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Leão-de-chácara, de João Antônio

by Lucas Gomes

Segundo livro de João Antônio, que o situa como autor de contos de uma linguagem ricamente
inventiva, calcada nos diálogos da malandragem urbana. A obra reúne quatro histórias: além do conto
que dá nome ao livro, tem os contos “Três Cunhadas”, “Natal 1960”, “Joãozinho da Babilônia” e “Paulinho
Perna Torta”.

Os contos têm como personagens principais os pobres e marginalizados que habitam o “submundo” da grande
cidade, no caso, o Rio de Janeiro dos anos 60. Entre eles, se destacam as figuras do malandro, do leão-de
-chácara, dos pivetes, meninos de rua, prostitutas, boêmios e traficantes. São esses seres anônimos e
excluídos com os quais João Antônio se identifica. Ele mergulha seu olhar neste universo, mas o faz sem
se identificar com os seres representados, ou seja, sem nutrir carinho ou compaixão por esses tipos
humanos. Com isso, eeus personagens, mesmo sendo tipos, possuem alma, uma dimensão humana que os
engrandece e os aproxima dos personagens de Dostoievski.

Segundo o autor, as narrativas são “sumarentas de vida e porejantes de verdade humana”. Não aparecem
protagonistas marcados por traços pitorescos que os transformem em coloridas figuras do folclore urbano.
Pelo contrário, são o retrato veraz das camadas sociais a que pertencem. Foram recortados com total
fidelidade e na plenitude de suas grandezas e misérias.

No estilo de João Antônio temos a incorporação da linguagem coloquial, de palavrões e especialmente
gírias. Apresenta uma frase mais longa, pois, em geral, dá vazão ao monólogo interior dos personagens ao
mesmo tempo em que explora estilisticamente a riqueza do vocabulário destes grupos sociais. Por isso é
comum encontrarmos em suas narrativas longas enumerações como no exemplo abaixo, retirado do conto “Leão-
de-chácara”:

(…) O que vai pintar de trouxa, espertinho, pé grande, mocorongo do pé lambuzado, muquira, bêbado
amador, loque, cavalo de teta, zé mané dando bandeira, doutor de falsa fama, papagaio enfeitado,
quiquiriquis, langanhos, paíbas, não será fácil. Eu aturando, ô pedreira! Para mim a noite vai ser de
murro.

Essa estilização da linguagem popular, que lhe dá uma dimensão e uma grandeza literárias, faz lembrar a
literatura de Guimarães Rosa, que faz o mesmo com a linguagem popular dos sertanejos. Por tal motivo, é
lícito também aproximar o autor no que diz respeito à renovação da linguagem brasileira através de uma
literatura que faz do “regionalismo” uma virtude e não um defeito de estilo.

Os narradores de João Antônio, sendo protagonistas, assumem a palavra e utilizam o discurso em primeira
pessoa como forma de afirmar a sua própria identidade.

João Antônio aponta para a existência da violência, sem a preocupação ou o intento de transformá-la em
espetáculo útil à catarse dos leitores e ao enriquecimento seu e dos editores. Ao proceder desta forma,
ele não contribui para os interesses da mídia e do mercado, mas, diversamente, para o enriquecimento da
arte.

Comentário sobre conto e personagem Paulinho Perna Torta

Paulinho Perna Torta, protagonista da narrativa homônima, cuja primeira publicação data de
1965 e passa a integrar a coletânea Leão-de-chácara desde 1975, é o personagem desenraizado por
excelência. Sua origem e trajetória são as de um sujeito que fez da rua sua casa, o que é registrado
desde as primeiras linhas de seu relato. De menino de rua, engraxate, batedor de carteira e guia de
cego a leão-de-chácara, cafetão, dono de Boca do lixo e traficante, Paulinho foi moço de vários amos
como os pícaros clássicos, mas ascendeu na carreira de malandro e bandido. Em suas palavras,
“refinou-se”, tornou-se amo de outros tantos Paulinhos, tendo por modelo maior Laércio Arrudão,
que ensina o be-a-bá da contravenção ao protagonista. Também desde as primeiras linhas de sua
autobiografia, o leitor nota no personagem um misto de rancor, por causa dos sofrimentos e do duro
aprendizado por que passou, e orgulho de ter chegado à posição por ele considerada ideal na carreira
de bandido, cuja fama é estampada e ampliada nas páginas dos jornais. Como se trata de uma narrativa
de memória, Paulinho conta e reflete sobre sua vida, que pouco tem de poesia e boas recordações.
Vive uma relação afetiva e de certo modo erótica que ele mantém com a sua bicicleta, através da qual
libera alguns valores ainda não reificados pelo seu ambicioso projeto de subir na carreira de bandido.
São nessas passagens rememoradas que também podemos observar e sentir certa integração lúdica entre o eu
e a cidade, momentos que suspendem relativamente a experiência do tempo pragmático de leão-de-chácara
e cafetão, que atua sobretudo à noite, pois durante o dia, as manhãs fundamentalmente, a zona boêmia e
do baixo meretrício dorme.

Porém, esses momentos foram varridos de sua vida, pois Arrudão se encarrega de
expulsá-los da existência de seu pupilo, pois a afetividade, a humanidade só atrapalhariam a
carreira de Paulinho, que põe em prática sem pestanejar mais esse ensinamento.

O estado presente do narrador é de uma eminente decadência de sua posição e poder,
por conta da acirrada ação da polícia em “limpar a cidade”, o que se dá por meio de várias
formas de violência. O contexto político-social brasileiro implicitamente se registra no texto
como sendo os anos da década de 60 em que também se busca forjar a imagem de um Brasil
como país sem as mazelas sociais e econômicas que são registradas literariamente no texto.
Apesar de Paulinho afirmar reiteradamente que não se entrega ao que considera a sua ruína – ser preso e
não ter dinheiro para continuar no comando de seus negócios, ele já não traz em
si toda a confiança e destemor que o moviam até então, o que se flagra pelo fato de além de
traficante, ele buscar certo alívio usando drogas, depois que a rua, sua casa, é vista como
ruim, porque não mais é propícia a seu enraizamento como bandido, pelo desfazimento dos
grupos com os quais se relacionava. Nesse sentido, apesar de o personagem acreditar que ao
longo de sua vida tenha pregado a si mesmo uma grande mentira, é a consciência reificada
que dá o tom do relato, espécie de “narrativa de formação” de um bandido.

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