ele envelheceu como um homem envelhece.
Talvez fosse a maneira
Que a mãe encontrou para aumentar
as pessoas daquele lugar
que era lacuna de gente.

É notório no discurso a forte carga emotiva que o “avô” possui em relação à
natureza, pois são incorporados aos elementos da mãe terra como a rã (animal),
a árvore (vegetal) e a pedra (mineral), havendo uma nítida integração com
esses seres. Desta forma, o avô passa “a dar germínios”, mostrando a idéia
de fertilidade. Tal idéia sobre fertilidade é expressa através da anunciação
de seus extravagantes desejos como notamos nos versos nº 3, 4 e 5.

Queria ter filhos com uma árvore. / Sonhava de pegar um casal de
lobisomem para ir / vender na cidade.

Nota-se que além da união mística do avô com a árvore (“queria ter filhos
com uma árvore”), é empregado o verbo “sonhar” (“sonhava”) que pode ser
visto como uma seqüência de eventos psíquicos ocorridos durante o sono,
ou como um desejo e aspiração. Essa é uma forma de mostrar os devaneios
que perpassavam a mente do avô, quando contemplava a imensurável natureza
presente em sua vida.

Quando o avô menciona que “sonhava de pegar um casal de lobisomem”, nos dá
uma idéia alógica, pois a expressão “lobisomem” origina-se do latim
lupus homo, homem lobo, gênero masculino. Já o termo “casal” nos
remete à idéia da união entre o macho e a fêmea. De fato, o eu lírico
desconstrói a lenda, a fim de que haja procriação.

Na seqüência, quando é dita a finalidade desta ação, “para ir / vender a cidade”,
nota-se embutida a noção de comércio que remete a toda e qualquer cidade.
Dessa forma, o poema estabelece uma forte oposição entre o primitivo (“lobisomem”)
e o não primitivo (“cidade”) que o avô deseja romper.

No verso nº 6, “Meu avô ampliava a solidão”, o avô surge isoladamente, em
liberdade, fato em que explica todos os delírios marcados pelo eu lírico. Dessa
forma, o avô apesar de ser um membro da família, apresenta-se distinto de um
personagem do cotidiano. O avô parece se isolar da família pelas suas
capacidades e qualidades, as quais ele quer estender aos outros, por isso quer
ter filhos com uma árvore, vender um casal de lobisomem: afinal, cultivar a
inútil poesia.

No que apresenta o verso nº 7, tem-se outra indicação temporal “no fim da tarde”
que remete a uma rotina, conforme expressa o verbo aparecer, núcleo (“aparecia”),
núcleo da oração. É interessante ressaltar o aparecimento de “nossa mãe” que,
ao contrário de “meu avô”, apresenta-se antecedida pelo pronome possessivo em
primeira pessoa do plural. Daí pode-se inferir que o “avô” materializa a
liberdade do eu lírico, já a “mãe”, os limites.

No tocante aos versos nº 8 e 9: “Meus filhos, o dia já envelheceu, entrem para
dentro”, observa-se um processo de personificação do dia (prosopopéia) que dá vida
ao dia, além do pleonasmos vicioso “entrem para dentro”, típico da linguagem
coloquial. Nota-se a expressividade do eu lírico por ser fiel em relação à linguagem
da mãe, refletindo grande autenticidade dessa situação cotidiana.

Nos versos seguintes temos: Um lagarto atravessou meu olho e entrou para o mato /
Se diz que o lagarto entrou nas folhas, que folhou.
Primeiro, quando se diz
“atravessou o olho” é uma metáfora feita a percepção intelectual do eu lírico
(a imaginação poética). E o mato, por sua vez, representa o terreno inculto (a
escrita poética). Enfim, nota-se no verso nº 11 a ambigüidade no vocábulo “folha”,
pois tanto pode se referir a uma parte das plantas, como ao papel que serve para
à escrita.

Sendo assim, o primeiro capítulo “Arte de infantilizar formigas” dá início à
lista de “inconexos”, apresenta passagens da infância do autor. A relação com
o universo infantil é essencial nesta parte do livro e vai insinuar vários
fatores, entre eles, a valorização da pequenez, da simplicidade, das
insignificâncias (o nada?). Manoel dignifica “coisinhas sem santidade” como
os “urinóis enferrujados” apregoados pelo avô (que era, aliás, “o próprio
indizível pessoal”), bem como garças, rolinhas, rãs, lagartos, trastes,
formigas, violetas e outras “coisas imprestáveis”.

