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O livro das ignorãças, de Manoel de Barros

by Lucas Gomes

O Livro das Ignorãças

, de Manoel de Barros, publicado em 1994, remete
à realidade desconhecida, a um desconhecimento prévio dos conceitos,
significados, sentidos. Um livro que guarda a origem das coisas. Desconhecer
para conhecer, poderia se dizer, é o tema , portanto, da poética
de seu autor, Manoel de Barros.

A obra é dividida em três partes:

1. “Uma Didática da Invenção”

Nessa parte da obra, surgem várias questões evidenciando a preocupação de Manoel
de Barros quanto as idéias específicas de poesia. Assim, já no primeiro poema
do livro, temos a idéia do desaprender, da necessidade que o poeta vê de a poesia
enlouquecer a língua, tirando-a dos lugares comuns em que se encontra. Nessa
primeira parte há um trajeto claro de fugir à linguagem comum e alcançar uma
língua adâmica, original que se aproxime mais da coisa em seu estado bruto,
que chegue à “coisidade” da coisa, em seu âmago de coisa mesmo.

No primeiro poema do livro, temos a idéia do desaprender, da necessidade que
o poeta vê de a poesia enlouquecer a língua, tirando-a dos lugares comuns em
que se encontra:

Desaprender oito horas por dia ensina os princípios.

Invertendo completamente a lógica tradicional, esse verso vê o aprendizado das
coisas não no ato de aprender, mas no ato de desaprender. Atente-se para o termo
“princípios”, que aponta para a questão da origem de que se falou antes. Desaprender,
segundo o poeta, permite-nos alcançar os princípios, as origens, o momento anterior
às palavras, em que só existem as coisas. Essa mesma idéia parece reger O livro
das ignorãças
, já que ela é recorrente em vários poemas e também na obra inteira
do poeta. No poema de número XVI, há um verso que diz dessa idéia de que só
as frases opacas e obscuras, que fogem da linguagem comum, é que interessam,
pois são iluminadas:

Há certas frases que se iluminam pelo opaco.

Esse trabalho para “desacostumar as palavras”, como diz o próprio poeta, dando-lhe
significações novas, inusitadas, antes não concebidas, atravessa todo o livro,
resultando em versos que, muitas vezes, nos causam espanto, tal a desconstrução
da linguagem, tal o “desacostumamento” da língua que eles acabam por fazer.
Já que “desacostumar as palavras” é o trabalho da poesia, e do poeta, Manoel
de Barros não hesita em agir assim a todo instante, transformando a sua poesia
num jogo de sensações, numa inversão das características dos objetos e num lugar
de imagens inesperadas. São vários os exemplos dessas inversões e desse jogo
com imagens e sensações:

Como pegar na voz de um peixe (I)

E um sapo engole as auroras. (IV)

Eu escuto a cor dos passarinho. (VII)

Hoje eu desenho o cheiro das árvores. (IX)

Não tem altura o silêncio das pedras. (X)

Poderíamos continuar enumerando ad infinitum exemplos como esse, já que eles
elucidam muito da estética de Manoel de Barros. Esses versos alcançam exatamente
a sua proposta de poesia, desvestindo as palavras de seus sentidos corriqueiros,
de seus significados gastos.

Não é à toa a referência, em vários momentos, à linguagem das crianças, já que
elas ainda não aprenderam a totalidade da língua. Lembremos o que diz o poeta
em entrevista já citada: “atrás da voz dos poetas moram crianças, bêbados, psicóticos”.

A criança, por não Ter ainda tanto contato com a língua, não perdeu a capacidade
de brincar com as palavras, o que as torna poetas sem que elas saibam. Se a
poesia é enlouquecer as palavra, fazendo-as delirar, as crianças fazem poesia
ao falar, como mostra o poema de número VII:

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.

Mudar a função das palavras está dentro do conceito de poesia desse poeta, pois
é assim que elas podem delirar, enlouquecer, tirar a língua da lógica. A figura
da criança surge novamente em outros poemas, sempre ligada a essa idéia de ilogismo
que a poesia deve buscar. Mais do que o ilogismo, os versos abaixo trazem a
questão de coisas que sequer têm nome, sendo estas as preferidas pelas crianças:

As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças. (VI)

Ora, como pronunciar nomes que nem existem? É justamente aí, como já viu anteriormente,
que reside a poesia de Barros, já que ele busca exatamente aquilo que ainda
não recebeu nomes, que ainda não foi aprisionado por definições, por conceitos.
Daí sua idéia de chegar às coisas, sem intermédio da língua, tentando tocar
na coisa mesma, em sua origem, sem palavras se interpondo entre o poeta e a
matéria de sua poesia. Muitas vezes, Manoel fala mesmo de ser as coisas, que
ultrapassa o simples tocar as coisas, ou, ultrapassando mais ainda, o falar
das coisas. O poema de número IX trata desse ser a coisa:

Para entrar em estado de árvore é preciso partir de
um torpor animal de lagarto às três horas da tarde,
no mês de agosto.
Em dois anos a inércia e o mato vão crescer em
nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato
sair na voz.

Esse poema é quase um ensinamento de como se tornar uma coisa, nesse caso uma
árvore. O processo de ser uma árvore só se completa quando os galhos nascem
do próprio corpo, saindo da voz. Isso não é apenas falar da coisa ou tocar a
coisa, mas tornar-se a coisa, ser a coisa em seu estado mesmo.

