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O Filho Eterno, de Cristóvão Tezza

by Lucas Gomes

O Filho Eterno

, de Cristóvão Tezza, foi publicado na
categoria de “romance brasileiro”, mas é um texto escancaradamente
autobiográfico.

Como o protagonista de seu romance, o autor tem um filho com síndrome
de Down. O livro não disfarça o caráter de acerto de contas
do escritor com seu filho – ou, melhor dizendo, consigo mesmo no papel
de pai desse filho. Ainda assim, Tezza rejeita o rótulo de memorialismo
para ficar com o de romance: a narração é toda em terceira
pessoa, por exemplo.

A obra se afigura como uma brilhante reflexão sobre a necessidade e
a importância da ação do tempo para operar o ciclo da aturação/amadurecimento.
Este ciclo se justifica porque plasma duas variáveis significativas de
um problema que a crítica literária tem, ao longo de sua história,
tratado de forma dicotômica: o narrador e o autor, o sujeito real e o
personagem, o escritor e o protagonista, ou ainda, quaisquer outros aportes
demonstrativos que se queira dar para separar o homem que escreve da ficção
que ele escreve. Assim, o romance abre caminhos inovadores para que se discuta
a tão famigerada relação entre vida e obra, autobiografia
e ficcionalidade, como se a ficção pudesse, de per se abdicar
da história ou como se a realidade não pudesse adentrar os labirintos
da subjetividade vital por considerá-la, aprioristicamente, o reino positivista
da neutralidade.

Dividido em vinte e cinco capítulos, não numerados, o romance
é introduzido por duas epígrafes significativas: a primeira, de
Thomas Bernhard, apresenta o conflito entre o desejo pela descrição
fiel da verdade e o resultado dessa descrição; a segunda, de S.
Kierkegaard, aponta a reflexão especular entre pai e filho,
tema de que se ocupa o livro em suas duzentas e vinte e duas páginas:
as vicissitudes, o calvário e as amarras de um jovem escritor ao receber
a notícia de que
seu primeiro filho era portador da Síndrome de Down e a peregrinação
vital em torno desse fato até sua liberta aceitação.

Antes mesmo de iniciar a leitura, somos informados de que o romance tem como
ponto de partida as memórias do escritor Cristovão Tezza, e, ele
mesmo, na epígrafe, deixa claro que memórias são essas.
Uma história baseada em fatos reais que não tem pretensão
de ser a verdade. É a história do relacionamento de pai e filho
– e, pela orelha do livro, somos informados de que se trata de um relacionamento
com “dificuldades, inúmeras, e as saborosas pequenas vitórias”.
Além disso, trata-se de um “livro corajoso” – o escritor
é considerado corajoso ao relatar parte de sua vida, ao expor sua família
e sua intimidade.

O Filho Eterno é uma narrativa seca de desencantamento, em
terceira pessoa, onde os personagens não têm nome, com exceção
do filho, Felipe, e são chamados de “ele”, “o pai”,
“a mulher”, “a mãe”, “a filha”, “a
irmã”. Mesmo Felipe frequentemente aparece como “o filho”
em contraposição ao “pai”. Não encontramos o
lugar-comum, o apelo ao sentimento de pena e empatia, e, isso é uma das
qualidades de uma história que prende o leitor por não fornecer
respostas e soluções óbvias, pelo contrário, a surpresa
é uma constante durante a leitura. Percorr-se a trajetória do
personagem pai e, dentro de sua história, acompanha-se a trajetória
do personagem filho, Felipe. O treinamento neurológico nos primeiros
anos de vida do filho é contrastado com o ‘treinamento’ do pai em relação
às tentativas de publicar seus livros e as recusas das editoras:

Eu também estou em treinamento, ele pensa, lembrando mais uma recusa
de editora. A vida real começa a puxá-lo com violência para
o chão, e ele ri imaginando-se no lugar do filho, coordenando braços
e pernas para ficar em pé no mundo com um pouco mais de segurança

(p. 130).

O crescimento e o desenvolvimento do filho são percebidos pelo pai nas
representações de papéis sociais que o filho se esforça
em cumprir (p. 211). Ao mesmo tempo, o pai descobre a alegria que a rotina traz
e a tranquilidade conquistada com papéis sociais como “o professor
universitário”, “o escritor”.