Aqui, o escritor se vale bastante do prefixo negativante “des” para caracterizar
o paroxismo da ilogicidade (em cuja base, sabemos, está o seu nada-tudo) como
podem atestar os dois primeiros versos do livro, após o “Pretexto”:

As coisas tinham para nós uma desutilidade poética.
Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber.

Segue promovendo mais sobressaltos por meio da confecção de “brinquedos com
palavras”. Para tanto, “o truque era só virar bocó” (primeira menção linear
aos loucos, os esquizos tão distantes dos ditames da representação, este tema
é central na última parte do livro). Como, talvez, passatempo lingüístico,
observe-se o trecho que faz referência ao capítulo: “Para infantilizar formigas
é só pingar um pouquinho de água no coração delas”. Aqui, cabe propor que estas
formigas sejam mesmo os signos verbais, que precisariam ser infantilizados (eis
o ponto de máximo da relação com o universo infantil: a criança é incapaz de
entender as palavras como representações do mundo, daí sua facilidade em delas
fazer “brinquedos”) mediante uma imagem (“pingar um pouquinho de água no coração”)
que se pode traduzir de diversas formas, mas que invariavelmente verterá numa
impossibilidade. Trata-se de uma operação metalingüística em que o poeta nos
faz chegar à própria arte que tece, uma “Arte de infantilizar formigas”.

Esta consciência do signo poético e de todo o seu potencial irrompe, transborda
pelos significantes de “Desejar Ser”. Na epígrafe do capítulo, Barros invoca
Vieira em suas “Paixões Humanas”:

O maior apetite do homem é desejar ser. Se os olhos vêem com amor o que não
é, tem ser.

Em suma, o homem só será (homem), possibilidade inscrita na esfera do desejo
e do alimento, isto é, daquilo que vai movimentar a condição humana, quando
ele for capaz de enxergar não o que é, mas justamente o que não é. E, para tanto,
seu olhar não pode ser qualquer um, mas um olhar com amor. Se lembrarmos que
a poesia é exatamente quando e até onde ela consegue não ser, fundamento que marca
o signo poético e o traveste de profunda humanidade, temos que considerar que o
homem é poesia, ou que a poesia é propriamente humana, segundo a bela epígrafe.

Na medida em que esta parte da obra é metalingüística, isto é, a poesia fala, dá e
apresenta a própria trama poética (conforme um duplo de linguagem), temos o homem
falando de sua precisa humanidade, na proporção em que a tece e a demonstra na malha
dos versos.

O primeiro poema se constitui de um único verso, e diz:

Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.

O que indica, entre outras leituras, uma possível experimentação da perplexidade,
do espanto, daquilo capaz de nos deixar atônitos.

É uma advertência, uma informação que devemos levar até o fim deste tópico.
Vejamos o sexto cântico:

Carrego meus primórdios num andor.
Minha voz tem um vício de fontes.
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas ainda urinam na perna.
Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos.
Quando a criança garatuja o verbo para falar o que não tem.
Pegar no estame do som.
Ser a voz de um lagarto escurecido.
Abrir um descortínio para o arcano.

O primeiro verso faz referência aos primórdios, em segura associação à era adâmica,
da não-representação. Pouco depois, o poeta insinua algo como uma morte, caminho
para um fim que, antes, seria (re)nascimento, uma vez que deseja “avançar para
o começo”, os primódios que há pouco mencionara. Por este retorno às origens,
o reencontro com o universo infantil ou mesmo dos homens primitivos é fato asseverado
em todos os versos seguintes. É quando tornar-se-á factível, “Pegar no estame
do som” e “Ser a voz de um lagarto escurecido”, choques semânticos que novamente
nos jogam, conforme alertou, na perplexidade, no paradoxo. Contudo, todas estas
impossibilidades são efetivamente afirmadas pela substância poética, desde que
tornemos àquela morte primeira, “Quando a criança garatuja o verbo para falar
o que / não tem.”, estação em que podemos abrir uma fresta para o mistério,
fenda que nos desvela o que não se representa.

Tomemos agora um trecho do canto oito:

… Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo.

