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Novos Contos da Montanha, de Miguel Torga

by Lucas Gomes

Entre o subjetivismo da geração anterior
à sua e o neo-realismo da geração que surgia, Miguel Torga tornou-se uma voz
singular na literatura portuguesa do século XX. Apresentando um Portugal agrário,
em imagens reais, dramáticas e ao mesmo tempo líricas, os contos de Miguel Torga
revelam a dura humanidade de um povo.

Publicado pela primeira vez em 1944, Novos Contos da Montanha, oferece um
conjunto de vinte e duas narrativas breves, centradas em personagens singulares,
“duras e terrosas” como as fragas que pontuam o cenário trasmontano comum a
todos estes textos e que, sabemos, continuam a ser do agrado de leitores de
todas as idades.

Nesta obra, como na maioria da escrita da sua autoria, o autor ficcionaliza, num
registro muito peculiar (marcado pelo recurso a um tom coloquial, a uma
significativa adjetivação e a diversas metáforas muito expressivas) uma
realidade à qual se encontra umbilicalmente ligado, imprimindo à ação e às
personagens que habitam a história um caráter profundamente humano, dramático e,
de certo modo até, agônico ou desesperado.

Conto escolhido:

O Caçador

Trôpego, o Tafona já
não chegava às perdizes da Cumieira. Por isso, arrastava-se até Pedralva e
caçava de espera. Caíam rolas no cedo, uma lebre ou outra pelo ano adiante, e
coelhos quase sempre. No defeso, fornecia a casa e a barriga sem fundo do
compadre Frederico; no tempo da permissão, vendia-lhe a Joana Benta as caveças
na Vila.

– Veja vossemecê… –
dizia ele, a contratar o preço. – Eu sei lá!…

Com oitenta e cinco
anos, a vida fora-lhe sempre estranha como se a não tivesse conhecido. Casara,
tivera filhos, mas nada disso o tocara por dentro. Virgem e selvagem na alma,
continuava a caçar, e só embrenhado entre giestas e urgueiras é que ouvia, se
ouvia, os clamores da mulher e o ganido das crias.

Saía cedo, sempre
supersticioso das menstruações da Camila, a vizinha do lado, que lhe mudavam a
direção do chumbo, e regressava altas horas da noite, colado ao granito das
paredes, e assim escondido dos olhos curiosos da povoação.

– Por onde andaste?

– A pobre da
Catarina, a princípio, ainda tentou encontrar naquele destino pontos de
referência em que pudesse firmar-se. Mas as respostas vinham tão vagas, tão
distantes, que se atirou às leiras e deixou o homem às carquejas. Não era que
ele mesmo enredasse os caminhos e despistasse conscientemente a companheira. As
peripécias da caça e a cegueira com que galgava os montes é que o impediam à
noite de relatar o trajeto seguido. Se quisesse e soubesse dizer por que
trilhos passara, falaria de veredas e carreiros que nunca conhecera, descobertos
na ocasião pelo instinto dos pés e rasgados no meio de uma natureza cósmica,
verde como uma alucinação, com alguns ramos vistos em pormenor, por neles pousar
inquieto um pombo bravo ou se aninhar, disfarçada, uma perdiz. Ás vezes até se
admirava, ao regressar a casa, de tanta bruma e tanta luz lhe terem enchido
simultaneamente os olhos. Serras a que trepara sem dar conta, abismos onde
descera alheado, e um toco, um raio de sol, o rabo de um bicho, que todo o dia
lhe ficavam na retina. É claro que nem sempre as horas eram assim. Algumas havia
de perfeita consciência, em que nenhum pormenor da paisagem lhe escapava, as
próprias pedras referenciadas, aqui de granito, ali de xisto. Mas, mesmo nessas
ocasiões, qualquer coisa o fazia sonâmbulo do ambiente. Era tanta a beleza da
solidão contemplada, despegava-se das serranias tanta calma e tanta vida, os
horizontes pediam-lhe uma concentração tão forte dos sentidos e uma dispersão
tão absoluta deles, que os olhos como que lhe abandonavam o corpo e se perdiam
na imensidão. Simplesmente, essa diluição contínua que sofria no seio da
natureza não excluía uma posse secreta de cada recanto do seu relevo. Uma
espécie de percepção interior, de íntima comunhão de amante apaixonado, capaz de
identificar o panasco de Alcaria pelo cheiro ou pelo tacto. A caça fora a
maneira de se encontrar com as forças elementares do mundo. E nenhuma razão
conseguira pelos anos fora desviá-lo desse caminho. A meninice começara-lhe aos
grilos e aos pardais, a juventude e a maioridade passara-as atrás de bichos de
pêlo e pena, e agora, velho, as contas do seu rosário eram meia dúzia de
cartuchos que, sentado, ia esvaziando no que aparecia. E a vida, a de todos os
dias e de toda a gente, com lágrimas e alegrias, ambições e desalentos,
ficara-lhe sempre ao lado, vestida de uma realidade que que não conseguia ver. A
aldeia formigava de questões e de raivas, e ele coava- lhe apenas a agitação de
longe, vendo-a fumegar na distância, ao anoitecer, e acariciando-a então num
cansaço doce e contemplativo.