O pai começa a descobrir sinais de maturidade no seu Peter
Pan e eles existem, mas sempre como representação
” (p.
218). O espelho no qual ambos, pai e filho, se veem é o espelho que reflete
a representação dos papéis sociais. A percepção
de mimetismo social no filho não está muito distante dos papéis
que o pai é solicitado a cumprir socialmente na universidade, na família,
na escola do filho, no campeonato de natação e na apresentação
de teatro do filho. A dificuldade do pai é tão grande quanto a
dificuldade do filho. A criança que vive eternamente no presente aprende
a responder ao que é solicitado dela socialmente. O pai provisório,
que só pensava em viver o presente, também aprende. E aqui é
revelado o escritor por trás da narrativa. A sutileza ao contar os episódios
na vida do pai e do filho é alcançda no contar da história,
pois não há momentos de avaliação e reflexão
em que paralelos são explicitamente estabelecidos. Esse trabalho é
reservado ao leitor.

Há no romance de Tezza a preocupação em não deixar
o leitor “morrer de repente”, ou não abandonar o texto.

A narrativa de O filho eterno inicia sob o signo da construção,
melhor dizendo, de duas construções: do pai-narrador-escritor
e do filho-personagem-narrado.
Há uma partogênese significativa envolvendo o nascimento e criação
do filho e deslocando-se para o nascimento do escritor e o ato da escritura.
As marcas vitais conjugam-se nas palavras do próprio autor: “romance
brutalmente autobiográfico”. A despeito das dificuldades romanescas
atribuídas ao gênero autobiográfico, o livro furta-se ao
mero assédio confessionalista porque o autor – experiente e exigente
quanto às técnicas literárias – soube optar pela
utilização de um ponto de vista revelador.

Narrando em 3ª pessoa, ao invés da 1ª pessoa do singular,
Tezza – com esse hábil expediente de foco narrativo – forjou
uma nova indumentária para o romance autobiográfico e, muito embora
os poros da vida refluam do corpo do texto, a essência do mesmo –
sua alma – ainda continua sendo a ficção.

O enredo gira em torno de duas personagens principais: pai e filho. As outras
personagens apresentadas no romance são secundárias, inclusive
a mãe, que apesar de ser a primeira personagem apresentada pelo narrador
através de sua própria fala “– Acho que é hoje
– ela disse.
” (pág. 9), é pouco mencionada durante
a obra. O narrador utiliza os pronomes “ele” e “ela”,
para se referir aos pais e à irmã de Felipe, o único personagem
com nome declarado. Quando se trata da relação de afeto com um
filho, e principalmente, quando este apresenta uma anomalia, espera-se que a
figura da mãe tenha destaque, porém, no romance é a paternidade
que é enfatizada.

A abertura do romance dá conta da voz da esposa anunciando ao pai a
chegada iminente do filho, ao mesmo tempo em que vai construindo a figura desse
pai-narrador, através de um discurso amparado em termos que expressam
dúvidas, incompletudes e indefinições: “Alguém
provisório, talvez; alguém que, aos 28 anos, ainda não
começou a viver. […] ele não tem nada, e não é
ainda exatamente nada
”. (p. 9). Descreve-se como um “filhote
retardatário dos anos 70
”, e se vê como um poeta cafona,
gorado em sua profissão, sustentado pela esposa que sobrevive de aulas
particulares e revisões textuais de “teses e dissertações
de mestrado sobre qualquer tema
” (p. 12).

O Pai é personagem introvertido, ansioso, que tem dificuldades para
demonstrar seus sentimentos. Um homem de vinte e oito anos, que bebe e fuma
compulsivamente. Vê a solidão como um projeto de vida, para assim
demonstrar sua aversão à sociedade, e a literatura como fuga da
realidade. Pode ser definido como: “… o eterno observador de si
mesmo e dos outros. “Alguém que vê, não alguém
que vive.
” (pág. 98). Um militante sem causa, um escritor
sem projetos realizados que não consegue viver de seu próprio
trabalho.

Felipe é apresentado pelo narrador pelas características de um
portador de síndrome de down: “… algumas características…
sinais importantes…vamos descrever: Observem os olhos, que tem as pregas nos
cantos, e a pálpebra oblíqua…o dedo mindinho das mãos,
arqueado para dentro…achatamento da parte posterior do crânio…a hipotonia
muscular…a baixa implantação da orelha e…
” (pág.
30). Segundo o pai: “é uma pedra silenciosa no meio do caminho”
(pág. 112).

