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Os ratos, de Dyonélio Machado

by Lucas Gomes

Análise da obra

Publicado em 1935, Os Ratos, do escritor gaúcho Dyonélio Machado, tornou-se uma das obras mais influentes da 2ª geração do Modernismo, além de ter sido homenageada com o prêmio Machado de Assis.

Sua narrativa é apresentada numa linguagem simples, direta, rápida, com um tal domínio da expectativa do leitor que lembra o trabalho de Camilo Castelo Branco em Amor de Perdição. A preocupação com a boa linguagem não afasta o escritor da realidade urbana. Assim, os diálogos entre as personagens retratam a língua coloquial, sem preocupação de formalidade. Cada um dos 28 capítulos tem sua própria célula de suspense, que será resolvida no máximo no seguinte, em que obrigatoriamente surgirá outra.

Há na obra uma cruel crítica à maneira como o dinheiro acabou se tornando a mola propulsora das relações sociais, comandando a respeitabilidade, a ética, a dignidade e até injusta e facilmente, quando não arbitrária e despoticamente, degradando-as, detonando-as. Em suma, todos esses aspectos fazem de Os Ratos uma das obras mais nobres de nossa literatura.

O título Os Ratos é uma referência ao drama psicológico de Naziazeno Barbosa, protagonista da história, depois de ter conseguido o dinheiro para saldar a dívida com o leiteiro. Naziazeno, meio dormindo, tem o seguinte pesadelo: os ratos estão roendo o dinheiro que ele deixara à disposição do leiteiro sobre a mesa da cozinha.

Os ratos, ganhando a possibilidade de roerem dinheiro, simbolizam o consumismo da cidade grande, o câncer que aniquila os sonhos dos proletários, a desvalorização da solidariedade em função de padrões materiais que elevam o dinheiro à condição meta principal a ser alcançada.

O desenrolar do drama do funcionário público endividado e ainda com vergonha de olhar os credores que passam no cotidiano atravessa os capítulos e nos traspassa de angústia. O dinheiro do leite, a doença do menino, a fome do protagonista… Enfim, um empréstimo. Percebemos, na vida de Naziazeno, que ter conseguido o dinheiro para quitar a conta do leite é apenas o início de uma nova dívida, a expectativa de mais um dia caminhando em busca de uma solução.

O livro Os ratos inicia com a advertência do leiteiro de que cortará o fornecimento de leite caso não receba o pagamento até o dia seguinte. Apenas vinte e quatro horas… Naziazeno sente o desespero da mulher, a vergonha diante dos olhares da vizinhança que presenciam o ultimato.

O leitor é invadido pela espiral das angústias do fim do romance. O descanso de Naziazeno não é verdadeiro e não convence. Sabemos que amanhecerão novas inquietações e dívidas para o funcionário, novas cobranças para o chefe de família e novos olhares reprovadores.

A mediocridade do papel do protagonista no mundo se contrasta com a forma brilhante como Dyonélio Machado desenvolve a trama e nos envolve no drama do protagonista com diretas reflexões inseridas em nossas rotinas. A reviravolta na narrativa ocorre quando, ao anoitecer, pensamos que o caso está encerrado e percebemos que as vivências ecoam e retornam em ousadas lembranças dos movimentos do dia sob novos olhares. Sentimos com força a angústia de ser e de permanecer próximo do protagonista do escrito literário.

Os Ratos se enquadram, dentro do movimento modernista brasileiro, no chamado Romance de 30: denominação dada a um conjunto de obras de ficção produzidas no Brasil a partir de 1928, ano de publicação de A Bagaceira, de José Américo de Almeida.

A obra é um romance social por excelência. O drama urbano da classe média baixa encontra protótipo perfeito em Naziazeno Barbosa, o herói fragilizado pela preocupação de cumprir um papel social no caos urbano em que vive.