O poeta nos confia sua arte e apresenta um dos meios de que se vale para “operar”
com as palavras. E o faz através de suas imagens, no passo em que, entre elas,
estabelece relações de semelhanças, de similaridades. O processo do autor não
é, portanto, lógico ou simbólico, mas, analógico, de iconização do signo verbal.

Passemos, por último, ao canto catorze, poema central da obra:

O que não sei fazer desmancho em frases
Eu fiz o nada aparecer
(Represente que o homem é um poço escuro
Aqui de cima não se vê nada
Mas quando se chega ao fundo do poço já se pode ver
o nada)
Perder o nada é um empobrecimento.

Eis a menção direta ao nada, o nada de que trata o livro e sobre o qual, paradoxalmente,
ele está arquitetado. Antes de tudo, o poeta avisa: o que não sabe fazer, ele
faz pela frase, “desmanchando” o ato em frase, possibilitando pois o impossível.
E o nada pode aparecer.

Nos versos seguintes, lacrados dentro de parênteses, o rumo para este nada:
o homem como um poço escuro. De cima, na sua superfície, não se vê nada (observe
a relevância desta negativa que afirma e confirma o nada, que o coloca como
matéria de algo, de alguma coisa). No entanto, se o homem quiser ver o nada,
terá de chegar ao fundo do poço, sendo que o poço é ele mesmo. Ao atingir o
fundo, o âmago deste poço, isto é, de si próprio (linguagem), revelar-se-á o
nada ao homem. Produz-se aí uma imagem especular, espelho que metaforiza a própria
representação conforme as seguintes polarizações: cima do poço / fundo do poço,
superfície do homem / âmago do homem, nada se vê / vê-se o nada, afirmação da
representação / negação da representação.

Tudo isto é corroborado pelo termo que, ironicamente, abre a terceira estrofe.

O nada, visível como nunca, é a utopia do não, coberta e velada pela palavra
cotidiana, pelo verbo da superfície, de onde pouco ou nada se vê e que, óbvio,
comprova a representação. Portanto, pela via simétrica, sob o véu, o nada do
homem, sua diferença, seu não-ser, sua humanidade. Entre as duas pontas, percorrendo
e fertilizando este espaço de tensão, vertendo e invertendo teses e antíteses,
retesando e desequilibrando a linha dos paradoxos, está a poesia de Manoel de Barros.

Mergulhemos agora na porção que nomeia o livro. Trata-se de uma série de aforismos
em que estão expostos versos aparentemente ilógicos, paradoxais:

Tudo que não invento é falso.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Meu avesso é mais visível que um poste.

Ao mesmo tempo, o autor tece considerações sobre seu fazer poético que parecem
denotar firme consciência do solo lingüístico, como em

As palavras me escondem sem cuidado.

Neste último caso, por detrás da máscara vocabular, está o ser, mas também o poeta
(o nada?), de modo que, neste simples verso, tem-se a presença do drama humano, o
confronto em foco: o simbólico versus o icônico, o terceiro versus o primeiro.
Mais:

Uma palavra abriu o roupão para mim. Ela deseja que eu a seja.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse
nossos mais fundos desejos.

Em ambas as linhas, a alusão às frinchas na representação, à eucaristia utópica
homem-real, ora, este item do livro leva, ao cabo de sua leitura, a um verdadeiro
paradoxo dos sentidos.

O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.

Neste ponto, a ponte sobre a qual melhor transita o nada de Manoel refere-se à
clara tensão que se instala entre a tradição da palavra e a palavra sem tradição,
entre o simbólico e o icônico, entre o absoluto da linguagem e o absurdo da poesia,
entre o ser e o nada. O silogismo aristotélico e representacional, a lógica que
costumeiramente alicerça a linguagem, é questionado em prol de uma impossibilidade
tornada possível, de uma negação, a poesia, seu ilogismo, sua analógica.

Livro sobre nada, é também um livro sobre as virtudes.

O melhor porém é que mais ainda do que antes, Manoel de Barros aloja no seu livro
várias máscaras, alguns alter-egos e personagens: seu pai, sua irmã Bugrinha, o avô
insondavelmente teatral, que simulou um dia “cortar o phalo com o lado grosso da
faca”, e povoa o seu mundo com eles.

