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O sentimento dum ocidental, de Cesário Verde

by Lucas Gomes

Ao fazer a leitura de O sentimento dum ocidental, de Cesário
Verde, vemos em destaque as manifestações da consciência
nele presentes, seguimos a via de considerar que o texto dispõe de todos
os ingredientes poético-narrativos necessários para contar uma
história.

Mas trata-se de uma história que, à primeira vista, quase não
é história: é a história do poeta que não
cabe em casa, nem cabe em si, e sai de casa e de si, deparando-se, fora, com
um cenário humano preocupante e desolador, causa principal do mal-estar
que o aflige e de que ele vai tomando (e revelando) consciência passo
a passo.

Esse cenário humano geral, com que o poeta se depara, potencia o aparecimento
de muitos outros cenários. E isso porque a história que ele conta
não é sequencial nem linear, mas encerra em si muitas outras histórias,
carregadas de vivências pessoais do poeta, embora literariamente transformadas.

As motivações para a escrita do poema

O sentimento dum ocidental insere-se em O Livro de Cesário
Verde
(1887). Este livro, o único (e póstumo) do autor, foi
dedicado a Guerra Junqueiro e teve colaboração de Silva Pinto,
cuja participação levantou (continua a levantar) fortes dúvidas
sobre o que é verdadeiramente de Cesário e o que será porventura
seu.

O sempre renovado “complexo edipiano” cultural, sentido ao longo
dos tempos: tal como com Sócrates e Platão, Tycho Brahe e Johannes
Kepler, Mozart e Salieri, Kafka e Max Brod, Husserl e Heidegger…, a trabalhar
por dentro, e o incêndio que destruiu a casa de Cesário (1919),
em Linda-a-Pastora, onde ficara depositado o seu espólio literário,
a trabalhar por fora, vieram complicar ainda mais as coisas, tornando o problema
talvez irresolúvel para sempre.

O sentimento dum ocidental pretendeu homenagear Camões na
passagem do terceiro aniversário do seu falecimento. Tendo sido originalmente
publicado no Porto (1880), o texto passou despercebido à crítica,
tendo-se o poeta lamentado disso, numa das suas cartas (Carta de 29.08.1880,
a Antônio de Macedo Papança, Conde de Monsaraz), onde escreve que
uma poesia minha, recente, publicada numa folha bem impressa, limpa,
comemorativa de Camões, não obteve um olhar, um sorriso, um desdém,
uma observação! Ninguém escreveu, ninguém falou,
nem um noticiário, nem uma conversa comigo; ninguém disse bem,
ninguém disse mal.
” (C. Verde, 1999, pp.210).

Cesário diz que o poema foi escrito com essa intenção
de celebrar Camões, a que os republicanos (Cesário era-o, de fato,
se não, ao que sabemos, por qualquer adesão política formal,
pelo menos por opção ideológica profunda, que revela nos
seus textos), nesse tempo, deram um relevo especial.

Se é ele quem diz que foi essa a sua intenção, não
temos o direito de duvidar. Mas, sendo-o, foi-o de modo original, desconcertado
em relação às posições oficiais do tempo,
e talvez tenha vindo daí, a par do desinteresse que suscitava o trabalho
literário empenhado e a originalidade de Cesário, outra das razões
do “esquecimento” da crítica.

É que o poeta, nessa mesma carta, também acrescenta que “apenas
um crítico espanhol chamava às chatezas dos seus patrícios
e dos meus colegas – pérolas – e afirmava… que os meus
versos “hacen malisima figura en aquellas páginas impregnadas de
noble espíritu nacional.
” (C. Verde, 1999, p.210).

Na verdade, o modo como Cesário Verde celebra o 3º centenário
da morte de Camões exprime “uma representação
objetivada da… decadência histórica
” em que tinham
encalhado Portugal e os portugueses. À exaltação formal
a que oficialmente se aderiu, Cesário Verde contrapõe a denúncia
da triste realidade em que o país se encontrava. O ambiente que se desenvolve
no poema, acerca da “triste cidade”, é simbolicamente depreciativo
(a realidade é triste, Lisboa é triste, o país é
triste, os portugueses são tristes…). A referência às
“crônicas navais” e às “soberbas naus” é
uma evocação da pureza dos Descobrimentos, o que não corresponde
à realidade vivida, de um couraçado inglês ancorado junto
a Lisboa, com toda a humilhação nacional que isso exprimia. Camões
salva “outra vez”, a
nado, o seu livro, mas agora não luta apenas contra a voracidade das
águas. A vida relacionada com o mar está transformada em comércio
e em desgraça. A figura de Camões, o “épico de outrora”,
aparece transmutada em “estátua” fria, entre banais bancos
de namoro e pimenteiras. Os militares perderam o orgulho de outrora e servem
a mediocridade instituída. As frotas desejadas não são
localizadas no presente, mas pertencem… aos avós, os “nômades
ardentes”, que não se
sabe de onde virão, porque são sonhados apenas.

É clara a oposição entre aquilo que Cesário pretende
que a realidade seja e o que ele sente que ela é, e não consegue
disfarçar, por mais que quisesse celebrar corretamente a efeméride
do épico. O tempo em que Portugal não passava de “um obscuro
desembarcadouro de cruzadores britânicos”, sem vontade nem sonho,
com todo o abandono e desordem em que se encontrava tudo, não o deixa
indiferente. E a isso também não foi “indiferente” a
elite cultural alinhada, do seu tempo, que em parte não o compreendeu,
mas que também o ignorou propositadamente. O poder instituído
sempre teve disto, em Portugal.

A grande motivação para a escrita do poema foi a necessidade
de denúncia sentida pelo autor, perante a realidade da Lisboa do seu
tempo, povoada de uma maioria de gente submissa e desgraçada, a contrastar
com uma minoria abastada e “feliz”, com quem ele se diz “aborrecido”
e com “raiva como a um marreco” (Carta a Mariano Pina, de 16.07.1879
– C. Verde, 1988, pp.225-228). Uma Lisboa marcada pelas transformações
e contradições do fontismo, ainda hoje visíveis, que ele
apresenta “refratada nas percepções e sentimentos” que
experimenta, e o despertam, enjoam, inspiram, incomodam…, aos mais diversos
níveis: físico, social, moral… humano. Uma Lisboa que representava,
desgraçadamente, e para o pior, a realidade amorfa, decadente, aviltada,
do país.