Tempo

Tempo cronólogico – Em Os Ratos, as ações dos personagens acontecem no tempo cronológico ou linear, marcado pela passagem das horas, durante um dia de peregrinação de Naziazeno. O passar das horas é uma preocupação cruciante para o herói que não pode voltar para casa sem o dinheiro do leiteiro.

Tempo Psicológico – O tempo psicológico (interior, aquele que transcorre dentro dos personagens, marcado pela ação da memória, das reflexões) é valorizado principalmente nos últimos capítulos do livro.

O romance de Dyonélio provoca logo a sensação, se colocado no seu contexto histórico, de excesso ou até, deslocando a observação, de insuficiência. Digamos que o autor, ao lançar mão à tarefa compositiva, dispunha objetivamente de duas formas romanescas dominantes: por um lado, o romance documentário, em pleno auge na época de envolvimento intelectual com a realidade do País, e pelo outro o romance psicológico, tributário da revisão intuicionista da categoria temporal, descentrando o enfoque narrativo de fora para dentro do sujeito. O narrador dominante focaliza do externo os acontecimentos, fornecendo uma impressão de materialidade real, histórica dos fatos: seu discurso é seco, objetivo, documentário. Seu posicionamento é o de um cronista das desventuras do modesto funcionário e, como bom cronista, remete quase obsessivamente para a categoria do tempo, um tempo inexorável cuja transposição discursiva gera e dilata o sentimento de ansiedade do personagem: O dia continuou… O dia não parou (OR8, p.65): a representação do dia de Naziazeno é assim marcada por referências diretas a inúmeros relógios que fornecem indicações temporais. É importante notar sempre o jogo de contrastes: o protagonista não tem relógio (já o empenhou) e a partir dessas indicações às vezes vagas – outras vezes empíricas, como a passagem de um bonde etc. – ele depreende uma sua noção aproximativa de tempo. Desse recorte também se delineiam dois mundos a confronto, um dominado pelo tempo externo, convencional dos relógios que se impõe definitivamente como emblema técnico, do moderno e urbano a partir das últimas décadas do século XIX (e é o de que o narrador dá conta), outro que é o tempo interno à variabilidade dos estados psicológicos que é uma projeção imperfeita (do ponto de vista do artifício) e humana do primeiro (e é o tempo vivencial de Naziazeno).

Cenário

O cenário de Os Ratos é Porto Alegre.

Foco narrativo

O romance Os Ratos é narrado na terceira pessoa (narrador onisciente). O narrador (o próprio autor) relata as ações de todas as personagens, concentrando suas observações no íntimo do herói, revelando ao leitor as suas angústias interiores e psicológicas.

Temática

Luta por dinheiro – O tema principal de Os Ratos é a luta desesperada de Naziazeno para conseguir, em um dia, dentro de uma cidade grande e insensível, dinheiro para saldar uma dívida com o leiteiro. Mistura-se a essa luta a ansiedade, o desespero, a sensação de fragilidade e inutilidade do ser humano que não tem recursos sequer para garantir o sustento digno da família.

Lembrança do passado – O passado, principalmente a infância, mistura-se ao presente de Naziazeno Barbosa. O enredo é arquitetado numa superposição de planos: os pensamentos e reminiscências do herói em confronto com a crueza da realidade citadina. Presente e passado alternam-se na composição da história.

Drama

O drama principal do romance não se concentra no leiteiro, nem nos ratos ou no dinheiro: concentra-se na dificuldade para conseguir a quantia desejada, respeitando-se o limite de tempo e espaço.

Personagens

As personagens criadas por Dyonélio Machado são esféricas, densas. Não há preocupação com aspectos exteriores, aflorando o lado íntimo ou psicológico.

Naziazeno é um herói impotente diante de uma situação aparentemente simples: conseguir dinheiro para garantir o bem-estar da família (principalmente do filho pequeno). É o homem comum rebaixado à condição de miserável, exposto à humilhação e ao anonimato que caracterizam o viver das aglomerações urbanas.

Naziazeno Barbosa – Modesto funcionário público, Naziazeno é o herói da história. Fragilizado pela condição de penúria material, atormentado pela necessidade de saldar uma dívida com o leiteiro.