Na última parte do livro, “Os Outros: o melhor de mim sou Eles”, a atenção está
voltada para a alteridade, a partir da identificação do poeta com os artistas e,
especialmente, com os loucos, andores humanos da contra-representação, muitas
vezes estereotipados e expurgados pelo corpo social.

Assim, nesta última seção, o poeta como que se dissolve em alguns desses alter-
egos: um pintor boliviano, Rômulo Quiroga, em cuja pintura em sacos de aniagem
ele viu “latejar a cor psíquica e as formas incorporantes de Picasso”, e lhe
ensinou que é preciso eliminar da natureza “as naturalidades”; Mário, um tipo
do Pantanal que lia o seu futuro nas entranhas dos animais; o artista plástico
Arthur Bispo do Rosário, cuja obra, “ardente de restos”, tem semelhança
assombrosa com o melhor da poesia do próprio Barros, que estampou num livro:
“Aceita-se entulho para o poema”.

São interessantíssimos os casos em primeira pessoa, como o do filósofo de beco
Bola-Sete, que afirmava querer “fazer uma biografia do orvalho”, ou o do louco
andarilho que dizia: “Andando devagar eu atraso o final do dia”. Inusitado outrar-se:
o autor se traveste de louco para criar sua poesia, descolada, óbvio, do signo
tradicional.

Como se agora estivesse afiançado o absurdo poético, mas tão somente por tratar-se
de um discurso da loucura, em nova operação metalingüística.

No poema intitulado “A. B. do R.”, surge um famoso personagem:

Artur Bispo do Rosário se proclamava Jesus. Sua obra era ardente de restos:
estandartes podres, lençóis encar-didos, botões cariados, objetos mumificados,
fardões da Academia, Miss Brasil, suspensórios de doutores – coisas apropriadas
ao abandono. Descobri entre seus objetos um buquê de pedras com flor. Esse Artur
Bispo do Rosário acreditava em nada e em Deus.

“Arthur Bispo do Rosário se proclamava Jesus”: ele não precisava ser ou muito
menos desejar ser; ele simplesmente era. Dispensava, portanto, quaisquer intermebelecida
diários, mediadores ou equivalentes. Além do mais, valorizava insignificâncias.

Mas é no instante em que o poeta lhe descobre “um buquê de pedras com flor”,
que não pairam mais dúvidas: “Artur Bispo do Rosário acreditava em nada e em
Deus”. Se, numa primeira leitura, tomamos os dois vocábulos (“nada” e “Deus”)
como semanticamente opostos, numa visão mais aplicada podemos inquirir se nada
e Deus não estão, pelo contrário, muito próximos, são, bem dizer, sinônimos.
Afinal, nos meandros da mente extasiada de Bispo do Rosário e de seus desconcertantes
discursos, fulgura o encontro com o nada, ou melhor, com Deus. Os loucos, poetas.

Livro sobre Nada é uma obra instigante, a começar pelo título. O autor
demonstra, observa-se na leitura, segurança e orientação com respeito ao solo
que pisa, o da linguagem, da palavra como negação da representação, como
contradiscurso.

A partir desta geografia positiva, o poeta busca fazer o signo verbal encarnar,
paradoxalmente, o nada. Esta peleja desliza e transparece ao longo dos capítulos
e de seus diferentes leit-motifs, na proporção em que o autor discorre sobre
a infância e suas insignificâncias, o fazer poético e sua transfiguração, os
aforismos enquanto produção do sem-sentido, os loucos e sua insensatez.

Neste decurso, o nada de Manoel gradativamente assume e se traveste de caminhos
temáticos próprios e específicos (a infância, a utopia, o paradoxo, a loucura).

Indo adiante, seria interessante encontrar elementos para situar Livro sobre
Nada
como moderno. Isto feito, e na medida em que se esclarecem os meios
semióticos pelos quais o autor o fez, estaria Livro sobre Nada promovido
a uma reduzida lista de obras que, ao lidarem tão conscientemente com a linguagem,
solicitam para si a realização de uma impossibilidade, de uma utopia que, em
última instância, diz respeito à própria condição de nossa humanidade.