Os dualismos

Os dualismos presentes na obra de Cesário Verde, em geral, não
têm (não merecem, no nosso entender), a relevância que se
lhes tem querido atribuir, em termos didácticos, prestando-se até,
com tal sobrevaloração, um mau serviço ao estudo da obra
do poeta (um estudo formal, dirigido à memória), pela passividade
que isso provoca nos alunos, desviando-os da inovação, do despertar
da consciência e do desempenho crítico.

Estudar Cesário, como estudar literatura, deve ser um ato pessoal
e criativo, que se não coaduna com emolduramentos definitivos de quaisquer
partes de uma obra.

Mas com isto não se pretende negar as dicotomias, que estão
realmente presentes na poesia de Cesário Verde. Eis algumas dessas dicotomias,
que importa levar os alunos a descobrirem: oposição entre cidade
e campo, favorecidos e desfavorecidos, pobres e ricos, altruístas e orgulhosos,
produção industrial e atividade comercial e vida do campo, consumismo
e miséria, proprietários e operários, trabalhadores e ociosos,
quotidiano urbano e rural, crescimento urbano e abandono rural, saúde
e doença (tuberculose, epidemias), meios de transporte tradicionais e
modernos (linha férrea, transportes colectivos), isolamento e falta de
informação e meios de comunicação social (jornal,
telégrafo), domínio do conhecimento e poder e vigência da
ignorância e subordinação, operariado (indústria
naval, construção civil, transportes, minas, pescas, tabaco…)
e poder econômico, real histórico representado e real poético
produzido, restos do real e visões do real, sinceridade poética
e artificialidade, sentimento e objetividade, imaginário e realidade,
emoção e racionalidade, vida e morte, amor e morte, revolução
e tradição, espírito burguês e espírito inovador.

Mais especificamente, em O sentimento dum ocidental, repartidos pelas
quatro partes que constituem o poema, fazem-se notar os seguintes dualismos:

Parte I – A realidade do mundo exterior e da consciência
do poeta. A infelicidade dos que ficam e a felicidade dos que vão. Os
trabalhadores e os ociosos. Os pobres e os ricos. Os favorecidos e os desgraçados.
A realidade e a evasão. Os inocentes e os orgulhosos. A felicidade da
inconsciência e a infelicidade da consciência.

Parte II – Os tristes e os afortunados. A inocência
e a crueldade. A realidade abominada da cidade e a cidade idealizada. Clericalismo
e laicidade. Os seres murados e os seres livres. O tempo vulgar de hoje (recinto
público, bancos de namoro, exíguas pimenteiras) e o tempo simbólico
e grandioso de Camões (brônzeo, monumental, de proporções
guerreiras, levantado num pilar). A paz e a guerra (os soldados). Os palácios
e os casebres. Tempo de hoje e Idade Média. As elegantes e os desfavorecidos.
A verdade e a falsidade.

Parte III – O exterior (a rua) e o interiores. O dia e a noite
(pesa, esmaga). As mulheres de bem e as impuras. As lojas para os que têm
posses e a miséria para os desgraçados.

Parte IV – Finitude e eternidade. O presente negativo e o
futuro promissor. Hipocrisia e sinceridade.

Uma dicotomia, das mais valorizadas, em O sentimento dum ocidental,
é o dualismo cidade-campo. A cidade exprime a mundividência dos
bons (os fracos e abandonados) e dos maus (as personagens negativas habitando
os seus espaços, o mundo burguês, a que Cesário pertencia,
mas que repudiava). O campo representa a vida ligada à natureza (expressão
da afetividade), à liberdade, aos valores tradicionais, ao equilíbrio,
à memória, a tudo aquilo que se coaduna com os ideais e os sonhos
de futuro, de Cesário. O campo representa, sobretudo, a evasão,
a compensação do mal-estar provocado pela cidade – que representa
a fixidez, a passividade, o palco onde todos os males se representam.

As frustrações de vida do poeta

Cesário concluiu a instrução primária, aos dez
anos, recebendo, após isso, formação, na própria
loja do pai, para a atividade do comércio. Foi preparado, pela família,
para dar continuidade ao negócio de ferragens, na loja que tinha em Lisboa
e que geria com determinação.

Igualmente, a família tomou por herança, em 1869, uma quinta,
em Linda-a-Pastora. E assim Cesário se tornou comerciante de ferragens
e gestor agrícola da propriedade familiar. A sua educação
foi toda ela orientada nesse sentido.

Apesar de ter o sustento e a posição social garantidos, Cesário
dedica-se intensamente aos negócios, mas considerando as funções
que exercia um “peso”, sobretudo pelo tempo que lhe tiraram, contrapondo
a isso o sonho de ser escritor.

Em cartas a João de Sousa Araújo, ele queixa-se da vacuidade
da vida que leva, dos “muitos afazeres” que tem (carta de 20.07.1871
– C. Verde, 1999, p.177), da sua “vida muito estúpida”
(carta de 14.11.1871 – C. Verde, 1999, p.178), sem razão de ser
(carta de ??.11.1871 – C. Verde, 1999, p.179).

Em cartas ao “irmão” Silva Pinto, denuncia que vive “cheio
de trabalho comercial” (carta de 1875 – C. Verde, 1999, p.182) e
considera não se conformar por ter de se dedicar ao comércio (carta
de 1875 – C. Verde, 1999, p.185). Reconhece que, mesmo “ao serviço
da casa” (carta de 1875 – C. Verde, 1999, p.189), anda sempre ocupado
com a escrita, a sua e a dos outros.

Diz não se sentir bem “em parte nenhuma”, “cheio de
ansiedades de coisas” que não pode nem sabe realizar (carta de 1877
– C. Verde, 1999, p.191). Denuncia que está preso à loja,
preso ao comércio (carta de 1875 – C. Verde, 1999, p.192), perdido
no meio dos pomares burgueses e produtivos“, afastado da
literatura mas “amando-a ainda muitíssimo” (carta de 1879 –
C. Verde, 1999, p.194). Essa foi uma das suas frustrações.