Adelaide – Dona de casa, esposa de Naziazeno. Convive, diariamente, com as dificuldades de um orçamento familiar minguado, insuficiente para o sustento digno da família.

Mainho – Filho de Naziazeno e Adelaide.

Dr. Romeiro – Diretor da repartição pública onde Naziazeno trabalha. Há suspeitas de corrupção sobre ele. Certa vez, emprestou dinheiro a Naziazeno.

Otávio Conti – Advogado.

Dr. Mondina – Falso advogado; bajulado por conta do dinheiro de que dispõe. Foi quem desembolsou o dinheiro para o grupo (Naziazeno, Alcides e Duque), permitindo ao herói voltar para casa com a quantia devida ao leiteiro.

Rocco – Agiota para quem Alcides já deve uma grana. Nega-se a fazer novo empréstimo.

Fernandes – Agiota que se nega a emprestar dinheiro (cem mil réis) a Duque.

Assunção – Agiota da Rua Nova. Nega-se a emprestar dinheiro.

Alcides – Amigo de Naziazeno, solidário com ele na pobreza e nas dificuldades, fazendo tudo para ajudá-lo.

Duque – Amigo de Naziazeno e de Alcides. Inspira confiança porque tem sempre uma solução para os problemas que envolvem dinheiro.

Fraga – Vizinho de Naziazeno. Parece ter uma vida bem arrumada, não precisando passar pelos vexames financeiros por que passa o protagonista.

Costa Miranda – Amigo de Naziazeno; emprestou-lhe, na rua, cinco mil réis para o almoço.

Martinez – Dono da loja de penhores onde o anel de Alcides estava guardado. Mostrou boa vontade e foi, à noite, abrir a loja para devolver a jóia.

Dupasquier – Dono de uma joalheria. Examina o anel de Alcides e oferece trezentos e cinqüenta mil réis. Quando descobre que a proposta é de penhor, desiste do negócio.

Enredo

PARTE I

Capítulos 1 e 2 – Através do diálogo entre Naziazeno Barbosa e sua esposa, Adelaide, o autor mostra a situação da família: por falta de pagamento, já suspenderam o fornecimento de manteiga e, agora, o leiteiro ameaça não trazer o leite das crianças. Enquanto a mulher argumenta que é possível viver sem gelo e sem manteiga, mas sem o leite das crianças, não, Naziazeno acha que a situação é de considerar o leite como supérfluo.

Aparece o vizinho Fraga. Naziazeno tem a impressão de que ele possui uma vida bem arrumada. O leiteiro, o padeiro, depois de fazerem a distribuição dos seus produtos, ainda conversam um pouco com o Fraga. Ainda no meio do mês, ele já propõe pagamento aos dois, como se não tivesse problemas financeiros.

Pensamentos e recordações de Naziazeno enquanto perfaz o caminho para o trabalho, de bonde. A impressão que lhe causam os companheiros de viagem. A recordação de que a mulher, Adelaide, tem um ar de fragilidade, de fraqueza que mantém acesa a chama da voluptuosidade. Mas, na vida prática, essa fragilidade atrapalha.

O segundo capítulo encerra-se com o pensamento obsessivo de Naziazeno no leiteiro, na frase que o atormenta: “Lhe dou mais um dia”.

Capítulo 3 – Naziazeno, depois que desce do bonde, bola um plano para arranjar o dinheiro para o leiteiro. Vai pedi-lo emprestado ao diretor. Já uma vez fez isso, quando da doença do filho, para pagar os remédios. O diretor emprestou. Mas muitos riram dessa ingenuidade. Ter coragem de emprestar dinheiro para o Naziazeno? Só tinha uma explicação: era novato, não conhecia todo o pessoal. Naziazeno pagou o empréstimo, mas ainda faltaram alguns trocados que o diretor perdoou, não fez questão.