Na obra de Manoel de Barros percebe-se com freqüência, que não há uma obra pronta,
um poema “feito”. O poeta parece muito mais estar experimentando as coisas. Essa
experiência aparece quase como uma atividade lúdica. Desta forma, o poeta inicia
Livro sobre Nada com o poema que tem alguns versos que dizem assim: As
coisas tinham para nós uma desutilidade poética. / Nos fundos do quintal era muito
riquíssimo o nosso dessaber. / A gente inventou um truque pra fabricar brinquedos
com palavras. / O truque era só virar bocó. / Como dizer: Eu pendurei um bentevi no
sol… / O que disse Bugrinha: Por dentro de nossa casa passava um rio inventado
.
A essa “brincadeira” se junta a desconstrução, ou quem sabe é a própria
desconstrução que é habitada de “brincadeira”. Tudo tem, então, nos poemas de
Manoel de Barros, a seriedade e, ao mesmo tempo, a ingenuidade e gratuidade de
criança brincando. Em outro poema deste livro, percebemos essa relação quando
lemos: Prefiro as máquinas que servem para não funcionar: quando cheias de
areia de formiga e musgo, elas podem um dia milagrar de flores. / (Os objetos sem
função têm muito apego pelo abandono.) / Também as latrinas desprezadas que
servem para ter grilos dentro – elas podem um dia milagrar violetas./
. Nestes
versos, a relação do eu-lírico com o mundo parece uma relação de criança
remexendo o “imprestável” para impulsionar o “faz de conta”, a imaginação, ou para
“habitar o inabitável”. E como em brincadeira de criança tudo dá a impressão de
improviso, experimentação. Há também que se lembrar que assim como a criança
constrói algo, uma brincadeira, um castelo de areia, para logo depois desfazê-lo
ou esquecê-lo sem a menor culpa, a desconstrução em Manoel de Barros não tem
“compromissos”. Por isso, talvez, o poeta está a todo momento retomando o tema
da desconstrução, como se estivesse, como a criança em suas brincadeiras,
construindo e desconstruindo (experimentando), o real. Em uma de suas
entrevistas o poeta, ao ser questionado sobre as funções da poesia no mundo
atual e se ela realmente seria necessária, declara: (…) Além disso a poesia
tem a função de pregar a prática da infância entre os homens. A prática do
desnecessário e da cambalhota, desenvolvendo em cada um de nós o senso do
lúdico. Se a poesia desaparece do mundo, os homens se transformariam em
monstros, máquinas, robôs.

O “condão de advinhar” versus a linguagem informativa

A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um
sabiá
Mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força
Existem
Nos encantos de um sabiá.
Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare.
Os sabiás divinam.

No penúltimo verso deste poema, o eu-lírico diz: “Quem acumula muita
informação perde o condão de advinhar: divinare”. Neste verso percebe-se
uma outra nuança da poesia de Manoel de Barros, ou seja, a oposição entre
a linguagem informativa e a que poderíamos chamar criadora, “advinhativa”
(“Quando a criança garatuja o verbo para falar o que não tem”). O eu-lírico
neste poema se refere, então, à linguagem informativa como aquela que não
consegue extrapolar o âmbito estritamente objetivo da realidade, como é o
caso da linguagem científica. Na verdade, essa outra nuança vem confirmar
ainda mais o tema da desconstrução, pois a linguagem científica (a linguagem
informativa) é aquela que prescinde da desconstrução, já que se alimenta da
visão objetiva do real. Para “ironizar” essa oposição o poeta “brinca”, por
exemplo, com o vocábulo sabiá que “sugere” sabia(o). O verbo adivinhar é
outro vocábulo que, também, ganha sentido muito especial neste poema, quando
é comparado a “divino”, ao sagrado, que é o âmbito da poesia, deixando, com
isso, a linguagem da ciência num plano inferior, de “reles mortal”.

Ao fazer tal oposição é preciso notar que o poeta não está apenas mostrando
uma diferença, mas construindo uma identidade. No entanto, para construir
essa identidade o eu-lírico se vale, paradoxalmente, de uma desconstrução.
Neste poema, a desconstrução se dá através da desmistificação da ciência como
“a linguagem”, o discurso supremo. A ciência é desmascarada como “técnica”
impotente de ato maior, que é o de divinare. Assim, o eu-lírico parece
comparar a poesia à “magia” e a ciência à técnica: ”Quem acumula muita
informação perde o condão de adivinhar: divinare”. Perder o “condão de
adivinhar” (perder “a varinha mágica” que transforma o real) é perder o
mistério da magia, disso que não se explica através da informação, da
notícia, do dado objetivo, porque pertence a uma outra dimensão, à dimensão
dos que “divinam”,como os “sabiás”.