Aos 18 anos, Cesário matriculou-se no Curso Superior de Letras, a que
não deu conclusão. Essa foi outra das suas frustrações.
Mesmo assim, a frequência do curso serviu-lhe para estabelecer contatos
(sobretudo com Silva Pinto) que lhe viriam a ser essenciais.

Uma outra frustração que marcou Cesário teve a ver com
os conflitos mantidos em jornais e com autores consagrados do tempo, tendo sido
mal compreendido por quase todos. Isso levou-o a lamentar, numa carta (C. Verde,
1988, pp.219-221), que, “literariamente, parece que Cesário
Verde não existe
“. Foi grande a dificuldade que teve em encontrar
espaços onde publicar a sua poesia, e de algumas vezes que o fez foi
criticado por escritores como Ramalho Ortigão, Fialho
de Almeida, Teófilo Braga, Gomes Leal, Eduardo Coelho, Guimarães
Fonseca… e em meios de comunicação social como o Diário
Ilustrado, passando, após isso, a publicar em jornais e revistas de circulação
mais restrita.

As contrariedades por que Cesário se viu envolvido fizeram dele um
isolado e um inconformista. Isso notou-se a nível das ideias (o projeto
de vida que desenvolveu), mas também no seu modo de escrita, na sua criatividade
e expressão estética.

Doença e morte

A doença e a morte afetaram, continuamente, a vida e a obra de Cesário
Verde. Na sua vida pessoal, marcou-o a morte da irmã, em 1872, com 19
anos. A referência que Cesário faz a “uma paixão defunta”,
em O sentimento dum ocidental, aplica-se à sua pessoa. O mesmo
aconteceu com a morte do irmão, Joaquim Tomás, em 1882, com 24
anos.

Cesário faz várias referências à morte, uma vicissitude
que sentia iminente, nas cartas que escreve. Na poesia, várias das suas
personagens são doentes. Outras estão à espera de morrer.
Frustra-o a impotência perante a dor, a doença, as epidemias, o
egoísmo, a falta de desenvolvimento da ciência que não permitia
responder aos anseios mais elementares do homem.

O próprio Cesário, sobretudo a partir de 1887, começa
a queixar-se de falta de saúde, falando de “escrófulas
que se alastram, que se multiplicam depressa
“, não sabendo
se era “resultado sifilítico”, ou “outra coisa qualquer”.
Sabemos que era tuberculose, a mesma doença que lhe havia roubado os
irmãos e que, de cura projetada no futuro, por que ele ansiava, não
tinha ainda cura no seu tempo, acabando por vitimá-lo também.

A literatura a serviço de um projeto ideológico-social

O sentimento dum ocidental encerra o projeto ideológico-social
assumido por Cesário, que não surge completamente formado no poema,
mas se vai formando, ao seu decorrer, através de um processo de construção.

O ponto de partida é a realidade focalizada por um poeta/narrador de
ambulante, que destaca a realidade do povo, encarado globalmente ou através
de manifestações personalizadas, emoldurado na cidade onde existe
e a que dá existência. De umas primeiras manifestações
imprecisas acerca da realidade, são a pouco e pouco postos em destaque,
e de modo cada vez mais visível, as desigualdades, as injustiças
e as misérias que afetam as pessoas, as contradições que
as marcam, as vicissitudes do sistema que as diminui. Todas as outras manifestações,
nomeadamente da realidade burguesa, se destinam a fazer sobressair o seu modo
de consciência.

Para formar consciência acerca dessa realidade, o poeta desenvolve um
esforço de seleção (pensar é selecionar) e de síntese
(a consciência é escolha), através das cogitações
contínuas que vai fazendo. Desse modo, e porque a personalidade resulta
da síntese dos fenômenos psíquicos selecionados pela consciência,
numa sequência de fenômenos a serem continuamente ligados a outros
fenômenos anteriores, a personalidade do poeta vai-se enriquecendo, revelando-se
cada vez mais nítida a representação que ele faz do mundo.

Mas a formação da sua nova consciência não surge
por acaso e a seleção e a síntese verificadas não
se operam de modo inocente. Houve fatores na vida do poeta que as marcaram
– as vivências do que o rodeia, feitas de misérias e desgraças
materiais e espirituais, a formação recebida no ambiente familiar,
a conturbação ideológica do seu tempo. Numa lógica
de determinismo naturalista, a nada disto o poeta ficou indiferente e tudo isto
contribuiu para o desenvolvimento da preocupação social que ele
mostra.

No ponto de chegada, a parte final do poema (embora já com algumas
marcas anteriores), o poeta/narrador mostra-se possuído, se não
de uma nova consciência, pelo menos de uma consciência mais organizada,
através da qual toma posição crítica perante a realidade.

Dessa posição, a que adere, faz parte um profundo compromisso
social, mostrando-se solidário com os desfavorecidos, os frágeis
e os desgraçados, assumindo a sua defesa, valorizando as situações
de força popular e destacando as manifestações da dor humana
que encontra omnipresentes no ambiente da cidade.

Deste modo, Cesário apresenta uma clara posição política.
Fazendo assentar o seu texto na ideologia que perfilha (a que não são
estranhos os ideais republicanos e socialistas fortemente divulgados no seu
tempo), ele mostra-se um escritor comprometido, para quem a atividade poética
é entendida como meio de realizar um projeto de vida. Cesário
focaliza a ideologia e a mundividência burguesas para as denunciar, mostrando-se
“ressentido” com elas e com todas as suas manifestações
e consequências.

Um uso especial da linguagem

Apesar de a linguagem de Cesário Verde ser destituída de marcas
eruditas, que escasseiam na sua obra, cuja cultura é sobretudo tributária
de informação jornalística ou de tertúlias, ele
não deixou de merecer o apodo de “engenheiro da poesia”, pelo
modo meticuloso e geométrico como se exprime.