Enquanto espera, fica desanimado. Claro que o diretor não vai emprestar-lhe o dinheiro. Que história vai-lhe contar? A verdadeira, a do leiteiro? Ou outra vez a história da doença do filho?

Capítulo 4 – Naziazeno cria coragem e expõe o problema ao diretor. Ele lhe empresta o dinheiro: sessenta mil réis (deve apenas cinqüenta e três ao leiteiro). Volta para casa e entrega o dinheiro à mulher, ocultando-lhe o modo como o conseguiu.

Tudo imaginação. O diretor sequer chegou à repartição. Naziazeno não consegue trabalhar. Finalmente chegou o diretor. É o momento de pedir-lhe o empréstimo.

Capítulo 5 – A confiança de obter o empréstimo com o diretor começa a abalar-se. Enquanto o diretor demora-se na secretaria, Naziazeno vai até o centro da cidade. Vai à procura do Duque – ele tem sempre uma solução mágica para os problemas de dinheiro. Chega ao mercado e não encontra o Duque nos lugares habituais. Resolve esperar. Aparece o Alcides.

Capítulo 6 – No Café, ao lado de Alcides, enquanto espera o Duque, Naziazeno vai falando das impressões que tem das pessoas. Cansa-se de esperar o Duque no Café. Relembra um caso antigo, da infância, quando estivera doente, quase à morte. A mãe fizera uma promessa: Naziazeno teria que andar um ano vestido de Santo Antônio. Foi um vexame.

Naziazeno desiste de esperar o Duque. Vai para a repartição. O Alcides sugere uma visita aos cafés do centro. Vem-lhe a idéia de inutilidade, de falta de aptidão para ganhar dinheiro. O Duque consegue cavar, fazer um “biscate”, arranjar dinheiro. Ele não. Por quê?

Alcides arma um plano: jogar no bicho. Com que dinheiro? Naziazeno deve voltar à repartição e “dar a facada” no diretor. Ele, Alcides, se encarregará do jogo.

Capítulo 7 – Enquanto espera o diretor, Naziazeno perde-se em pensamentos e recordações. Finalmente, o “homem” chega. A esperança ressurge. “O senhor pensa que eu tenho alguma fábrica de dinheiro? Quando o seu filho esteve doente, eu o ajudei como pude. Não me peça mais nada. Não me encarregue de pagar as suas contas: já tenho as minhas”.

O diretor vai embora, os funcionários debandam. Naziazeno também.

Depois de tudo, ficou-lhe aquela frase na cabeça: “Não lhe pago as dívidas”. Como contar tudo aquilo ao Alcides? Este plano fracassou. Como idealizar outro? Tem uma preguiça doentia. E o pior é que o sol já vai virando para a tarde. Meio dia perdido. Urge pensar numa solução. Como conseguir sessenta mil réis? Pensa em renunciar. Mas é preciso entregar o dinheiro ao leiteiro.

Capítulo 8 – Alcides propõe que Naziazeno vá atrás do Andrade, cobrar-lhe uma dívida. É o resto de uma comissão. É ali na rua Coronel Carvalho. Naziazeno topa. O calor infernal da tarde mantém o seu corpo suado. À medida que se aproxima da casa, vai ficando gelado. Deve ser porque ainda não almoçou. Ou seria a expectativa? O número da casa do Andrade está próximo. Melhor seria não o encontrar. A rua é de gente rica. Claro que o Andrade tem cem mil réis. De repente, o número procurado. Mas é o final da rua. A casinha em que Andrade mora é humilde. A esperança de conseguir dinheiro ali diminui.

Capítulo 9 – Naziazeno bate à porta de Andrade. Ele abre. Explica tudo: não deve exatamente ao Alcides (que ele conhece como Kônrad). Há uma comissão, sim, duma transação de um automóvel, mas a parte que Andrade lhe devia já pagou. Os outros cem mil réis, Alcides tem que recebê-los de Mister Rees. Naziazeno compreende tudo. Despede-se.