– Casou a Dulce…

– Ah, sim?…

Ouvira, de fato,
imprecisamente, a voz do sino grande chegar repenicada e festiva ao Falição, mas
o seu espírito não pudera nesse momento, nem podia agora, descer da nuvem de
abstração que o envolvia.

– Muito bonita ia o
demônio da rapariga!

Humana, mulher, a
Catarina tentava chamá-lo a uma consciência que reanimasse fogueiras mortas,
sonhos desfeitos. Nada. O pensamento dele não estava ali: perdia-se nos
projetos do dia seguinte, já cheio do rumor alvoroçado do bando de perdizes que
sabia ir levantar da cama ao romper da manhã.

– Morreu a Palhaça…

– Ah, morreu?

E continuava a dar à
manivela do rebordador, encontrando no cartucho, túmido como uma semente, não
sabia que verdade mais profunda e mais transcendente do que aquela morte.

A velhice e o
reumatismo tentaram com toda a brutalidade metê-lo noutros varai. Mas ele
lutava, e, embora limitado às cercanias da aldeia, continuava ainda a sonhar.

Contudo, sem a
liberdade absoluta dos longes, o seu espírito já não podia voar como dantes. A
povoação ficava-lhe demasiado perto para lhe ser possível um alheamento como o
de outrora. E os olhos, cansados e traídos, começaram a mostrar-lhe o mundo
triste dos outros. Contra vontade, observava, então. Mas em casa, à noite, a
mulher punha o acontecido a uma luz tão desconforme com o que ele vira, tão
alheia à sua compreensão, que fechava a boca e não respondia.

– Os Canedos
berraram…

– Eu vi…

– A cunhada chamou
curta à Ana… O que ouvira eram gritos, evidentemente, insultos, com toda a
certeza, mas nomes assim… E uma tristeza muda apertava-lhe o coração.

– Um roubo em casa do
Antunes…

– Bem me pareceu…

– Batatas, trigo,
muita roupa, um presunto…

Quase que
surpreendera o Rodrigo e a mulher com a boca na botija, e sabia que não, que o
que esconderam na mina velha, e pudera examinar à vontade, era uma sombra
daquilo. De maneira que cada vez se metia mais consigo, com medo do vidro de
aumento que deformava tudo e envenenava os sentimentos. Porque uma coisa sabia
ele: é que quase um século de caça não lhe endurecera nem lhe empeçonhara a
alma. Matara, sim, e matava ainda, se podia, mas não era com ódio, a gritar
maldição, que o tiro partia. Mais amorosamente do que mortalmente, o dedo premia
o gatilho. E quando, a seguir, a lebre esperneava ou a codorniz gemia, a sua mão
aligeirava docemente aquela agonia, numa carícia aveludada. Entre o sangue de
pertiz morta – que através do cotim da calça, morno, lhe acordava a consciência
da pele – e o seu próprio sangue, não havia o muro de nenhuma desarmonia. A
morte que a arma fazia tinha no mesmo instante uma ressurreição dentro dele.

Mas a aleluia do
formigueiro humano que o rodeava era outra.

– A Rosária a flara
em moralidade! Se reparasse na filha…

– A Matilde? Que fez
ela?

– Nem tu sabes!

Palavra, que não
sabia. Atravessara os anos como um duende, puro, alheio à raiva e à ganância,
inocente, pronto a comover-se diante da primeira flor. Uma virtude, sobre todas,
conservara sempre: a da lisa naturalidade. E por isso, no meio da incapacidade
que sentia para entender o tecido de razões com que era feito o mundo que o
cercava, a malha que menos o prendera era aquela onde se debatiam forças e
gestos de amor. O cio, a brisa de sêmen que agitava todos os seres vivos durante
alguns dias em cada ano, sabia-lhe à frescura de uma onda sagrada. Então, oleava
e arrumava a arma, e os seus olhos, de caçador ainda, seguiam a revoada do casal
de melros, o trajeto de um coelho, as pegadas da raposa, mas para os
acompanharem comovidos naquela dádiva sensual e procriadora.

Infelizmente, só ele
é que entendia de uma maneira assim inocente as coisas que tinham intimidade de
ninho e calor de seiva. Porque a aldeia, que olhava compreensivamente as reses
alevantadas, diante de uma rapariga cega de amores erguia-se como se visse um
crime.