O estilo digressivo e impressionista de Cesário merece uma referência
à parte. Ele está relacionado com o modo como ele exprime a mobilidade
da consciência, assente no número diverso das realidades existentes,
cada uma com o seu estilo específico (os sub-universos, para James: o
mundo dos sentidos ou das coisas físicas, tal como são experimentadas
pelo senso comum, o mundo da ciência, o mundo das relações
ideais, o mundo dos ídolos da tribo, os mundos sobrenaturais como o céu
e o inferno cristãos, os mundos da opinião individual, os mundos
da alegre loucura).

Perante a multiplicidade dos fenômenos com que depara e o modo polifônico
a que recorre para os apreender, e com o que vai enriquecendo a sua personalidade
(a consciência da realidade, revelada no final de O sentimento dum
ocidental
, apresenta uma segurança que não existe no seu
início, e que foi sendo construída através das vivências
essenciais que se foram acrescentando), Cesário privilegia os estados
substantivos, os pontos fortes da consciência, em detrimento dos estados
transitivos (em que o pensamento pouco se detém). O estilo digressivo
que usa deve-se a ele valorizar, sobretudo, os primeiros em relação
aos segundos.

Importante destacar o vocabulário inovador, usado em sentido ativo,
a expressividade da adjetivação e dos verbos, as imagens inusitadas
(ligadas às suas vivências, sonhos, convições sobre
a vida, determinações de ação, energias obscuras),
o aproveitamento do prosaico para produzir efeitos poéticos, a atenção
ao pormenor, a liberdade imagística reveladora de uma nova consciência
estética, o recurso a símbolos capazes de traduzir todo um amplo,
e ao mesmo tempo concreto, universo lírico, os elementos retórico-estilísticos
(comparações e metáforas, sinédoques e metonímias,
sinestesias…), a variedade e rigor de estrofes e métrica, o contínuo
jogo musical, envolvendo formas e cores, alternando estrofes ou versos de silêncio
e quietude com outros de movimento e estridência.

É na parte final do poema que Cesário Verde coloca os principais
ingredientes da sua mensagem. Ele considera ser possível construir uma
realidade diferente com os meios que define e, a partir daí, contribuir
para a transformação do mundo – a ser procurada por ele
e por quantos, com ele, quiserem encetar o esforço da construção
da nova casa humana: de uma sociedade organizada e desenvolvida, sem exploradores
nem explorados, sem opressores nem oprimidos, sem injustiças nem excluídos.
A sociedade da utopia, da possibilidade, da vontade, do empenhamento, mas também
da dúvida e do muito limitado otimismo.

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Em O sentimento dum ocidental, há tempo, espaço e personagens,
como há narrador e ação. O tempo, o espaço e as
personagens estão claramente presentes. O narrador é o próprio
sujeito poético, como acontece em muitos outros textos de Cesário
Verde, que se desdobra nos relatos que insinua e na interioridade que explora.

Alguma dificuldade surge com a narração/ação,
sendo necessário o contributo empenhado do leitor para a constituir e
organizar e dar sentido às suas partes.

Na obra está o retrato de Cesário Verde, e é como que
uma súmula da substância poética de sua obra, somente transfigurada
transitoriamente no bucolismo da última fase, o que lhe arrefeceu o tédio,
amenizou-lhe o estro, sem, todavia, anular as qualidades que fizeram dele um
renovador da poesia portuguesa do século XIX. Na verdade, situa-se no
Realismo e antecipa mesmo de muitos anos e em muitos aspectos Sá-Carneiro
e Fernando Pessoa, pela temática da inspiração e dos processos
poéticos. É, por isso, o precursor do Modernismo em Portugal.

Na leitura que se faz de O sentimento dum ocidental, destacando as
manifestações da consciência nele presentes, segue-se a
via de considerar que o texto dispõe de todos os ingredientes poético-narrativos
necessários para contar uma história. Mas trata-se de uma história
que, à primeira vista, quase não é história: é
a história do poeta que não cabe em casa, nem cabe em si, e sai
de casa e de si, deparando, fora, com um cenário humano preocupante e
desolador, causa principal do mal estar que o aflige e de que ele vai tomando
(e revelando) consciência passo a passo.

Esse cenário humano geral, com que o poeta depara, potencia o aparecimento
de muitos outros cenários. E isso porque a história que ele conta
não é sequencial nem linear, mas encerra em si muitas outras histórias,
carregadas de vivências pessoais do poeta, embora literariamente transformadas.

Em O sentimento dum ocidental, há tempo,
espaço e personagens, como há narrador e ação. O
tempo, o espaço e as personagens estão claramente presentes. O
narrador é o próprio sujeito poético, como acontece em
muitos outros textos de Cesário Verde, que se desdobra nos relatos que
insinua e na interioridade
que explora.

Alguma dificuldade surge com a narração/ação,
sendo necessário o contributo empenhado do leitor para a constituir e
organizar e dar sentido às suas partes.

No texto de Cesário, deparamos com quatro cenários – Ave-Marias,
Noite Fechada, Ao Gás, e Horas Mortas, a que correspondem, respectivamente,
o Cair da Tarde, o Acender das Luzes, a Fixação da Noite, a Noite
Segura.

Considerando cada um destes conjuntos, e procedendo a um levantamento direto
do texto, vejamos como, em O sentimento dum ocidental, as manifestações
da consciência (reveladas através dos estados de alma do sujeito
poético / narrador) aparecem ligadas, de modo interativo, aos elementos
poético-narrativos referenciados (tempo, espaço, personagens).

Cenário I: Ave-Marias (Ao Cair da Tarde)

TEMPO ESPAÇO PERSONAGENS ESTADOS DE ALMA DO POETA
Ao anoitecer.
Sombras.
As ruas de Lisboa.
Bulício, Tejo, maresia. Infere-se: muita gente nas ruas. Soturnidade e melancolia. Desejo absurdo (injustificado) de sofrer.
Infere-se: o aproximar da noite (iluminação, edifícios
onde se prepara o jantar, pessoas a caminho de casa).
Céu baixo e de neblina. Gás extravasado, cheiro a gás.
Edifícios e chaminés. Cor monótona e londrina.

