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Papéis Avulsos, de Machado de Assis

by Lucas Gomes

Papéis avulsos é o terceiro livro do escritor Machado de Assis, em sua fase realista. Foi lançado em 1882. Os textos são decisivos na constituição do cânone de Machado de Assis. Com esse livro, a narrativa curta é legitimada como gênero de primeira importância no Brasil. A partir de Papéis Avulsos, onde há uma reunião de excelentes histórias, percebemos o grande aperfeiçoamento da linguagem do autor. Este livro pode ser considerado um momento de ruptura na escrita do autor. A começar pelo título, sugerindo casualidade no arranjo dos escritos, tem-se a postura sutilmente corrosiva e implacável na representação dos desvios à norma ou da incapacidade de se estabelecer uma norma para uma sociedade estruturada em bases contraditórias e violentas, sob uma camada muito tênue de civilidade.

Escritos no mesmo período da renovação de Memórias póstumas de Brás Cubas, os contos reunidos no volume sistematizam traços estilísticos da forma livre, com que Machado de Assis inscreve sua obra no grande diálogo internacional da sátira menipéia, fundada no humor paródico e no relativismo cético.

Em Papéis Avulsos as histórias se armam principalmente em cima do aparecer, do mostrar aquilo que se quer ser, exposto na trilogia da aparência dominante formada pelos contos A Sereníssima República, O Segredo do Bonzo e Teoria do Medalhão.

Em Papéis avulsos, o autor começa a cunhar a fórmula mais permanente de seus contos: a contradição entre parecer e ser, entre a máscara e o desejo, entre a vida pública e os impulsos escuros da vida interior, desembocando sempre na fatal capitulação do sujeito à aparência dominante. Machado procura roer a substância do eu e do fato moral considerados em si mesmos; mas deixa nua a relação de dependência do mundo interior em face da conveniência do mais forte. É a móvel combinação de desejo, interesse e valor social que fundamenta as estranhas teorias do comportamento expressa nos contos que compõem os “Papéis avulsos” machadianos.

Integram também essa coleção a novela O Alienista, sátira a uma fase arrogante da medicina e uma fascinante análise do poder e de seus mecanismos psicológicos e sociais, o conto Verba Testamentária, um dos mais perturbadores, que tem no centro a ferida da desigualdade entre os dons e os dotes recebidos pelos homens. E ainda:

A Chinela Turca – Em A chinela turca é por intermédio da visão que a “realidade” se confunde com o sonho. As transições são calcadas na visão. Leia mais…

Na Arca – Neste conto temos uma recriação da linguagem bíblica. Leia mais…

D. Benedita – Um Retrato – Conto narrado em 3ª pessoa, versa sobre a psicologia feminina.

A personagem é elaborada a partir do sentido do termo veleidade, que, no entanto, só será revelado ao leitor nas últimas linhas do conto. A personalidade fugaz da protagonista é contaminada pelo vírus da indecisão. Com breves pinceladas, à maneira de um pintor, surgem a hesitação, a volubilidade, a inconstância no eterno vai, não vai; casa, não casa; viaja, não viaja.

D. Benedita é lapidada com tamanha perfeição que quase pode ser tocada, pressentida pelo leitor em suas pequenas ações.

Veleidade: esta personagem alegórica define a personalidade da protagonista: mulher de vontade fraca, hesitante, inconstante.

O Anel de Polícrates – Este conto, além de relatar um evento particular, constitui um caso exemplar do que seriam as limitações da felicidade humana ou a lógica caprichosa do destino. Os relatos de Cícero são exemplos de situações diversas: desapego em relação aos bens materiais e ironia diante das pequenas mentiras da vida cotidiana.

O autor também neste conto soube apropriar-se habilmente do mito para a elaboração de um texto que exprime elementos de sua própria cultura, pela re-significação dos referenciais diegéticos, em geral a serviço da crítica à sociedade de classes de então.

Neste conto o literato verborrágico retorna sob a máscara daquele Xavier – “uma cachoeira de idéias e imagens”, que “era um saco de espantos” e provocava vertigens em “quem conversava com ele”. Inventor de uma fórmula banal de embuste, “a vida é um cavalo xucro ou manhoso; quem não for bom cavaleiro que o pareça”, Xavier assiste à reprodução e disseminação de sua pobre idéia que faz sucesso nas confidências de amigos, à mesa de restaurantes e nos palcos da cidade.