O narrador invade os pensamentos do pai testemunhando todos os acontecimentos
de sua vida, de forma invisível está presente em todos os cenários
da narrativa, assim expõem ao leitor, os sentimentos, as emoções
e as aflições de criar um filho com necessidades especiais em
uma época que pouco se sabia sobre a Síndrome.

Ainda no 1º capítulo, após ironizar suas “romantiquices”
literárias – publicaria, na Revista de Letras, o poema “O
filho da primavera” –, deixa claro que “um filho é
a idéia de um filho
”; e que, nem sempre, “as coisas
coincidem com as idéias que fazemos delas
” (p. 14). Tal inconformismo
entre o sonho e a realidade
reflete a via-crucis desse Édipo andarilho: recuando no tempo, há
apenas dois meses passados, percebe a relação irônica e
mordaz entre uma dissertação corrigida para um amigo, na área
de genética, cujo tema versava sobre as características da trissomia
do cromossomo 21, a síndrome de Down, popularmente conhecida como “mongolismo”,
e o fatídico acaso que o presente lhe reservava: um filho portador dessa
mesma síndrome.

O destino não o fez cegar os próprios olhos, mas o narrador
admite que a morte do menino seria um alívio e o ódio furioso
que o acomete fica explícito quando se nega “bovino, a ver
e a ouvir
” (p. 31). Focando a parafernália familiar e hospitalar,
característica do nascimento de bebês, o narrador estabelece uma
relação com os rituais dos sacrifícios religiosos e aponta
o caráter de encenação/representação de papéis
tanto dos pais, quanto dos médicos e enfermeiros.

Assim, os primeiros capítulos exploram as reações adversas
do pai e marido – “Eu não preciso deste filho”;
Eu também não preciso desta mulher” (p.
32) – as quais, num crescendo de inconformismo, apelam para registros
discursivos dilacerados de vazio e solidão. O menino, que o leitor vem
a saber, posteriormente, tratar-se de Felipe, é, no início, designado
como “pacotinho suspirante”, “a coisa”, “aquela
criança horrível”, “esse”, “simulacro
de normalidade”, enfim, nominações que levam o narrador
a concluir que é um “escritor sem obra, […] e agora pai sem
filho
” (p. 41). Entretanto, a brutalidade com que questiona a “anormalidade”
do filho volta-se, especularmente, como reflexão sobre a própria
normalidade.

No 7º capítulo, o narrador se detém na discussão
científica a respeito das características da trissomia do cromossomo
21, porém as contingências do fato, quando relacionadas ao filho,
não o impedem de considerar-se num abismo. Ao reler um poema engajado,
de sua autoria, – “escrito anos antes, numa pensão em
Portugal, em seus tempos de mochileiro
” (p. 49) – trazido por
seu irmão, a pretexto de consolá-lo, analisa-o com olhar crítico,
tributa-o como “simulacro de
poesia
” (p. 51). Entretanto, os versos iniciais servirão como
uma espécie de mote do destino para iluminar reflexões posteriores:
Nada do que não foi/ poderia ter sido” (p. 50).
A partir da certeza genética a respeito do filho e do ressentido vazio
familiar – “Três estranhos em silêncio. Não
há o que abraçar
” (p. 66) –, tem início
a peregrinação em busca de clínicas especializadas em programas
de estimulação e conseqüentes exercícios de reabilitação.
O leitor é informado tanto sobre as deficiências específicas
que acometem os portadores de tal síndrome – em termos de visão,
audição, tato, linguagem, relações sexuais –,
quanto sobre as limitações que os ditos “normais”
têm no trato com essas pessoas: “(elas ouvem a palavra ‘não’
milhares de vezes a mais do que qualquer pessoa normal
)” (p. 167).
Se, didaticamente, há uma descrição de como é possível
o processo de auxílio e recuperação de crianças
como Felipe, do ponto de vista narrativo, essa didática é amparada
e ultrapassada pelas reflexões sobre as relações entre
o pai e o filho, o ser e o tempo, o homem e suas circunstâncias, a essência
e a aparência, o sentir e o dizer, o acaso e as escolhas, o autor e o
leitor, o ato de escrever e a possibilidade de realização. A educação
de Felipe é, em contrapartida, a educação do pai em busca
de si mesmo.