Capítulo 10 – Naziazeno, enquanto volta a pé ao encontro de Alcides, vai pensando. Era mais ou menos uma hora da tarde. Se tivesse conseguido o dinheiro com o Andrade, a primeira providência teria sido almoçar. Agora, é encontrar o Alcides e ir atrás do Mister Rees, um alto funcionário bancário.

Alcides não se encontra no café. Naziazeno procura-o noutros cafés ali perto. Nada. Tem, então, uma idéia: o Banco é ali perto. Por que não dar um pulinho até lá? Com certeza, Alcides vai aprovar essa idéia. Ao entrar no banco, fica em dúvida. Teria mesmo direito de cobrar Mister Rees? E se fosse “armação” do Andrade?

Um alívio: Mister Rees está para o Rio de Janeiro. Agora, é tentar almoçar e partir para outro plano. Quem sabe o Duque esteja no Restaurante dos Operários? O problema é conseguir cinco mil réis para o almoço. Como? Talvez no escritório do Dr. Conti.

Capítulo 11 – Naziazeno, depois de tentar falar com o Dr. Otávio Conti (na verdade, nem chegou a encontrá-lo), desiste. Voltando, encontra um seu conhecido, o Costa Miranda. Foi a salvação: Costa empresta-lhe cinco mil réis para o almoço.

Capítulo 12 – Naziazeno, com os cinco mil réis no bolso, fica indeciso: vai almoçar no Restaurante dos Operários ou em frege do mercado? De repente, uma idéia nova perturba-o: e se tentasse a sorte? Por que não? Está com o estômago oco, mas não pode perder essa oportunidade. Ele vê o dinheiro multiplicando-se e, em função disso, imagina a volta feliz para casa. Com este pensamento, dirige-se à tabacaria, onde, nos fundos, há um salão de jogos. Entra, vê o guichê do “bicho” vazio, dirige-se para o salão de onde lhe chega aos ouvidos um ruído fininho de fichas.

Capítulo 13 – Naziazeno, nervosamente, tira os cinco mil réis do bolso e deposita a cédula no número 28. E o milagre acontece, tudo resolvido assim num segundo: os cinco mil réis transformaram-se em cento e setenta e cinco. Agora, é comprar mais fichas, fazer um jogo estudado. Os lances sucedem-se. Naziazeno ora ganha, ora perde. As fichas, pouco a pouco, vão sumindo das suas mãos. Tem agora duas fichas. Toma uma resolução súbita: aposta todas num único número. E perde.

Capítulo 14 – Naziazeno sai da tabacaria, ganha a rua, e dirige-se a uma grande casa atacadista. Àquela hora, o comércio está fechando as portas. Um homem com cara de preocupação está fechando o armazém. Naziazeno, então, dirige-lhe a palavra:

– Queria pedir-lhe mais um favor. Só a grande necessidade me traz aqui na sua casa, antes de resgatar aquele vale. Não tenho a quem recorrer e preciso com urgência de sessenta mil réis.

– Não me é possível.

– Assino-lhe um vale. Venho pagar no fim do mês.

– Impossível.

Naziazeno insiste. Nada. Os dois seguem pela mesma rua, e Naziazeno vai-lhe falando de dificuldades, contando-lhe coisas, insistindo no empréstimo. O outro entra no bonde e vai embora.

PARTE II

Capítulo 15 – Naziazeno caminha pela rua deserta. As casas estão todas fechadas. E assim, fechadas, crescem de importância e de mistério. Seu destino é o mercado. Enquanto anda, vai observando a rua, as casas, a escassez de automóveis, o silêncio. E a silhueta do mercado ao longe, para onde se dirige, vai-se aproximando à medida que caminha.

Capítulo 16 – Naziazeno chega ao mercado. Num dos cafés, o Alcides chama-o. Conversam sobre o que se fez naquele dia. Naziazeno conta-lhe sobre o Andrade e sobre o jogo na tabacaria. O Duque, finalmente, está ali, em outra mesa, conversando com um indivíduo velhusco.