Também é bastante curioso observar como o eu-lírico desconstrói, na própria
forma de construir o poema, o discurso científico. Primeiro ele afirma para
depois negar. Assim temos: A ciência pode classificar e nomear os órgãos de
um sabiá (afirmação) / mas não pode medir seus encantos / A ciência não pode
calcular quantos cavalos de força existem / nos encantos de um sabiá (negação).
Ou seja, há uma desconstrução expressa a partir do conteúdo que também é
refletida na forma deste poema, o que acentua ainda mais o caráter não
“retilíneo” do discurso poético em questão. Em “As lições de R.Q.”, outro poema
de Livro sobre Nada, temos os seguintes versos que expressam muito
bem esse caráter “não retilíneo”: “Aprendi com Rômulo Quiroga (um pintor
boliviano): / A expressão reta não sonha”. Esse caráter “não retilíneo”
também é expresso em outro verso do mesmo poema, em que o eu-lírico sugere
um movimento de aproximação das coisas, da natureza, que é sempre um movimento
de retomada, “circundante”, de experimentação, exaustiva e gradativa, e não
objetivamente, como o faz o discurso científico: ”O olho vê, a lembrança revê,
e a imaginação transvê. / É preciso transver o mundo. / Isto seja: / Deus deu a forma.
Os artistas desformam. É preciso desformar o mundo: Tirar da natureza as naturalidades”.

Este Livro sobre Nada é um livro para ler com cuidado: ele é todo uma
linguagem codificada e tanto podemos achá-lo instigante, “com pedaços de mim
eu monto um ser atônito” ou “Pensar que a gente cessa é íngreme – minha alegria
fica sem voz”, ou podemos detestá-lo, “abria um por um de canivete os sapos
para ler nas entranhas deles o seu futuro”. Difícil é ficar indiferente.

Inútil, nada, coisa, bichos. Essas são algumas das palavras-chave de uma obra
que tenta reconstruir o mundo. Alguns poetas passam, em suas obras, uma determinada
visão de mundo; outros não se contentam com isso e vão além: tentam reconstruir
o mundo. Manoel de Barros é um deles. Carlos Drummond de Andrade, em uma fase de
sua produção “coisificou” o mundo industrial em plena Guerra Fria; Manoel de Barros
faz exercícios poéticos no sentido de “descoisificar” o mundo, buscando uma nova
forma de organizá-lo, que respeite a leitura daqueles que só têm “entidade coisal”.
A seguir, está transcrito os três primeiros poemas do Livro sobre nada.
Observa-se neles a força expressiva dos prefixos que indicam ação contrária
(tentativa de mudar a ordem das coisas?) e a grande antítese formada por aqueles
que só têm “entidade coisal “X o “senhor doutor”.

I. …As coisas tinham para nós uma desutilidade poética. Nos fundos do quintal
era riquíssimo o nosso dessabor. A gente inventou um truque para fabricar brinquedos
com palavras…

II. o pai morava no fim de um lugar. Aqui é lacuna de gente – ele falou: Só
quase que tem bicho andorinha e árvore. Quem aperta o botão do amanhecer é o
arãquã. Um dia apareceu por lá um doutro formado: cheio de suspensórios e ademanes.
Na beira dos brejos gaviões-caranguejeiros comiam caranguejos. E era mesma distância
entre as rãs e a relva. A gente brincava com terra. O doutor apareceu. Disse:
Precisam de tomar anquilostomina. Perto de nós sempre havia uma espera de rolinhas.
O doutor espantou as rolinhas.

Observa-se que o poeta assume a postura de uma criança, o olhar intangível do infante
percebe o mundo muito grandiosamente quando surge o doutor formado que por ter
sido educado e se tornado adulto perdeu a percepção do mundo real (sensacional).
Tanto isto é claro quando as andorinhas são espantadas por ele. Extremamente
humanista e por que não dizer, ecológica é a visão do autor sobre o mundo que
o cerceia.

Texto parcial: Alessandro Sales, Mestrando em
Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

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