No 20º capítulo, ao narrar o desaparecimento de Felipe, faz um
retrospecto dessa fuga e, retornando ao momento de seu nascimento, associa e
equipara as sensações como se fossem “o sentimento do abismo”
(p. 161). A possibilidade da perda do filho permite ao narrador avaliar o valor
desta perda: o desabamento provocado pela solidão: “Não
se mova, que dói” (p. 161). A relação autobiográfica
em O Filho Eterno, também se consolida na descrição
correspondente ao processo de criação e publicação
de outros romances de Cristovão Tezza, como é o caso de Terrorista
lírico
, Trapo, A cidade inventada e Ensaio
da paixão
, “o primeiro acerto de contas com a própria
vida, antes do filho
” (p. 116).

Enfim, quem é esse filho eterno? É Felipe, eternamente menino,
na fatídica vivacidade de sua inocência canhestra, ou é
o pai – Édipo andarilho – a procurar,
numa encruzilhada sem destinos programados pelos deuses, sua verdadeira identidade?
A ambiguidade do título, reforçando a dimensão de abertura,
permite uma
dupla resposta e investe no ludismo como solução conclusiva. O
futebol – o jeito brasileiro de brindar a vida, “esse nada que
preenche o mundo
” (p. 218) –, une pai e filho num afeto quente
e compartilhado. Atleticano fanático, o futebol “passou lentamente
a ser para o Felipe uma referência de sua maturidade possível

(p. 219).

Acompanhando os passos do filho, o pai identifica as noções
e qualidades possibilitadas pelo futebol: a primeira confirma uma noção
de “personalidade”, “incluindo aí o dom terrivelmente
difícil de lidar com a frustração
” (p. 219);
a segunda caracteriza a noção de “novidade”, “não
mais apenas alguma coisa que ele já sabe o que é e que vai repetir

(p. 219); a terceira implica a “socialização”: “o
mundo se divide em torcedores e por eles é possível classificar
as pessoas”; outra noção corresponde à idéia
do tempo, proporcionada “pela noção de torneio” (p.
220); uma quinta noção, “outra pequena utopia que o
futebol promete – a alfabetização
” (p. 221).
É interessante refletir sobre a importância do jogo/futebol como
via de acesso ao mundo da leitura, pois, através dele, Felipe é
capaz de distinguir a maioria dos times pelo nome, que depois ele
digitará no computador para baixar os hinos de cada clube em mp3, e que
cantará, feliz, aos tropeços
” (p. 221).

A imprevisibilidade é da natureza do jogo e disputar mais uma partida
comunga dessa imprevisibilidade. Ao contrário do início do romance,
quando o pai olha amargo e ressentido para o filho “mongolóide”,
agora, chegado ao término do livro, o narrador confere a si e ao filho
o dom do jogo da vida – liberta e imprevisível – bem como
a possibilidade de abertura – maturação/amadurecimento –
que só o tempo é capaz de proporcionar.

A linha cronológica da narrativa é trabalhada de forma que, ao
passo que Felipe cresce, aprende andar, desenvolve a fala e inicia a vida escolar,
o narrador nos conta passagens da adolescência do pai; assim, as principais
mudanças de espaço ocorrem juntamente com as interrupções
do tempo cronológico, que surgem toda vez que o pai faz uma reflexão
sobre a própria vida, regredindo no tempo e no espaço, transportando-se
para situações diversas, como a passagem por Portugal e pela a
Alemanha, os trabalhos, os estudos, a infância em Santa Catarina, o grupo
de teatro amador, o mestre guru e o primeiro amor vivido na ilha da Cotinga.
Dessa maneira, o pai transita psicologicamente, entre o presente e o passado,
e fantasia um futuro, onde cria algumas expectativas no leitor, em um período
entre 03 de novembro de 1980 até 2006. Paralelamente, Felipe não
tem essa noção do tempo “Incapaz e entrar no mundo da abstração
do tempo, a idéia de passado e de futuro jamais se ramifica em sua cabeça
alegre; vive toda manhã, sem saber, o sonho do eterno retorno.”
(pág. 183).