O Empréstimo – Conto onde o autor retrata dois personagens com visões diferentes sobre o dinheiro.

Em O empréstimo, o autor apresenta o tabelião Vaz Nunes, em um final de expediente, recebendo a visita de Custódio, que veio lhe pedir dinheiro. O primeiro tem a capacidade de desvendar o interesse que se esconde atrás da aparência, o segundo tem “a vocação da riqueza, sem a vocação do trabalho”. Nessa hora em que se confrontam, revela-se a natureza de cada um deles. Machado mergulha com precisão detalhista no gesto de olhar por cima dos óculos, no movimento dos braços, no modo de pegar a carteira, na maneira de caminhar de cabeça erguida. São detalhes do cotidiano. Essa ação narrativa e o tempo que passa não trazem, contudo, transformação. A melancolia que perpassa essa anedota humorística deixa um travo amargo, posto que de fel irônico, no riso do leitor. A passagem do tempo não implica transformações; são personagens alegorizados e congelados, incapazes da mudança. É como se o destino estivesse consumado em vida.

O leitor acompanha o confronto de disfarces entre os dois cavalheiros. A cada lance desse jogo, cada um dos contendores aparenta estar jogando a sua última cartada, ao mesmo tempo que cada uma das partes disfarça os trunfos de que ainda dispõe: a elasticidade da ambição, de um lado, e a capacidade de concessão, do outro. Encerrada a contenda, ambos parecem sair satisfeitos com o próprio desempenho cujo ganho é mínimo para um e a perda, insignificante para o outro.

O Espelho – Esse é o melhor conto para que se possa entender de maneira mais direta a “filosofia” machadiana (…). Leia mais…

Uma Visita de Alcibíades – É um conto em forma de carta. Um desembargador, que gosta de temas gregos e é espírita, invoca o grego Alcibíades. Não apenas seu espírito aparece, mas o homem de carne e osso. Ao ficar sabendo sobre a vestimenta nos dias atuais, o homem morre novamente. Em uma única carta ao chefe de polícia, o desembargador narra sua aventura. Não aparecem personagens femininas. O foco narrativo está em duas figuras masculinas, tanto Alcibíades quanto o desembargador estão conversando sobre a moda – que não seria um tema tradicionalmente considerado feminino?

Além de tudo, este conto machadiano nos revela o contraste existente entre a vestimenta típica do homem na Grécia Antiga e a indumentária característica do homem no século XIX.

Ao contrapor a toalete do herói grego Alcibíades àquela apresentada por um distinto desembargador, Machado de Assis acaba demonstrando como o próprio conceito de elegância e beleza sofre importantes modificações ao longo do tempo.

Estas reflexões aproximam-se de algumas das principais idéias defendidas pelo poeta e crítico francês Charles Baudelaire, que esclarece: “cada século e cada povo tem a sua própria expressão de beleza e moral”.

“Uma visita de Alcibíades” desmonta a máscara mais ostensiva da representação social identificada com os requintes da arte de se vestir. Ridicularizando a instabilidade da moda vista a partir da perspectiva de um olho estranho, o repertório metafórico mobilizado pela fala anacrônica do visitante antigo identifica, no vestuário de uma noite de gala, o estigma permanente do homem seduzido pela ostentação da elegância efêmera.

O conto, ainda que seja uma sátira mordaz, é a primeira obra em prosa de ficção da literatura brasileira em que surge um personagem espírita. Nessa narrativa, o desembargador Álvarez afirma que sua conversão ao espiritismo é decorrente da descrença em todas as religiões, assim confessa: “Convencido de que todos os sistemas são pura niilidade, adotei o mais jovial de todos”. Contador de histórias, Álvarez relata a estranha visita que recebera de Alcibíades e assume, convictamente, a personalidade do personagem que interpreta: “Posso dizer que vivo, como, durmo, passeio, converso, bebo café e espero morrer na fé de Allan Kardec.

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