Naziazeno fala da fome, do dia inteiro sem comer. Alcides paga-lhe um leite. Exposto o problema de Naziazeno, Duque sugere um empréstimo com um agiota – o mesmo para quem Alcides já deve uma grana. O próprio Alcides encarrega-se de ir atrás do Rocco. No relógio da Prefeitura, já são seis e vinte.

Capítulo 17 – Os três (Naziazeno, Duque e o cidadão velhusco (o “doutor” Mondina) sentam-se num café, à espera de Alcides (que foi ao agiota). O Alcides volta. O agiota suspendeu temporariamente os empréstimos.

Duque deixa Alcides e Mondina no café e sai com o Naziazeno. Seguem em silêncio. Assim andando, ao lado do amigo, Naziazeno sente-se mais confiante. Vão à casa de seu Fernandes – um agiota.

– Nós precisamos com urgência de cem mil réis.

– Impossível.

Duque arrasta o amigo a outro agiota. Eles vão agora à rua Nova, ao agiota Assunção. Nova negativa. Retornam ao café.

A idéia é abordar o próprio “dr.” Mondina, o falso advogado. De início, Mondina nega-se. Mas surge a idéia de tirar um anel de Alcides (anel de bacharel) que está penhorado por um valor muito baixo. Mondina anima-se. Será que ainda dá tempo?

Capítulo 18 – Os quatro (Naziazeno, Duque, Alcides e Mondina) vão à casa de penhores. Será que já está fechada?

Estava. E agora? Alcides propõe: dará a cautela do penhor ao Mondina. No dia seguinte, ele voltará ali e recuperará o anel. Mas o dinheiro tem que ser dado agora. Mondina parece pressentir o “truque”, o “golpe”. Alcides tem cara de vigarista. Duque intervém: não pode ser assim. Vamos encontrar outra solução. Alcides sugere: e se fôssemos à casa de Martinez, o dono da loja de penhores? Telefonam, e o seu Martinez diz que pode recebê-los em sua casa. No percurso para a casa de Martinez, Naziazeno vai pensando. Será que o homem reconhece Alcides? E o anel? Será que se lembra do Anel? Chegam finalmente.

Capítulo 19 – Martinez, depois de ouvir Alcides sobre a proposta de resgatar o anel penhorado, pergunta pela cautela:

– O senhor trouxe a cautela aí?

Alcides anda sempre com os seus papéis. Martinez examina o papel e, depois, devolve-o. Depois de algum tempo, talvez consultando a esposa, Martinez diz que sim, que é possível ir à loja resgatar o anel.

A caminhada é feita em silêncio. Naziazeno conscientiza-se de que já é noite, embora lá em cima, no céu, ainda seja possível ver uma arzinho do dia.

Chegam. Martinez abre a porta, acende a luz. Convida-os a entrar. Com a cautela na mão, o cofre aberto, faz a procuração. Pronto. Achou o anel. Mondina já havia passado o dinheiro da penhora ao Alcides, que o passa agora ao senhor Martinez. Ele confere. Entrega, finalmente, o anel. Alcides passa-o a Mondina, que se detém a examinar a jóia.

Martinez toma o rumo da praça, de volta para casa. Despede-se ali de Alcides, de Mondina, de Duque e de Naziazeno.

Capítulo 20 – Depois que Martinez vai embora, o grupo fica parado, sem saber o que fazer. Àquela hora, tudo está fechado. Duque sugere uma visita ao Dupasquier da joalheria. Por sorte, a vitrina está aberta. Entram. Dupasquier, meio desconfiado, ouve a proposta, analisa detidamente o anel, pergunta quanto Alcides quer por ele.

– Ele não deixa por menos de quinhentos mil réis – sugere Duque.

– Não dou nem quatrocentos.

– Quatrocentos e cinqüenta – solicita Duque.

– Não. Não dou mais do que trezentos e cinqüenta mil réis.