Durante toda a narrativa, Felipe recebe estímulos para sua evolução
motora e mental: a esperança do pai com isto é aproximar o filho
da normalidade, uma conquista, que na verdade, sabe que será impossível.

A voz que narra não explicita o sentimento do pai pelo filho eterno,
pois as suas emoções são contidas a ponto de fazer o leitor
duvidar de seu amor por Felipe. Todavia, na passagem do texto, onde o menino
desaparece fica evidente o amor do pai pelo filho, expresso no desespero, na
angústia e no medo de perder Felipe, que um dia desejou que morresse
Só descobriu a dependência que sentia pelo filho no
dia em que Felipe desapareceu pela primeira vez… ainda em pânico…
que agora lhe toma por inteiro, a pior sensação imaginável
na vida – quase a mesma sensação terrível do momento
em que o filho se revelou ao mundo, da qual ele jamais se recuperará
completamente..
.” (pág. 161), embora ele próprio não
admita isto “Esse é o retrospecto desenhado com calma quase
vinte anos depois. No momento, tudo é de uma banalidade absurda…

(pág. 161).

Como desfecho dos conflitos internos do pai, há a superação
do desequilíbrio emocional, ocorrido com o nascimento de Felipe, que
é constatada quando pai e filho compartilham, de forma carinhosa, a uma
partida de futebol na televisão.

Com O Filho Eterno, Cristovão Tezza confere novas possibilidades
ao gênero autobiográfico, redimensionando o papel da memória
no presente da narrativa
e, sobretudo, inserindo a própria história no contexto de sua
criação literária.

Trechos do livro

A manhã mais brutal da vida dele começou com o sono que se
interrompe – chegavam os parentes. Ele está feliz, é visível,
uma alegria meio dopada pela madrugada insone, mais as doses de uísque,
a intensidade do acontecimento, a sucessão de pequenas estranhezas naquele
espaço oficial que não é o seu, mais uma vez ele não
está em casa, e há agora um alheamento em tudo, como se fosse
ele mesmo, e não a mulher, que tivesse o filho de suas entranhas – a
sensação boa, mas irremediável ao mesmo tempo, vai se transformando
numa aflição invisível que parece respirar com ele. Talvez
ele, como algumas mulheres no choque do parto, não queira o filho que
tem, mas a idéia é apenas uma sombra. Afinal, ele é só
um homem desempregado e agora tem um filho. Ponto final. Não é
mais apenas uma idéia, e nem mais o mero desejo de agradar que o seu
poema representa, o ridículo filho da primavera – é uma ausência
de tudo. Mas os parentes estão alegres, todos falam ao mesmo tempo. A
tensão de quem acorda sonado se esvazia, minuto a minuto. Como ele é?
Não sei, parece um joelho – ele repete o que todos dizem sobre recém-nascidos
para fazer graça, e funciona. O bebê é parrudo, grande,
forte, ele inventa: é o que querem ouvir. Sim, está tudo bem.
É preciso que todos vejam, mas parece que há horários.
Daqui a pouco ele vem – aquele pacotinho suspirante. A mulher está plácida,
naquela cama de hospital – sim, sim, tudo vai bem. Há também um
rol de recomendações que se atropelam – todos têm alguma
coisa fundamental a dizer sobre um filho que nasce, ainda mais para pais idiotas
como ele. Eu fiz um curso de pai, ele alardeia, palhaço, fazendo piada.
Mas era verdade: passou uma tarde numa grande roda de mulheres buchudas, a dele
incluída, é claro, com mais dois ou três futuros pais devotos,
atentíssimos, ouvindo uma preleção básica de um
médico paternal, e de tudo guardou um único conselho – é
bom manter uma boa relação com as sogras, porque os pais precisam
eventualmente descansar da criança, sair para jantar uma noite, tentar
sorver um pouco o velho ar de antigamente que não voltará jamais.