Turba.
Enjoo pelo gás extravasado.
Infere-se a tristeza do poeta, provocada pela cor monótona e londrina.
  Ao fundo, carros de aluguel, em direção ao comboio.   A felicidade dos que partem, em oposição à infelicidade
dos que ficam, entre os quais o poeta.
O poeta manifesta desejo de evasão para capitais europeias onde é
possível chegar de comboio. A felicidade está onde não
se está.
Ao cair das badaladas (velha tradição, anunciando o fim
do trabalho com o toque dos sinos).
As casas de madeira parecem gaiolas. As casas são como viveiros,
nelas se amontoam as pessoas.
Infere-se a existência de pessoas no interior das casas. Os mestres
carpinteiros saltam de viga em viga, como morcegos, abandonando o trabalho.
 
Boqueirões, becos.
Cais a que se atracam botes.
Os calafates, aos magotes, de jaquetão ao ombro, enfarruscados,
secos, regressam a casa.
O poeta, a cismar, por boqueirões, por becos.
O poeta erra pelos cais a que se atracam botes.
Tempo de evasão: recuo ao tempo dos Descobrimentos Espaço de evasão: os Descobrimentos. Personagens de evasão: mouros, heróis ressuscitados.
Camões a salvar Os Lusíadas a nado.
A realidade dura faz o poeta ter consciência da necessidade que sente de evasão.
Fim da tarde.
Hora de jantar.
No mar, vogam os escaleres de um couraçado inglês. Em terra
serve-se o jantar nos hotéis da moda.
Infere-se a presença dos ingleses, nos couraçados, os privilegiados
da sorte a jantar nos hotéis da moda.
O poeta declara-se incomodado com o fim de tarde.
  Um trem de praça (onde arengam dois dentistas). As varandas das
casas. As lojas.
Dois dentistas (arengam num trem de praça). Um trôpego arlequim
(um desfavorecido da sorte) braceja numas andas.
Os querubins do lar (a criançada, à espera dos pais, aos saltinhos,
nas varandas). Os comerciantes, em cabelo (descompostos), enfadam-se, à porta das lojas, por falta de clientes.
O poeta revela simpatia pelos desfavorecidos e hostilidade para com os bafejados pela sorte.
  Arsenais e oficinas.
O rio a reluzir, viscoso.
O operariado deixa o trabalho e regressa à casa. As obreiras, apressadas.
As varinas, em grupo, hercúleas, galhofeiras.
Infere-se: o poeta mostra ter consciência da vida miserável
das varinas, mas também de que elas não têm consciência
disso (a felicidade está na ordem inversa da consciência).
    As varinas, de troncos fortes como pilastras, agitam, ao andar, as ancas
opulentas.
Os filhos das varinas (que elas embalam à cabeça), vão
dentro das canastras.
O poeta comisera-se com a vida das varinas e antevê a desgraça
dos seus filhos, que antevê a naufragarem nas tormentas.
O poeta, consciente, sofre pelas varinas, que não revelam ter consciência
da realidade que as afeta.
    As varinas trabalharam, de manhã à noite, nas descargas
de carvão, nas fragatas, vão descalças. As varinas moram num bairro sem condições
(aí miam gatas, o peixe podre gera focos de infeção).
 

Cenário II: Noite Fechada (Acender das Luzes)

TEMPO ESPAÇO PERSONAGENS ESTADOS DE ALMA DO POETA
  As cadeias, onde se toca às grades (pede-se comida, é hora de dormir).
O Aljube, onde se recolhem velhinhas e crianças.
Velhinhas e crianças (recolhem-se ao Aljube). A mulher de “dom”, com bens (mulheres dessa condição raramente caem num Aljube).
Personagens inferidas: os presos e os guardas.
O poeta sente-se mortificado e com loucuras mansas, ao ouvir tocar às grades, nas cadeias. O poeta tece o comentário de que, no aljube,
raramente se encontra uma mulher de “dom”. O poeta lamenta que velhinhas e crianças tenham de se recolher ao Aljube.
Ao acender das luzes. As prisões, a velha Sé, as Cruzes. Infere-se: as pessoas desprotegidas que estão nas prisões, entram na velha Sé, passam pelas Cruzes. O poeta desconfia que sofre de um aneurisma, de tão mórbido que fica com o que vê. O coração
do poeta é sensível ao deparar com as prisões, a velha Sé, as Cruzes.
O poeta sente chorar o coração.
A hora de acender as luzes. Os andares que se iluminam. As tascas, os cafés, as tendas, os
estancos acendem as luzes com reflexos brancos. A lua lembra o circo e os
jogos malabares.
Infere-se: as pessoas chegam a casa e acendem as luzes. .Infere-se: os frequentadores de tascas, cafés, tendas, estancos.
  Duas igrejas, que ficam num saudoso (antigo) largo. Espaço de evasão
(negativo): espaço da cidade onde tiveram lugar práticas repressivas da Igreja (a Inquisição).
Padres que abandonam as igrejas. As vítimas (recriadas) da repressão
da Igreja.
O poeta revela pouca simpatia por igrejas e clero. O poeta, perante a
vista das duas igrejas, esfuma (recria) as antigas práticas repressivas
da Igreja (a Inquisição).
O poeta comisera-se por todos quantos sofreram com práticas religiosas
repressivas do passado (a Inquisição).
O poeta quer compensar a realidade negativa com incursões através
da história (embora nem todos os motivos sejam felizes).
Construções retas, iguais, crescidas, resultantes das reedificações
após o terramoto.
Íngremes subidas. Toque dos sinos.
  O poeta sente-se murado, emparedado, ao visitar a parte reconstruída
da cidade, após o terramoto (afinal, a reconstrução
não foi o que se esperava…). Sente-se afrontado com as íngremes
subidas, com o ambiente religioso suscitado pelo toque (monástico
e devoto) dos sinos.
  O largo onde foi levantada a estátua de Camões, recinto
público e vulgar, com bancos de namoro e exíguas pimenteiras.
A estátua de Camões, épico de outrora, feita de bronze,
monumental, de proporções guerreiras, apoiada num pilar.
  O poeta destaca a importância da figura de Camões (a resposta
aos problemas do presente seria dada com soluções do passado),
ao mesmo tempo que pretende homenageá-lo (O Sentimento dum Ocidental
é publicado em 1880).
  Espaço da rua.
Quartel militar.
Um palácio diante de um casebre.
O Cólera, a Febre (personificados).
Pessoas de corpos enfezados, que se acumulam nas ruas.
Os soldados, sombrios e espectrais, que recolhem ao Quartel.
O poeta revela-se sensível ao sofrimento das pessoas, que, pelos
corpos enfezados, ele supõe sofrerem de cólera e febre. Mostra
pouca simpatia pelos soldados, devido à sua função
belicista e de preservação da realidade instituída.
Revela-se sensível às contradições sociais (um
palácio diante de um casebre).
A temperatura
baixa.
Os Quartéis (de cavalaria), ocupando o espaço de antigos
conventos.
Espaço de evasão: a Idade Média, suscitada pelos conventos transformados em Quartel. A cidade, com cada vez menos gente.
Patrulhas a cavalo e a pé saem dos Quartéis, espalham-se (derramam-se) por toda a capital. O poeta revela nostalgia pela Idade Média, enquanto espaço
e tempo de evasão (a solução para os problemas do presente
procurada no passado).
  A triste cidade.
Os lampiões distantes.
As montras dos ourives.
Uma paixão defunta, do poeta (personagem da memória).
As elegantes, curvadas a sorrir diante das montras dos ourives.
O poeta comisera-se com a tristeza da cidade.
O poeta receia que a cidade lhe avive uma paixão defunta. O poeta
sente-se enlutar ao deparar com os favorecidos da vida (as elegantes, diante
das montras dos ourives).
  Os magazines. Costureiras e floristas descem dos magazines, onde trabalham.
Custa-lhes a elevar os pescoços altos. Muitas delas são comparsas
ou coristas, trabalham no teatro.
O poeta é tomado de sobressaltos, perante costureiras e coristas
de vida dupla (profissão humilde, durante o dia, profissão
duvidosa, depois do anoitecer).
O poeta denuncia as influências estrangeiras na moda, ao designar
as lojas por magazines.
  A brasserie, onde, às mesas de emigrados, ao riso e à crua
luz, se joga o dominó.
Emigrados, ao riso e à crua luz, jogam o dominó. O poeta apresenta-se de luneta de uma lente só, declarando-se,
assim, atento e íntegro.
O poeta declara ter sempre assunto perante os “quadros revoltados”,
que abundam na cidade.