Aceitaram. Mas quando falaram que era penhor, Dupasquier desistiu. O grupo não sabe o que fazer. Alcides sugere um dos agiotas, Assunção e Zeferino. Duque opina:

– Vamos combinar isso num café.

A proposta do Duque é a seguinte: entregar o anel ao “dr.” Mondina como garantia de mais cento e vinte mil réis. Assim, o anel está empenhado por trezentos mil. No dia seguinte, ele e Alcides irão procurar Mondina, empenharão o anel por trezentos mil réis e, então, devolverão o dinheiro.

Capítulo 21 – Naziazeno chega a casa, entra. São nove horas da noite. Adelaide estava preocupada. Todo o dia o marido ficara ausente. Ele mostra os embrulhos. Trouxera-lhe o sapato que estava no conserto. Para surpresa de Adelaide, ele trouxera também manteiga, queijo e dois leõezinhos de borracha para o filho, Mainho.

Enquanto esquenta a comida, Adelaide pergunta:

– Onde é que arranjaste o dinheiro? Conseguiste “tudo”?

Ele diz que sim. Conseguiu por intermédio do Alcides e do Duque. Cinqüenta e quatro mil e setecentos. Põe todo o dinheiro em cima da mesa. Está com sono. Separa os cinqüenta e três mil exatos do leiteiro. Guarda o resto no bolso do colete. Está com sono. São nove e meia da noite.

Capítulo 22 – Naziazeno imagina a reação do leiteiro ao receber, na manhã seguinte, o dinheiro. Vem à tona, na conversa com Adelaide, a situação do Dr. Romeiro, diretor da repartição em que Naziazeno trabalha.

Ouve-se um baque lá fora. Eles levantam a cabeça, atentos. É o portãozinho. Naziazeno vai fechá-lo. Quando volta, reclama do frio.

– Por que tu não vais deitar?

– Não quero dormir com o estômago muito cheio.

Surge a preocupação de levantar cedo no outro dia para entregar, em mãos, o dinheiro ao leiteiro.

– Porque não botava em cima da mesa da cozinha, junto com a panela do leite?

Naziazeno aprova a idéia. E fica pensando na surpresa do leiteiro ao encontrar o dinheiro.

Capítulo 23 – Adelaide acabara de pôr a panela do leite na ponta da mesa. Ao lado da panela, Naziazeno pusera o dinheiro para o leiteiro. Está preocupado. Deveria por algum peso sobre as notas?

– Tu achas necessário? Não há vento aqui dentro.

– Não, não é preciso.

Naziazeno não consegue abandonar a cozinha.

É interessante: passou-lhe o sono agora. É capaz de ler um pouco… Mas muda de idéia: não lhe apetece agora nenhuma leitura… de nenhuma daquelas coisas que poderia ler…

Naziazeno acabou indo deitar-se. A mulher dorme, mas ele fica a recordar a “maratona” por que teve de passar para conseguir o dinheiro. Está acordado. Entretanto queria dormir. “Tem necessidade de um sono longo, longo…

Fica a ouvir os barulhos da noite: o vento… o bonde passando… o bonde voltando… de novo o vento… Precisa dormir, descansar a cabeça.

Serão onze horas? Meia-noite?

Uma pancada, longe, sonora, indica uma hora.

Já lhe parece um século aquela noite e é apenas uma hora!…

Precisa dormir, precisa descansar. Tem de aproveitar esse resto de noite. É estranho: um cansaço tão grande, e não conseguir conciliar o sono…

Capítulo 24 – A falta de sono perturba Naziazeno. A esposa dorme quieta. O filho, Mainho, também. O pensamento fica divagando por várias coisas: a repartição, o seu trabalho, a luz que não o deixa dormir, o médico de Mainho, o “dr.” Mondina. Pensa em Alcides, no anel que o “desapertou”. “Uma providência, aquele anel”. Vem-lhe, na insônia, uma superposição vaga de figuras: o Assunção… Fernandes… Martinez… Duque… Duque arrasta-o de uma lado para outro. Tem um sobressalto: um estalo para o lado da frente. O filho chega também a assustar-se. Adelaide, meio dormindo, nana-o.