E as famílias falam e sugerem – chás, ervas, remedinhos,
infusões, cuidados com o leite -, é preciso dar uma palmada para
que ele chore alto, assim que nasce, diz alguém, e alguém diz
que não, que o mundo mudou, que bater em bebê é uma estupidez
(mas não usa essa palavra) – eles não vão trazer a criança?
E que horas foi? E o que o médico disse? E você, o que fez? E o
que aconteceu? E por que não avisaram antes? E por que não chamaram
ninguém? E vamos que acontece alguma coisa? Ele já tem nome? Sim:
Felipe. Os parentes estão animados, mas ele sente um cansaço subterrâneo,
sente renascer uma ponta da mesma ansiedade de sempre, insolúvel. Ir
para casa de uma vez e reconstruir uma boa rotina, que logo ele terá
livros para escrever – gostaria de mergulhar no Ensaio da Paixão de novo,
alguma coisa para sair daqui, sair deste pequeno mundo provisório. Sim,
e beber uma cerveja, é claro! A idéia é boa – e ele quase
que gira o olhar atrás de uma companhia para, de fato, conversar sobre
esse dia, organizar esse dia, pensar nele, literariamente, como um renascimento
– veja, a minha vida agora tem outro significado, ele dirá, pesando as
palavras; tenho de me disciplinar para que eu reconquiste uma nova rotina e
possa sobreviver tranqüilo com o meu sonho. O filho é como – e ele
sorri, sozinho, idiota, no meio dos parentes – como um atestado de autenticidade,
ele arriscará; e ainda uma vez fantasia o sonho rousseauniano de comunhão
com a natureza, que nunca foi dele mas que ele absorveu como um mantra, e de
que tem medo de se livrar – sem um último elo, o que fica? Em toda parte,
são os outros que têm autoridade, não ele. O único
território livre é o da literatura, ele talvez sonhasse, se conseguisse
pensar a respeito. Sim, é preciso telefonar para o seu velho guru, de
certa forma receber sua bênção. Muitos anos depois uma aluna
lhe dirá, por escrito, porque ele não é de intimidades:
você é uma pessoa que dá a impressão de estar sempre
se defendendo. Sentimentos primários que se sucedem e se atropelam –
ele ainda não entende absolutamente nada, mas a vida está boa.
Ainda não sabe que agora começa um outro casamento com a mulher
pelo simples fato de que eles têm um filho. Ele não sabe nada ainda.
Súbito, a porta se abre e entram os dois médicos, o pediatra e
o obstetra, e um deles tem um pacote na mão. Estão surpreendentemente
sérios, absurdamente sérios, pesados, para um momento tão
feliz – parecem militares. Há umas dez pessoas no quarto, e a mãe
está acordada. É uma entrada abrupta, até violenta – passos
rápidos, decididos, cada um se dirige a um lado da cama, com o espaldar
alto: a mãe vê o filho ser depositado diante dela ao modo de uma
oferenda, mas ninguém sorri. Eles chegam como sacerdotes. Em outros tempos,
o punhal de um deles desceria num golpe medido para abrir as entranhas do ser
e dali arrancar o futuro. Cinco segundos de silêncio. Todos se imobilizam
– uma tensão elétrica, súbita, brutal, paralisante, perpassa
as almas, enquanto um dos médicos desenrola a criança sobre a
cama. São as formas de um ritual que, instantâneo, cria-se e cria
seus gestos e suas regras, imediatamente respeitadas. Todos esperam.

Há um início de preleção, quase religiosa, que
ele, entontecido, não consegue ainda sintonizar senão em fragmentos
da voz do pediatra:

– …algumas características… sinais importantes…
vamos descrever. Observem os olhos, que têm a prega nos cantos, e a pálpebra
oblíqua… o dedo mindinho das mãos, arqueado para dentro…
achatamento da parte posterior do crânio… a hipotonia muscular…
a baixa implantação da orelha e…