– Ela e o Avelino
parecem cães à cainça.

– E que mal há nisso?
Maiores e vacinados, que tinha que ver o mundo com o que o corpo lhes pedia? Mas
os pais, aqui-del-rei que os enforcavam se olhassem sequer um para o outro, e a
terra inteira aplaudia. Acontecia ainda que o Travassos, todo lá da mãe da
rapariga, punha em semelhante martírio a sombra de uma perseguição.

De fora, mas
infelizmente não de tão longe como desejava, o Tafona assistia à cena. Sentado à
sombra da nogueira molar, e perto da poça onde vinham beber, esperava as rolas.
E lá em baixo, na veiga, o seu olhar cansado ia acompanhando a comédia. A
cachopa, de molho à cabeça, a passar na Silveirinha; o rapaz a deixar a rabiça na
lavrada e a sair-lhe ao caminho; e o esqueleto do Travassos, abelhudo e
ciumento, a correr a avisar as famílias.

Via e ficava a
malucar naquilo, no contra-senso de tudo e de todos. Pois não seria melhor, mais
justo, mais humano, deixá-los juntarem-se livremente, à lei da natureza?
Contudo, daí a nada, a rapariga ia a toque de caixa pelo Teixo abaixo, e o rapaz
retomava o arado a ouvir berros do pai.

– Uma pouca
vergonha… – recomeçava a Catarina à noite, depois do caldo.

– O quê?

– O que há-de ser? A
Matilde e o Avelino… Se não o Travassos…

Calou-se como de
costume. Decididamente, cada vez entendia menos tal mundo.

Mas as pernas
atraiçoavam-no miseravelmente, e embora quisesse fugir para muito longe, tinha
de se resignar às leis da idade e caçar de emboscada coelhos pacatos na vinha
velho do prior.

Era um Setembro puro.
Videiras que pareciam cedros e cachos com bagos como bugalhos. Manco, o Tafona,
foi-se arrastando e ainda a tarde vinha a cair além-Doiro já ele estava no seu
posto, sentado, imóvel e silencioso, com a arma engatilhada sobre a coxa.

Como habitualmente,
quase nem respirava. Por muito inocentes que fossem os láparos, farejavam ruído
a cem léguas. E o Tafona, conhecedor daqueles ouvidos, apertava os pulmões.

A espera nunca lhe
dava inteira paz de espírito. Forçava-o a uma espécie de compromisso com a parte
traiçoeira da vida, estremando os campos do agredido e do agressor. Entre ele e
o bicho não havia, daquela maneira, um verdadeiro encontro, um embate de forças.
Tudo se passava sem alegria e sem eco, choque abafado, como o de uma pinha
aberta a cair no musgo.

Subitamente começou a
sentir sons indistintos. Prestou atenção. Passos. Passos de gente, e grande.

– Bolas! – disse, sem
abrir a boca. De fato, perdera o tempo. Para que tudo retomasse a quietude
inicial e os coelhos se resolvessem a vir gozar a fresca, seriam precisas horas,
e então já não teria luz.

Os passos eram da
Matilde, sorrateira, a saltar um bardo e a sumir-se na vinha.

– É boa!… –
murmurou outra vez intimamente, agora noutro tom.

Mas ainda o seu
espanto não acabara, já o Avelino, do lado do monte, lépido, deslizava para o
meio da ramagem.

Riu-se. Desta vez
riu-se com a sua mansidão habitual, sem barulho, enternecidamente, como se
estivesse nos velhos tempos e visse no azul do céu dois pintassilgos a voar para
o mesmo ninho.

Infelizmente, os
namorados a desaparecerem, e sobre eles, de nariz no rasto, numa perseguição de
rafeiro, o Travassos que, por acaso, caminhava direito à arma do caçador.

O Tafona nem teve
tempo de pensar. Parou a respiração e encolheu-se quanto pôde atrás do
esconderijo.

O abelhudo vinha
apressado e chegou a tiro.

– Alto lá! –
ordenou-lhe então, sereno, mostrando o corpo.

O Travassos estacou,
apalermado. Por fim viu quem era e falou-lhe:

– Sou eu, ó ti Zé!

– Bem sei. Mas não te
mexas.

– O Travassos, ti
Tafona. Deixe-me ir salvar a infeliz!

A tremer e de olhos
esgazeados, o zeloso coscuvilheiro não conseguia perceber. Mas o Tafona
tinha-lhe friamente a espingarda endireitada ao peito, e ninguém da aldeia
confiava na alma solitária do caçador.

– Alto, e nem tugir
nem mugir! Aquelas coisas querem-se na paz do Senhor…

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