“Naziazeno não quis deixar ver que estava acordado”.

Capítulo 25 – A insônia continua. Naziazeno põe-se a pensar em tudo: a chegada a casa… o jantar tranqüilo, como ele sonhara… o dinheiro ali na mesa, acariciado pelo seu olhar… a idéia de deixá-lo ali, sobre a mesa, evitando o confronto direto com o leiteiro. Se houvesse o confronto, viria inimizade. Assim, continuariam amigos.

E o sono? “Ainda não dormiu! Só ele! Só ele sem dormir…”

Procura não pensar em nada, manter os olhos fechados, buscar tranqüilidade.

Capítulo 26 – A insônia persegue Naziazeno. Por estar embrulhado, o calor aumenta. “Sente que vai ficando esperto outra vez”.

Pensa no bonde. A recordação passeia por cenas e pessoas relacionadas à maratona do dia: Duque, Alcides, Mondina, o jornal… os “finalmente” da transação com o Mondina. Alcides está amuado. Hesita em passar o anel para o Duque. Finalmente Mondina tira o dinheiro do bolso. Precisa trocá-lo em notas menores, primeiro no café, depois no Bolão. Pronto: transação encerrada. Duque passa-lhe o dinheiro: sessenta e cinco mil réis.

Naziazeno toma o bonde para casa. Tem de passar no sapateiro para pegar o sapato de Adelaide. Pega. A chegada, enfim, a casa. Adelaide vem até ele.

Capítulo 27 – “Outra vez um silêncio súbito”. Naziazeno fica em dúvida: teria dormido? Passou toda a noite acordado? O ar tem um chiado… Fica muito tempo a ouvir esse chiado sonoro, metálico, fininho.

Agora, distingue nitidamente dois barulhos: o da respiração do filho e aquele chiado lá fora.

De repente, um barulho no forro… Ratos… São ratos. Fica esperando o barulho dos ratos na cozinha. O barulho aumentou: em vários pontos, no forro, o rufar… A casa está cheia de ratos!

“O chiado desapareceu. Agora, é um silêncio e os ratos…”

Há um roer ali perto. O que estarão comendo? É isto! “Os ratos vão roer – já roeram! – todo o dinheiro!…”

Tem um grande desespero. É preciso levantar-se. Mas o barulho cessou. Há só o silêncio. Será que ratos roem dinheiro? É melhor perguntar à mulher. Absurdo. Claro que ratos não roem dinheiro! “Vê os ninhos, os papéis picados, miudinhos, picadinhos… uma poeira”.

“Vai levantar”. Mas onde achar forças? “Está com sono. Mas é preciso reagir”. Parece ouvir a voz da mulher: “Eles roem papel. Dinheiro é um papel engraxado…”

O barulho sumiu. Cessou também o roer. Decerto os ratos já foram embora. Está amanhecendo.

Capítulo 28 – Ao redor de Naziazeno, as coisas vão ficando mais apagadas. “Depois duma trégua, os ratos voltaram a roer”. Com certeza estão roendo a madeira. Seria mesmo madeira? “Talvez depois de consumido o dinheiro, eles passem a roer, a roer a tábua da mesa…”

Agora os ruídos confundem-se. “Está exausto”. Precisa dormir, entregar-se.

“Não sabe que horas são”.

“Mas que é isso?!… Um baque?”

“Um baque brusco do portão. Uma volta sem cuidado da chave. A porta que se abre com força, arrastando. Mas um breve silêncio, como que uma suspensão… Depois, ele ouve que lhe despejam (o leiteiro tinha, tinha ameaçado cortar-lhe o leite…) que lhe despejam festivamente o leite. (O jorro é forte, certamente vem de muito alto…) – Fecham furtivamente a porta… Escapam passos leves pelo pátio… Nem se ouve o portão bater…

E ele dorme.”

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