Cenário III: Ao Gás (Fixação da Noite)

TEMPO ESPAÇO PERSONAGENS ESTADOS DE ALMA DO POETA
A noite pesa, esmaga. Os passeios de lajedo. Os moles hospitais. As embocaduras, que libertam
um sopro que arrepia os ombros quase nus, sugerindo
um ambiente de fantasmas que afeta os pobres mal vestidos e doentes.
As impuras que se arrastam nos passeios de lajedo. Os pobres andrajosos
e doentes, que são afetados pelo sopro saído das embocaduras.
O poeta sente desconforto com o ambiente (inconsciente) de riso e jogo.
O poeta é abatido pelo sentimento de peso e esmagamento provocado
pela noite.
O poeta sensibiliza-se com o sofrimento no interior dos hospitais e com
os pobres mal vestidos e doentes, expostos às correntes de ar.
  As lojas tépidas.
Espaço imaginado: visão de uma catedral de comprimento imenso,
com círios laterais, filas de capelas com santos e fiéis,
andores, ramos, velas, sugerido pela presença das lojas tépidas.
Personagens imaginadas: santos em capelas, com círios, andores,
ramos, velas. Fiéis frequentadores da catedral de comprimento imenso,
a que se assemelham as lojas tépidas.
O poeta sente-se cercado (emparedado).
O poeta revela consciência de que as lojas tépidas que o “cercam”
se assemelham a uma catedral de comprimento imenso.
Ou seja: uma das origens do cerco que o afeta vem do lado religioso, outra
vem do lado do desequilíbrio social.
  O chorar dos pianos.
Espaço imaginado: o chão minado pelos canos.
As burguesinhas do catolicismo resvalam pelo chão minado pelos
canos. São seres desprezíveis, insignificantes.
Personagens imaginadas: as freiras de antigamente, que os jejuns matavam
de histerismo, a que se assemelham às burguesinhas do catolicismo.
O poeta sensibiliza-se com a sorte das burguesinhas do catolicismo, comparando
a sua sujeição aos ditames do seu tempo (submissão
à casa, devotas e beatas, educadas para o piano e as boas maneiras, sem vontade
própria…) com a das freiras do antigamente (sujeitas aos jejuns
e às crises de histerismo).
  Uma fábrica de cutelaria a funcionar. Uma padaria, a trabalhar,
a fabricar pão, libertando um cheiro salutar e honesto.
Um forjador, de avental, ao torno, maneja um malho.
Inferese: os padeiros no fabrico do pão.
O poeta mostra apreciar as coisas autênticas e salutares da vida
(o trabalho do forjador, o fabrico do pão).
Casas de confecções e modas, que resplandecem de luz e abastança. Infere-se: as modistas das casas de confecções e modas. O ratoneiro imberbe (uma criança delinquente) que olha pelas vitrines
das casas de confecções e modas.
O poeta revela a sua intenção de intervir na sociedade: idealiza
escrever um livro que exacerbe, que cause impacto.
O poeta exprime o seu conceito de poética: a literatura deve exprimir
o real através da análise.
O poeta mostra pouca simpatia pelas casas de confecções e
modas, devido à dissonância que elas representam no antro de
contradições que é a cidade.
A palidez romântica e lunar que provoca reverberos (tonalidades)
nas longas descidas.
  As longas descidas da cidade, marcadas com reverberos de esguia difusão,
de uma palidez romântica e lunar.
O poeta acrescenta informação sobre o seu conceito de poética:
escrever versos magistrais, salubres e sinceros e poder pintar com eles
pormenores do espaço da cidade, tais como as subtilezas provocadas
pela luz nas longas descidas.
  Loja de luxo, com balcões de mogno, onde se vendem xales com debuxo. Pessoa lúbrica, como grande cobra, espartilhada, magnética
a atrair o luxo, escolhe uns xales com debuxo.
O poeta revela aspereza perante os que, bafejados pela sorte, atraem ao
luxo.
    A velha, de bandós, de vestido com traîne (acrescento farto
e longo, a arrastar pelo chão), com barras verticais, a duas tintas,
a imitar um leque antigo aberto.
Os mecklemburgueses (Mecklenburg, unidade política alemã,
de regime latifundiário, aristocrático e autoritário),
os indivíduos com o mesmo estatuto da velha de bandôs, que
perto dela “escarvam” à vitória (ironia, para exprimir
que eles, através dela, têm sucesso e usufruem de boa vida).
O poeta contrapõe a ostentação e o luxo à
desgraça e à miséria (através da velha de bandós
e dos mecklemburgueses que a acompanham).
  Lojas da moda, onde clientes e caixeiros interagem no ato comercial,
desdobrando
tecidos estrangeiros.
Plantas ornamentais a secar nos mostradores da
loja. Flocos de pós de arroz que pairam, sufocadores.
Clientes e caixeiros, nas lojas da moda. Os caixeiros requebram-se, desfazem-se
em boas maneiras, em nuvens de cetins, para venderem os seus artigos.
O poeta mostra não concordar com o comportamento dos clientes das
lojas da moda.
Passou tempo, é altura de fechar as lojas, tudo passa e cansa. Os candelabros, como estrelas, apagam-se, pouco a pouco. As frontarias
dos prédios, de onde estão suspensos candelabros. As armações
fulgentes, que brilhavam com a luz, tornam-se mausoléus quando ela
se apaga.
Um cauteleiro regouga, rouco, solitário. O poeta dá atenção aos mais fracos, neste caso ao
cauteleiro, que regouga, rouco, solitário.
  As esquinas, onde pede esmola o velho professor de latim (símbolo
do abandono a que chegaram os valores culturais do país).
O homenzinho idoso, calvo, eterno, sem repouso, que exclama “Dó
da miséria!… Compaixão de mim!…”, e nas esquinas
pede esmola, é o velho professor de latim do poeta.
O poeta mostra compaixão pelos desfavorecidos, no caso concreto
o seu velho professor de latim, e repúdio pelo desprezo a que, simbolicamente,
foram deitados os valores culturais do país.

