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Elenco de cronistas modernos (Parte 6), de Rubem Braga

by Lucas Gomes

Elenco de Cronistas Modernos

é uma obra que reúne crônicas de Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector,
Fernando Sabino, Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz e Rubem Braga. Foram selecionadas dez
textos de cada autor, além de breve biografia desses autores.

Crônicas são sempre curtas, tematizando os acontecimentos triviais
da vida. Pode-se observar nestas setenta crônicas o predomínio
do foco narrativo em primeira pessoa, um tom confessional, uma linguagem leve,
o humor e as reminiscências.

Nesta parte veremos

RUBEM BRAGA (1913-1990)

Tinha uma ambição: que suas crônicas divertissem os leitores
e os ajudassem a enfrentar situações difíceis.

Crônicas

1. O sino de ouro
O narrador é transcritor de uma história ouvida de um velho, que
fez o relato sobre o sino com desprezo. Conta que em uma localidade no sertão
de Goiás, há um sino de ouro numa pequena igreja, cujo som puro
se estende, à tarde, pelas matas e cerrados e dá aos homens pobres
do lugar uma “ração de alegria”. Os habitantes acham
que vivem do sino de ouro, não se importam com nada, fazendo somente
o essencial para viver. Não estão interessados em progresso, negócios
ou corrupção. O narrador afirma que ouviu essa história
de um homem velho, que a contou com espanto e desprezo. Depois, o narrador contou
a história para uma criança, cujos olhos diziam que “a coisa
mais bonita do mundo deve ser ouvir um sino de ouro”. O narrador acredita
que Deus, mesmo que não exista, deve ter a mesma opinião. E conclui
que nós, quando crianças, temos, dentro da alma, um sino de ouro
que com o tempo vai virando “lama e podridão”.

Íntegra:

Contaram-me que, no fundo do sertão de Goiás, numa localidade
de cujo nome não estou certo, mas acho que é Porangatu, que fica
perto do rio de Ouro e da serra de Santa Luzia, ao sul da Serra Azul – mas também
pode ser Uruaçu, junto do rio das almas e da serra do Passa Três
(minha memória é traiçoeira e fraca; eu esqueço
os nomes das vilas e a fisionomia dos irmãos, esqueço os mandamentos
e as cartas e até a amada que amei com paixão) -, mas me contaram
que em Goiás, nessa povoação de poucas almas, as casas
são pobres e os homens pobres, e muitos são parados e doentes
indolentes, e mesmo a igreja é pequena, me contaram que ali tem – coisa
bela e espantosa – um grande sino de ouro.
Lembrança de antigo esplendor, gesto de gratidão, dádiva
ao Senhor de um grã-senhor – nem Chartres, nem colônia, nem S.
Pedro ou Ruão, nenhuma catedral imensa com seus enormes carrilhões
tem nada capaz de um som tão lindo e puro como esse sino de ouro, de
ouro catado e fundido na própria terra goiana nos tempos de antigamente.é
apenas um sino, mas é de ouro. De tarde seu som vai voando em ondas mansas
sobre as matas e os cerrados, e as veredas de buritis, e a melancolia do chapadão,
e chega ao distante e deserto carrascal, e avança em ondas mansas sobre
os campos imensos, o som do sino de ouro. E a cada um daqueles homens pobres
ele dá cada dia sua ração de alegria. Eles sabem que de
todos os ruídos e sons que fogem do mundo em procura de Deus – gemidos,
gritos, blasfêmias, batuques, sinos, orações, e o murmúrio
temeroso e agônico das grandes cidades que esperam a explosão atômica
e no seu próprio ventre negro parecem conter o germe de todas as explosões
– eles sabem que Deus, com especial delícia e alegria, ouve o som alegre
do sino de ouro perdido no fundo do sertão. E então é como
se cada homem, o mais mesquinho e triste, tivesse dentro da alma um pequeno sino de ouro.
Quando vem o forasteiro de olhar aceso de ambição, e propõe
negócios, fala em estradas, bancos, dinheiro, obras, progresso, corrupção
– dizem que esses goianos olham o forasteiro com um olhar lento e indefinível
sorriso e guardam um modesto silêncio. O forasteiro de voz alta e fácil
não compreende; fica, diante daquele silêncio, sem saber que o
goiano está quieto, ouvindo bater dentro de si, com um som de extrema
pureza e alegria, seu particular sino de ouro. E o forasteiro parte, e a povoação
continua pequena, humilde e mansa, mas louvando a Deus com sino de ouro. Ouro
que não serve para perverter, nem o homem nem a mulher, mas para louvar a Deus.
E se Deus não existe, não faz mal. O ouro do sino de ouro é
neste mundo o único ouro de alma pura, o ouro no ar, o ouro da alegria.
Não sei se isso acontece em Porangatu, Uruaçu ou outra cidade
do sertão. Mas quem me contou foi um homem velho que esteve lá;
contou dizendo: “eles têm um sino de ouro e acham que vivem disso,
não se importam com mais nada, nem querem mais trabalhar; fazem apenas
o essencial para comer e continuar a viver, pois acham maravilhoso ter um sino de ouro”.
O homem velho me contou isso com espanto e desprezo. Mas eu contei a uma criança
e nos seus olhos se lia seu pensamento: que a coisa mais bonita do mundo deve
ser ouvir um sino de ouro. Com certeza é esta mesmo a opinião
de Deus, pois ainda que Deus não exista, ele só pode ter a mesma
opinião de uma criança. Pois cada um de nós quando criança
tem dentro seu sino de ouro que depois, por nossa culpa e miséria e pecado
e corrupção, vai virando ferro e chumbo, vai virando pedra e terra, e lama e podridão.