O pai lembra imediatamente da dissertação de mestrado de
um amigo da área de genética – dois meses antes fez a revisão
do texto, e ainda estavam nítidas na memória as características
da trissomia do cromossomo 21, chamada de síndrome de Down, ou, mais
popularmente – ainda nos anos 1980 – “mongolismo”, objeto do trabalho.
Conversara muitas vezes com o professor sobre detalhes da dissertação
e curiosidades da pesquisa (uma delas, que lhe veio súbita agora, era
a primeira pergunta de uma família de origem árabe ao saber do
problema: “Ele poderá ter filhos”? – o que pareceu engraçado,
como outro cartum). Assim, em um átimo de segundo, em meio à maior
vertigem de sua existência, a rigor a única que ele não
teve tempo (e durante a vida inteira não terá) de domesticar numa
representação literária, apreendeu a intensidade da expressão
“para sempre” – a idéia de que algumas coisas são
de fato irremediáveis, e o sentimento absoluto, mas óbvio, de
que o tempo não tem retorno, algo que ele sempre se recusava a aceitar.
Tudo pode ser recomeçado, mas agora não; tudo pode ser refeito,
mas isso não; tudo pode voltar ao nada e se refazer, mas agora tudo é
de uma solidez granítica e intransponível; o último limite,
o da inocência, estava ultrapassado; a infância teimosamente retardada
terminava aqui, sentindo a falta de sangue na alma, recuando aos empurrões,
sem mais ouvir aquela lengalenga imbecil dos médicos e apenas lembrando
o trabalho que ele lera linha a linha, corrigindo caprichosamente aqui e ali
detalhes de sintaxe e de estilo, divertindo-se com as curiosidades que descreviam
com o poder frio e exato da ciência a alma do seu filho. Que era esta
palavra: “mongolóide”.

Ele recusava-se a ir adiante na linha do tempo; lutava por permanecer no
segundo anterior à revelação, como um boi cabeceando no
espaço estreito da fila do matadouro; recusava-se mesmo a olhar para
a cama, onde todos se concentravam num silêncio bruto, o pasmo de uma
maldição inesperada. Isso é pior do que qualquer outra
coisa, ele concluiu – nem a morte teria esse poder de me destruir. A morte são
sete dias de luto, e a vida continua. Agora, não. Isso não terá
fim. Recuou dois, três passos, até esbarrar no sofá vermelho
e olhar para a janela, para o outro lado, para cima, negando-se, bovino, a ver
e a ouvir. Não era um choro de comoção que se armava, mas
alguma coisa misturada a uma espécie furiosa de ódio. Não
conseguiu voltar-se completamente contra a mulher, que era talvez o primeiro
desejo e primeiro álibi (ele prosseguia recusando-se a olhar para ela);
por algum resíduo de civilidade, alguma coisa lhe controlava o impulso
da violência; e ao mesmo tempo vivia a certeza, como vingança e
válvula de escape – a certeza verdadeiramente científica, ele
lembrava, como quem ergue ao mundo um trunfo indiscutível, eu sei, eu
li a respeito, não me venham com histórias – de que a única
correlação que se faz das causas do mongolismo, a única
variável comprovada, é a idade da mulher e os antecedentes hereditários,
e também (no mesmo sofrimento sem saída, olhando o céu
azul do outro lado da janela) relembrou como alguns anos antes procuraram aconselhamento
genético sobre a possibilidade de recorrência nos filhos (se dominante
ou recessiva) de uma retinose, a da mãe, uma limitação
visual grave, mas suportável, estacionada na infância. Recusa.
Recusar: ele não olha para a cama, não olha para o filho, não
olha para a mãe, não olha para os parentes, nem para os médicos
– sente uma vergonha medonha de seu filho e prevê a vertigem do inferno
em cada minuto subseqüente de sua vida. Ninguém está preparado
para um primeiro filho, ele tenta pensar, defensivo, ainda mais um filho assim,
algo que ele simplesmente não consegue transformar em filho.

No momento em que enfim se volta para a cama, não há mais
ninguém no quarto – só ele, a mulher, a criança no colo
dela. Ele não consegue olhar para o filho. Sim – a alma ainda está
cabeceando atrás de uma solução, já que não
pode voltar cinco minutos no tempo. Mas ninguém está condenado
a ser o que é, ele descobre, como quem vê a pedra filosofal: eu
não preciso deste filho, ele chegou a pensar, e o pensamento como que
foi deixando-o novamente em pé, ainda que ele avançasse passo
a passo trôpego para a sombra. Eu também não preciso desta
mulher, ele quase acrescenta, num diálogo mental sem interlocutor: como
sempre, está sozinho.

Créditos parciais: Marina Barbosa de Almeida, Universidade
Federal de Santa Catarina | Maria Beatriz Zancheti, professora da Unioeste |
Daniel de Oliveira Fagundes da Silva | Lilian Fernada Lunardelli
| Luciana Ribeiro de Souza (Curso de Letras – Mackenzie).

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