Cenário IV: Horas Mortas (Noite Segura)

TEMPO ESPAÇO PERSONAGENS ESTADOS DE ALMA DO POETA
É noite de céu limpo.
Os astros, com olheiras,
libertam lágrimas de luz.
As ruas estreitas, ladeadas
por prédios com trapeiras,
são longos corredores, que
têm por tecto fundo o oxigénio,
o ar (o céu).
As trapeiras, separadas
pelas ruas estreitas. Os
astros, com olheiras, libertam
lágrimas de luz.
Personagens imaginadas: os
astros, solidários com os
homens conscientes, chorando
lágrimas de luz.
O poeta, em face da realidade, deixa-se dominar pelo desejo de evasão.
Ele diz-se enlevado pela quimera azul de transmigrar, de passar a outro
espaço-tempo positivo, que não o magoe como aquele em que
vive.
A cidade às escuras.   Portões e arruamentos particulares, lajes onde se ouve cair um
parafuso, taipais que se colocam, fechaduras a rangerem, uma caleche de
luzes acesas.
O poeta mostra-se impressionado com os portões e os arruamentos
das propriedades particulares abastadas.
Consciência dos desequilíbrios sociais.
O poeta, de tão marcado pela realidade, torna-se assustadiço,
a pontos de se deixar espantar pelos “olhos sangrentos”, as luzes
de uma caleche.
Tempo de silêncio. As fachadas das casas que parecem linhas de uma pauta.
As notas pastoris de uma longínqua flauta sobem, no silêncio,
infaustas e trinadas.
Personagem inferida: nota-se a presença de um tocador de flauta. O poeta revela consciência de ínfimos pormenores da cidade,
como a dupla correnteza augusta das fachadas e as notas pastoris, tristes,
de uma longínqua flauta.
O poeta mostra ânsia e saudade pelo ambiente pastoril.
  Espaço visionado: um mundo perfeito, castíssimas esposas,
mansões de vidro transparente.
Personagens visionadas: castíssimas esposas, em mansões
de vidro transparente.
O poeta aspira à imortalidade (“Se eu não morresse,
nunca!”).
O poeta dá mais informação sobre o seu conceito de
poética: procurar e alcançar, eternamente, a perfeição
das coisas.
O poeta perde-se a sonhar com um mundo perfeito (evasão da realidade,
já que deseja imortalidade e perfeição, mas sabe que
é mortal e imperfeito), com castíssimas esposas dispostas
em mansões de vidro transparente.
  Espaço visionado: família, filhos, mães e irmãs
estremecidas, vivendo em habitações translúcidas e
frágeis.
Personagens visionadas pelo poeta: filhos, mães, irmãs estremecidas. O poeta sonha uma realidade completamente diferente da que o afeta, com
família, filhos, esposas e irmãs estremecidas, vivendo em
habitações translúcidas e frágeis (evasão
pela via estética).
O poeta, porque tem consciência da realidade, mas nada pode fazer
contra ela, contrapõe-lhe um mundo de contornos sonhados.
  Espaço imaginado: situado no futuro, quando as frotas dos avós
e os nômades ardentes explorarem todos os continentes e seguirem pelas
vastidões aquáticas.
Personagens imaginadas: a raça ruiva do porvir, os avós
dirigindo as suas frotas, os nômades ardentes.
O poeta sonha com a raça ruiva do porvir.
O poeta sonha explorar todos os continentes e seguir pelas vastidões
aquáticas.
O poeta conta, para consumar os seus fins, com o contributo das frotas dos
avós e de nômades ardentes (o dinamismo do passado português),
cuja formação idealiza.
O poeta sonha explorar todos os continentes e seguir pelas vastidões
aquáticas.
Tempo imaginado: a treva, onde há folhas das navalhas e gritos
de socorro estrangulados (de que é símbolo a escuridão
da noite real em que o ooeta se move).
O vale escuro das muralhas, sem árvores, onde vivem os emparedados.
Espaço imaginado: treva, folhas de navalhas, gritos de socorro estrangulados.
Os emparedados (o poeta e todos os seres que adquirirem o grau de consciência
dele), que vivem no vale escuro das muralhas, sem árvores, entre
folhas de navalhas e gritos de socorro estrangulados, na treva.
O poeta tem consciência de que os indivíduos conscientes,
de Lisboa, do país, do mundo… que lutam contra a realidade
triste e o meio humano deficitário e infeliz que é a realidade
humana vigente, são os emparedados, que vivem no descampado escuro
cercado de muralhas, e entre folhas das navalhas e gritos de socorro estrangulados,
na treva.
Os nebulosos corredores, as ruas.
Os ventres das tabernas, a vida no seu interior.
Os tristes bebedores, de regresso a casa, que, aos bordos sobre as pernas,
cantam com saudade, de braço dado uns nos outros.
O poeta sente náuseas provocadas pelo que vê no interior
das tabernas.
O poeta é sensível à presença dos tristes bebedores
que regressam a casa a cantar, de braço dado uns nos outros.
    Os dúbios caminhantes afastam-se, ficam à distância.
Os cães, sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes, amareladamente
(advérbio que afeta, negativamente, os cães e tudo à
sua volta), parecem lobos.
O poeta, apesar do ambiente inseguro, não receia ser roubado (não
por coragem sua, mas porque, afinal, ele está irmanado, pelo menos
em espírito, com o grupo dos desfavorecidos da sorte, seus potenciais
ladrões).
  As escadas dos prédios, revistadas pelos guardas.
O andar superior dos prédios, onde as imorais, em roupão,
tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.
Os guardas revistam as escadas, caminham de lanterna,
carregam imensas chaves.
As imorais, em roupões ligeiros, tossem, fumando sobre a pedra das
sacadas, no andar superior dos prédios revistados pelos guardas,
enquanto esperam
quem as procure.
 