2. Quinca cigano
– O narrador em primeira pessoa, fala.
– Autor e narrador coincidem.
– Protagonista é, supostamente, tio do narrador.
– Texto: um tom melancólico, pessimista diante da vida.

3. Aula de inglês
– Relato da experiência vivida pelo narrador na sua primeira aula de inglês.
– Ironia ao falar da importância que se dá a uma língua estrangeira.

Crítica ao famoso “método Berlitz”, de ensino de línguas
através de perguntas e respostas. A professora pergunta em inglês,
ao aluno (o narrador), se determinado objeto é um elefante. Após
uma cuidadosa análise, ele responde que não. Pergunta, então,
se é um livro; prontamente o narrador responde que não. Pergunta
se é um handkerchief (lenço), palavra que o aluno não conhece,
mas acha antipática e responde que não. à última
pergunta, se é um cinzeiro (ash-tray), o aluno responde que sim. A reação
eufórica da professora faz o narrador sair satisfeito da sua primeira
aula. Pensa em comprar um cachimbo inglês e, se encontrasse o embaixador
britânico, imagina “entabular uma longa conversação”,
em que diria que o cachimbo não é um “ash-tray”.

Íntegra:

– Is this an elephant?
Minha tendência imediata foi responder que não; mas a gente não
deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar que lancei
à professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e tinha o
ar de quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei com a maior
atenção o objeto que ela me apresentava.
Não tinha nenhuma tromba visível, de onde uma pessoa leviana poderia
concluir às pressas que não se tratava de um elefante. Mas se
tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso deixa ele de ser um elefante;
mesmo que morra em consequência da brutal operação,
continua a ser um elefante; continua, pois um elefante morto é, em princípio,
tão elefante como qualquer outro. Refletindo nisso, lembrei-me de averiguar
se aquilo tinha quatro patas, quatro grossas patas, como costumam ter os elefantes.
Não tinha. Tampouco consegui descobrir o pequeno rabo que caracteriza
o grande animal e que, às vezes, como já notei em um circo, ele
costuma abanar com uma graça infantil.
Terminadas as minhas observações, voltei-me para a professora e disse convincentemente:
– No, it’s not!
Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora de minha resposta a havia deixado apreensiva. Imediatamente perguntou:
– Is it a book?
Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha vida no meio de livros, conheço
livros, lido com livros, sou capaz de distinguir um livro a primeira vista no
meio de quaisquer outros objetos, sejam eles garrafas, tijolos ou cerejas maduras
– sejam quais forem. Aquilo não era um livro, e mesmo supondo que
houvesse livros encadernados em louça, aquilo não seria um deles:
não parecia de modo algum um livro. Minha resposta demorou no máximo dois segundos:
– No, it’s not!
Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita – mas só por
alguns segundos. Aquela mulher era um desses espíritos insaciáveis
que estão sempre a se propor questões, e se debruçam com uma curiosidade aflita sobre a natureza das coisas.
– Is it a handkerchief?
Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer a verdade, não
sabia o que poderia ser um handkerchief; talvez fosse hipoteca… Não,
hipoteca não. Por que haveria de ser hipoteca? Handkerchief! Era uma
palavra sem a menor sombra de dúvida antipática; talvez fosse
chefe de serviço ou relógio de pulso ou ainda, e muito provavelmente,
enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido:
– No, it’s not!
Minhas palavras soaram alto, com certa violência, pois me repugnava admitir
que aquilo ou qualquer outra coisa nos meus arredores pudesse ser um handkerchief.
Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez, porém, a pergunta
foi precedida de um certo olhar em que havia uma luz de malícia, uma
espécie de insinuação, um longínquo toque de desafio.
Sua voz era mais lenta que das outras vezes; não sou completamente ignorante
em psicologia feminina, e antes dela abrir a boca eu já tinha a certeza de que se tratava de uma palavra decisiva.
– Is it an ash-tray?
Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro lugar porque eu sei o que
é um ash-tray: um ash-tray é um cinzeiro. Em segundo lugar porque,
fitando o objeto que ela me apresentava, notei uma extraordinária semelhança
entre ele e um ash-tray. Era um objeto de louça de forma oval, com cerca
de 13 centímetros de comprimento.
As bordas eram da altura aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias
curvas – duas ou três – na parte superior. Na depressão
central, uma espécie de bacia delimitada por essas bordas, havia um pequeno
pedaço de cigarro fumado (uma bagana) e, aqui e ali, cinzas esparsas,
além de um palito de fósforos já riscado. Respondi:
– Yes!
O que sucedeu então foi indescritível. A boa senhora teve o rosto
completamente iluminado por onda de alegria; os olhos brilhavam – vitória!
vitória! – e um largo sorriso desabrochou rapidamente nos lábios
havia pouco franzidos pela meditação triste e inquieta. Ergueu-se
um pouco da cadeira e não se pôde impedir de estender o braço
e me bater no ombro, ao mesmo tempo que exclamava, muito excitada:
– Very well! Very well!
Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no lidar com mulheres. A
efusão com que ela festejava minha vitória me perturbou; tive um susto, senti vergonha e muito orgulho.
Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo
firme e ao ver, na vitrine de uma loja,alguns belos cachimbos ingleses, tive
mesmo a tentação de comprar um. Certamente teria entabulado uma
longa conversação com o embaixador britânico, se o encontrasse
naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da boca e lhe diria:
– It’s not an ash-tray!
E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu sabia falar inglês,
pois deve ser sempre agradável a um embaixador ver que sua língua
natal começa a ser versada pelas pessoas de boa-fé do país junto a cujo governo é acreditado.

4. Homem no mar
Narrador observa de longe um homem que nada em direção à praia.

Íntegra:

De minha varanda vejo, entre árvores e telhados, o mar. Não
há ninguém na praia, que resplende ao sol. O vento é nordeste,
e vai tangendo, aqui e ali, no belo azul das águas, pequenas espumas
que marcham alguns segundos e morrem, como bichos alegres e humildes; perto da terra a onda é verde.
Mas percebo um movimento em um ponto do mar; é um homem nadando. Ele
nada a uma certa distância da praia, em braçadas pausadas e fortes;
nada a favor das águas e do vento, e as pequenas espumas que nascem e
somem parecem ir mais depressa do que ele. Justo: espumas são leves,
não são feitas de nada, toda sua substância é água
e vento e luz, e o homem tem sua carne, seus ossos, seu coração, todo seu corpo a transportar na água.
Ele usa os músculos com uma calma energia; avança. Certamente
não suspeita de que um desconhecido o vê e o admira porque ele
está nadando na praia deserta. Não sei de onde vem essa admiração,
mas encontro nesse homem uma nobreza calma, sinto-me solidário com ele,
acompanho o seu esforço solitário como se ele estivesse cumprindo
uma bela missão. Já nadou em minha presença uns trezentos
metros; antes, não sei; duas vezes o perdi de vista, quando ele passou
atrás das árvores, mas esperei com toda confiança que reaparecesse
sua cabeça, e o movimento alternado de seus braços. Mais uns cinquenta
metros, e o perderei de vista, pois um telhado a esconderá. Que ele nade
bem esses cinquenta ou sessenta metros; isto me parece importante; é
preciso que conserve a mesma batida de sua braçada, e que eu o veja desaparecer
assim como o vi aparecer, no mesmo rumo, no mesmo ritmo, forte, lento, sereno.
Será perfeito; a imagem desse homem me faz bem.
é apenas a imagem de um homem, e eu não poderia saber sua idade,
nem sua cor, nem os traços de sua cara. Estou solidário com ele,
e espero que ele esteja comigo. Que ele atinja o telhado vermelho, e então
eu poderei sair da varanda tranquilo, pensando – “vi um homem
sozinho, nadando no mar; quando o vi ele já estava nadando; acompanhei-o
com atenção durante todo o tempo, e testemunho que ele nadou sempre
com firmeza e correção; esperei que ele atingisse um telhado vermelho, e ele o atingiu”.
Agora não sou mais responsável por ele; cumpri o meu dever, e
ele cumpriu o seu. Admiro-o. Não consigo saber em que reside, para mim,
a grandeza de sua tarefa; ele não estava fazendo nenhum gesto a favor
de alguém, nem construindo algo de útil; mas certamente fazia
uma coisa bela, e a fazia de um modo puro e viril.
Não desço para ir esperá-lo na praia e lhe apertar a mão;
mas dou meu silencioso apoio, minha atenção e minha estima a esse
desconhecido, a esse nobre animal, a esse homem, a esse correto irmão.

5. Uma lembrança
Lembrança deixada pelo primeiro amor que “ficou para sempre impossível”.

Íntegra:

Foi em sonho que revi a longamente amada; sentada numa velha canoa, na
praia, ela me sorria com afeto. Com sincero afeto – pois foi assim que
ela me dedicou aquela fotografia com sua letra suave de ginasiana. Lembro-me
do dia em que fui perto de sua casa apanhar o retrato, que me prometera na véspera.
Esperei-a junto a uma árvore; chovia uma chuva fina. Lembro-me de que
tinha uma saia escura e uma blusa de cor viva, talvez amarela; que estava sem
meias. Os leves pêlos de suas pernas queimados pelo sol de todo dia na
praia estavam arrepiados de frio. Senti isso mais do que vi, e, entretanto,
esta é a minha impressão mais forte de sua presença de
quatorze anos: as pernas nuas naquele dia de chuva, quando a grande amendoeira
deixava cair na areia grossa pingos muito grandes. Falou muito perto de mim,
e perguntei se tomara café; seu hálito cheirava a café.
Riu, e disse que sim, com broas. Broas quentinhas, eu queria uma? Saiu correndo,
deu a volta à casa, entrou pelos fundos, voltou depois (tinha dois ou
três pingos de água na testa) com duas broas ainda quentes na mão. Tirou do seio a fotografia e me entregou.
Dei uma volta pela praia e pelas pedras para ir para casa. Lembro-me do frio
vento sul, e do mar muito limpo, da água transparente, em maré
baixa. Duas ou três vezes tirei do bolso a fotografia, protegendo-a com
as mãos para que não se molhasse, e olhei. Não estava,
como neste sonho de agora, sentada em uma canoa e não me lembro como
estava mas era na praia e havia uma canoa. “Com sincero afeto…”
Comi uma broa devagar, com uma espécie de unção.
(…)
Foi em sonho que revi a longamente amada; entretanto, não era a mesma;
seu sorriso e sua beleza que me entontecia haviam vagamente incorporado, atravessando
as camadas do tempo, outras doçuras, um nascimento dos cabelos acima
da orelha onde passei meus dedos, a nuca suave, com o mistério e o sossego
das moitas antigas, os braços belos e serenos. Gostaria de descansar
minha cabeça em seus joelhos, ter nas mãos o músculo meigo
das panturrilhas. E devia ser de tarde, e galinhas cacarejando lá fora,
a voz muito longe de alguma mulher chamando alguma criança para o café…
Tudo o que envolve a amada nela se mistura e vive, a amada é um tecido
de sensações e fantasias e se tanto a tocamos, e prendemos e beijamos
é como querendo sentir toda sua substância que, entretanto, ela
absorveu e irradiou para outras coisas, o vestido ruivo, o azul e branco, aqueles
sapatos leves e antigos de que temos saudade; e quando está junto a nós
imóvel sentimos saudade de seu jeito de andar; quando anda, a queremos
de pé, diante do espelho, os dois belos braços erguidos para a
nuca, ajeitando os cabelos, cantarolando alguma coisa, antes de partir, de nos
deixar sem desejo mas com tanta lembrança de ternura ecoando em todo o corpo.
Foi em sonho que revi a longamente amada. Havia praia, uma lembrança
de chuva na praia, outras lembranças: água em gotas redondas correndo
sobre a folha da taioba ou inhame, pingos d’água na sua pele de
um moreno suave, o gosto de sua pele beijada devagar… Ou não será
gosto, talvez a sensação que dá em nossa boca tão
diferente uma pele de outra, esta mais seca e mais quente, aquela mais unida
e mansa. Mas de repente é apenas essa ginasiana de pernas ágeis
que vem nos trazer o retrato com sua dedicatória de sincero afeto; essa
que ficou para sempre impossível sem, entretanto, nos magoar, sombra suave entre morros e praia longe.

6. A partilha
– Um emissor que fala a um interlocutor, mas a voz deste não é
ouvida, portanto, é um diálogo do qual só se ouve uma voz.
– Emissor faz a partilha do que fora deixado pelos pais.

Dois irmãos se separam e o narrador transcreve o que um deles, o mais
velho, diz, enquanto fazem a partilha dos objetos da casa. Ele deseja ficar
com a rede, o retrato da mãe e, principalmente, o canivete do irmão
mais novo. Enquanto argumenta, as características de cada um vão
sendo descritas, do ponto de vista do mais velho, que sabe pescar e lidar com
o canivete, além de fazer os consertos da casa. O mais novo ganha mais
dinheiro, escreve cartas e tem namorada. Através do monólogo,
nota-se que o mais novo ameaça o irmão com o canivete e este lhe
dá o conselho de nunca puxar canivete para outro homem, pois é
arma de menino. é melhor dar um tiro com garrucha. Diz que se o matasse
naquele momento estaria matando um inimigo, não seria como ele “que
levantou a arma contra um irmão”. Pega o canivete, reclama que o
irmão não presta nem para limpá-lo, mas é bom para outras coisas e despede-se.

7. Meu ideal seria escrever… – Metacrônica
– Justifica a idéia de que o ideal do autor era fazer que seus textos
divertissem seus leitores, os ajudassem a enfrentar situações difíceis.
– “A última crônica” = Fernando Sabino e “último
poema” = Manuel Bandeira.

Íntegra:

Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada
que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse
minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse
– “ai meu Deus, que história mais engraçada!”. E então
a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para
contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem
alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história
fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida
de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo
o próprio riso, e depois repetisse para si própria – “mas
essa história é mesmo muito engraçada!”.
Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido
com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também
fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria
a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que
esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história,
ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para
o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do
alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.
Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história
chegasse – e tão fascinante de graça, tão irresistível,
tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração
com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois
de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também
aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse – “por
favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!”.
E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus
semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.
E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras,
e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em
Dublin, a um japonês, em Chicago — mas que em todas as línguas
ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que
no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio
e muito velho dissesse: “Nunca ouvi uma história assim tão
engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido
até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido
inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou
aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse
morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso
até nosso conhecimento; é divina”.
E quando todos me perguntassem — “mas de onde é que você
tirou essa história?” — eu responderia que ela não é
minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro
desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: “Ontem ouvi
um sujeito contar uma história…”.
E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha
história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça
que está doente, que sempre está doente e sempre está de
luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.

8. História triste de tuim
– Narrada em terceira pessoa.
– História triste, envolve criança, amor, dedicação, perda e dor.
– Pássaro criado no dedo que foge, é preso numa gaiola por alguém e devorado por um gato.

Íntegra:

João-de-barro é um bicho bobo que ninguém pega, embora
goste de ficar perto da gente, mas de dentro daquela casa de joão-de-barro
vinha uma espécie de choro, um chorinho fazendo tuim, tuim, tuim…
A casa estava num galho alto, mas um menino subiu até perto, depois com
uma vara de bambu conseguiu tirar a casa sem quebrar e veio baixando até
o outro menino apanhar. Dentro, naquele quartinho que fica bem escondido depois
do corredor de entrada para o vento não incomodar, havia três filhotes,
não de joão-de-barro, mas de tuim.
Você conhece, não? De todos esses periquitinhos que tem no Brasil,
tuim é capaz de ser menor. Tem bico redondo, rabo curto e é todo
verde, mas o macho tem umas penas azuis para enfeitar. Três filhotes,
um mais feio que o outro, ainda sem penas, os três chorando.