  Os prédios sepulcrais, numa massa irregular, com dimensões
de montes.
  O poeta revela a consciência de que a dor humana busca amplos horizontes
(soluções), mas atravessa marés de fel, como um sinistro
mar (a realidade).

Em síntese, podemos constatar que:

A) O tempo

Relativamente ao tempo, revela-se:

– Consciência da sua passagem, entre as Ave-Marias (ao cair da tarde),
a Noite Fechada (o acender das luzes), o Ao Gás (fixação
da noite) e as Horas Mortas (noite segura).

– Consciência de um tempo real, progressivamente negativo: o anoitecer,
as sombras, a preparação da noite, o cair das badaladas, o fim
da tarde, a hora de jantar, a hora de acender as luzes, a temperatura baixa,
a noite que esmaga, a palidez romântica e lunar, a ocasião de fechar
as lojas, a noite de céu limpo em que os astros libertam lágrimas
de luz, a cidade às escuras, o tempo de silêncio.

– Consciência de que ao tempo real, negativo, se contrapõe um
tempo de evasão (o tempo dos Descobrimentos) e um tempo imaginado de
treva (folhas das navalhas e gritos de socorro estrangulados, na escuridão
da noite real em que o poeta se move).

– Consciência de que o tempo real negativo diz respeito, simbolicamente,
a um tempo, primeiro de decadência nacional, e depois de decadência
civilizacional, correspondendo a evasão a uma necessidade de compensação
da situação (ao mesmo tempo se aponta uma chave para a solução
dos problemas), mas não se deixando antever grande margem para otimismo.

– Consciência da progressão e do adensar da noite: à medida
que o tempo passa e o bulício diminui, aumenta o sentimento de dor, angústia
e frustração.

– Consciência de que o pessimismo instalado não dá mostras
de recuar.

B) O espaço

Predomina o ambiente físico real, revelando-se a consciência
do poeta/narrador acerca de: ruas, Tejo e maresia, céu baixo e de neblina,
gás extravasado, edifícios com chaminés, cor monótona
e londrina, carros de aluguer, casas que parecem gaiolas, boqueirões,
becos, cais a que se atracam botes, escaleres de um couraçado inglês,
hotéis da moda, um trem de praça, as varandas das casas, as lojas,
os arsenais e as oficinas, o rio que reluz viscoso, as cadeias, o aljube, as
prisões, a velha Sé, as Cruzes, os andares iluminados, as tascas,
os cafés, as tendas, os estancos iluminados, a lua, duas igrejas, um
largo, as construções retas, as íngremes subidas, o toque
dos sinos, o Largo com a estátua de Camões, o espaço da
rua, o Quartel Militar, um palácio diante de um casebre, os Quartéis
de Cavalaria, a cidade a esvaziar-se, os lampiões, as montras das ourivesarias,
os magazines, a brasserie, os passeios de lajedo, os hospitais, as embocaduras,
as lojas, sons de pianos, candelabros que se apagam, frontarias dos prédios,
esquinas, ruas estreitas, prédios com trapeiras, astros que libertam
lágrimas de luz, portões e arruamentos particulares, lajes onde
se ouve cair um parafuso, taipais, uma caleche de luzes acesas, fachadas das
casas, ruas como nebulosos corredores, tabernas, escadas dos prédios,
o andar superior dos prédios, as sacadas de pedra.

Segue-se o ambiente humano real, com: bulício de gente, gente que parte
de comboio, pessoas em viveiros (em casa), dois dentistas que arengam, os guardas
das prisões, velhinhas e crianças recolhidos no aljube, os ourives,
os emigrados às mesas da brasserie, os pobres mal vestidos e os doentes,
um cutileiro, a fábrica de cutelaria a funcionar, a padaria a fabricar
pão, as casas de confecções e moda, a loja de luxo com
balcões de mogno, as lojas da moda, as plantas ornamentais nos mostradores
das lojas, um velho professor de latim que pede esmola, os trabalhadores da
noite, o som de uma flauta triste, a vida interior das tabernas, os guardas
que revistam os prédios, as imorais em roupão que tossem e fumam.

Há ainda particularidades acerca do espaço físico de evasão
(positiva: Descobrimentos, Idade Média; negativa: espaço da cidade,
com práticas repressivas da Igreja da Inquisição),

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