O menino levou-os para casa, inventou comidinhas para eles, um morreu, outro
morreu, ficou um. Geralmente se cria em casa é casal de tuim, especialmente para se apreciar o namorinho deles.
Mas aquele tuim macho foi criado sozinho e, como se diz na roça, criado
no dedo. Passava o dia solto, esvoaçando em volta da casa da fazenda,
comendo sementinhas de imbaúba. Se aperecia uma visita fazia-se aquela
demonstração: era o menino chegar na varanda e gritar para o arvoredo:
tuim, tuim, tuim! às vezes demorava, então a visita achava que
aquilo era brincadeira do menino, de repente surgia a ave, vinha certinho pousar no dedo do garoto.
Mas o pai disse: “Menino, você está criando muito amor a esse
bicho, quero avisar: tuim é acostumado a viver em bando. Esse bichinho
se acostuma assim, toda tarde vem procurar sua gaiola para dormir, mas no dia
que passar pela fazenda um bando de tuins, adeus. Ou você prende o tuim
ou ele vai embora com os outros, mesmo ele estando preso e ouvindo o bando passar, esta arriscado ele morrer de tristeza.”
E o menino vivia de ouvido no ar, com medo de ouvir bando de tuim.
Foi de manhã, ele estava catando minhoca para pescar, quando viu o bando
chegar, não tinha engano: era tuim, tuim, tuim… Todos desceram ali
mesmo em mangueiras, mamonas e num bambuzal, dividido em partes. E o seu? Já
tinha sumido, estava no meio deles, logo depois todos sumiram para uma roça
de arroz, o menino gritava com o dedinho esticado para o tuim voltar, mas nada dele vir.
Só parou de chorar quando o pai chegou a cavalo, soube da coisa e disse:
“Venha cá.” E disse: “O senhor é um homem, estava
avisado do que ia acontecer, portanto, não chore mais.”
O menino parou de chorar, porque seu pai o havia consolado, mas como doía
seu coração! De repente, olhe o tuim na varanda! Foi uma alegria
na casa que foi uma beleza, até o pai confessou que ele também
estivera muito infeliz com o sumiço do tuim.
Houve quase um conselho de família, quando acabaram as férias:
deixar o tuim, levar o tuim para São Paulo? Voltaram para a cidade com
o tuim, o menino toda hora dando comidinha a ele na viagem. O pai avisou: “Aqui
na cidade ele não pode andar solto, é um bicho da roça
e se perde, o senhor está avisado.”
Aquilo encheu de medo o coração do menino. Fechava as janelas
para soltar o tuim dentro de casa, andava com ele no dedo, ele voava pela sala,
a mãe e a irmã não aprovavam, o tuim sujava dentro de casa.
Soltar um pouquinho no quintal não devia ser perigo, desde que ficasse
perto, se ele quisesse voar para longe era só chamar que voltava, mas uma vez não voltou.
De casa em casa, o menino foi indagando pelo tuim: “que é tuim?”,
perguntavam pessoas ignorantes. “Tuim?” Que raiva! Pedia licença
para olhar no quintal de cada casa, perdeu a hora de almoçar e ir para a escola, foi para outra rua, para outra.
Teve uma idéia, foi ao armazém de “seu” Perrota: “Tem
gaiola para vender?” Disseram que tinha. “Venderam alguma gaiola hoje?”
Tinham vendido uma para uma casa ali perto.
Foi lá, chorando, disse ao dono da casa: “Se não prenderam
o meu tuim então por que o senhor comprou gaiola hoje?”
O homem acabou confessando que tinha aparecido um periquitinho verde sim, de
rabo curto, não sabia que chamava tuim. Ofereceu comprar, o filho dele
gostara tanto, ia ficar desapontado quando voltasse da escola e não achasse
mais o bichinho. “Não senhor, o tuim é meu, foi criado por mim.”
Voltou para casa com o tuim no dedo.
Pegou uma tesoura: era triste, era uma judiação, mas era preciso,
cortou as asinhas, assim o bichinho poderia andar solto no quintal, e nunca mais fugiria.
Depois foi dentro de casa para fazer uma coisa que estava precisando fazer,
e, quando voltou para dar comida a seu tuim, viu só algumas penas verdes
e as manchas de sangue no cimento. Subiu num caixote para olhar por cima do
muro, e ainda viu o vulto de um gato ruivo que sumia.
Acabou-se a triste história do tuim.

9. A primeira mulher do Nunes
– Aparentemente, dividido em três partes.
– Narrada em terceira pessoa.

Na praça Serzedelo Correia, em Copacabana, o narrador vai tomar um táxi
e vê uma mulher bonita, com ar de estrangeira, sentada num banco do ponto
de táxi. Tem a impressão de que a mulher o segue com os olhos
quando se dirige para o táxi e, ao partir, tem a certeza de que tinha
visto Marissa, a primeira mulher do Nunes. Explica que nunca a conhecera, devido
a uma série de desencontros, mas chegara a se apaixonar, há uns
quatro ou cinco anos, graças à descrição que faziam
dela e ao momento ruim porque estava passando. Ela ficou sendo um mito e aquela
mulher vista na praça em Copacabana correspondia à imagem que
o narrador fazia de Marissa. No rápido olhar que trocaram, o narrador
acredita ter “lido” a irônica mensagem de que o destino deles era o de nunca se conhecerem.

10. Minha glória literária
– Tom autobiográfico, confessional.
– Narrador que, portanto, confunde-se com o autor, fala de sua glória
como escritor até o dia em que se deu mal por usar termos inadequados numa composição.
– Linguagem coloquial, acessível, familiar.

Nesta crõnica, Rubem Braga relembra uma composição de seu tempo de colégio
sobre a lágrima: “Quando a alma vibra, atormentada, às pulsações de um coração
amargurado pelo peso da desgraça, este, numa explosão irremediável, num desabafo
sincero de infortúnios, angústias e mágoas indefiníveis, externa-se, oprimido,
por uma gota de água ardente como o desejo e consoladora como a esperança; e
esta pérola de amargura arrebata pela dor ao oceano tumultuoso da alma dilacerada
é a própria essência do sofrimento: é a lágrima.”

Fonte: Unievangélica – Carlos Lisboa

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