Na obra também há a proposta de, além de tornar-se coisa, “desacostumar as coisas”,
assim como se deve “desacostumar as palavras”. Do mesmo modo que se deve livrar
as palavras de seu estado normal, fazendo-as delirar, há também a necessidade
de livrar as coisas de sua utilidade usual, tirando-as do uso que elas têm no
dia-a-dia. É o que o poeta chama de “desinventar objetos” (poema II):

Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.

Percebe-se que essa necessidade de desacostumar as coisas caminha junto com
a de desacostumar as palavras. O último verso, que fala das palavras, vem logo
depois dos versos que tratam das coisas, sendo que todos dizem sobre o mesmo
ponto: desinventar coisas e palavras, tornado-os novos, sem sentido pronto,
sem definição. Não definir é deixar soltar as palavras e as coisas, é deixá-las
simplesmente ser, sem que haja nomes para aprisioná-las num mundo de conceitos,
que se tornam cada vez mais gastos e pobres.

Essa idéia da não-definição é muito bem trabalhado no belo poema de número XIX,
em que pensa no empobrecimento de uma bela imagem originado por uma definição
utilizada para conceituá-la.

O rio que fazia uma volta atrás de nossa cara era a
imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta que o
rio faz por trás de sua casa se ???chama enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que
fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.

A substituição de uma bela imagem criada a partir de um rio foi completamente
empobrecida por uma definição geográfica. A poesia da imagem foi rompida pela
precisão e redução de um conceito, que nada diz sobre a coisa em si. Assim,
percebe-se que a poesia nada tem a ver com definições, levando ser vista com
olhos menos pragmáticos, menos reduzidos pela prática e pela precisão a que
o mundo nos obriga. É o que mostra a poema de número XIII:

As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis:
Elas desejam ser olhadas de azul –
Que nem uma criança que você olha de ave.

É justamente o olhar de pessoas razoáveis – entenda-se, por pessoas razoáveis,
pessoas comuns – que acabam com a poesia das coisas. O olhar comum sobre as
coisas não consegue ver nelas qualquer poesia, acabando por enxergar apenas
definições e palavras com seus sentidos convencionais, pobres.

Assim, na primeira parte de O livro das ignorãças, há um trajeto claro
de fugir à linguagem comum e alcançar uma língua adâmica, original que se aproxime
mais da coisa em seu estado bruto, que chegue à “coisidade” da coisa, ao é da
coisa, em seu âmago de coisa mesmo.

2. “Os Deslimites da Palavra”

Aqui o poeta inventa uma lenda e escreve a partir dela: um tal canoeiro Apuleio,
que teria passado três dias e três noites navegando sobre as águas de uma enchente
ocorrida em 1922, sem comer nem dormir, registra em um caderno, a partir dessa
experiência, amontoados de frases desconexas. Tempos depois, o poeta encontra
esse caderno e tenta “desarrumar as frases”, de modo que elas se tornem poesia,
apesar de, em si, elas já serem poesia, pois, como diz o poeta, “nesse caderno,
o canoeiro voou fora da asa”, provocou “uma ruptura com a normalidade”, ou seja,
escreveu fora da língua comum, fazendo poesia.

Essa segunda parte, “Os deslimites da palavra”, não foge a esse projeto de linguagem.
Aqui o poeta inventa uma lenda e escreve a partir dela: um tal canoeiro Apuleio,
que teria passado três dias e três noites navegando sobre as águas de uma enchente
ocorrida em 1922, sem comer nem dormir, registra em um caderno, a partir dessa
experiência, amontoados de frases desconexas. Tempos depois, o poeta encontra
esse caderno e tenta “desarrumar as frases”, de modo que elas se tornem poesia,
apesar de, em si, elas já serem poesia, pois, como diz o poeta, “nesse caderno,
o canoeiro voou fora da asa”, provocou “uma ruptura com a normalidade”, ou seja,
escreveu fora da língua comum, fazendo poesia.

O resultado do encontro entre as frases do canoeiro, que escreveu fora da normalidade,
com o poeta, que também só escreve fora do comum, é uma desarrumação completa
dos padrões, um “desacostumamento” radical. Como diz o poema 2.1, primeiro do
segundo dia de enchente:

Não oblitero moscas com palavras.
Uma espécie de canto me ocasiona.
Respeito as oralidades.
Eu escrevo o rumar das palavras.
Não sou sandeu de gramáticas.

Novamente, o que se tem é a questão da supremacia da coisa sobre a palavra:
“Não oblitero moscas com palavras.” Usar palavras para falar das moscas é uma
rasura das moscas, um apagamento, já que se deve chegar à mosca mesmo, e não
somente falar dela.

A referência às “oralidades” também é uma fuga à normalidade da língua, já que
a fala, a língua oral, apresenta uma série de desvios em relação à linguagem
padrão, daí o poeta/canoeiro dizer que não é tolo (sandeu) de ficar seguindo
gramáticas, de respeitar a língua imposta por elas. Por isso, o que ele escreve
não são as palavras, mas o seu rumor: apenas o som, não o sentido. Escrever
apenas o rumor das palavras, sem dar-lhes significado, as aproxima de coisas,
de objetos que podem ser quase tocados.

O próprio nome dessa parte do livro já aponta para essas idéias, pois o poeta
escreve além dos limites da palavra, ele atinge seus delimites, ele toca o que
está fora da linguagem, o que se situa além das fronteiras que a língua nos
impõe. Não se deixar submeter pelos limites da língua é o que faz o poeta/canoeiro
ao longo de toda essa parte. Um passeio pelos poemas nos mostra isso de forma
evidente:

Ontem choveu no futuro. (1.1)
Estas águas não têm lado de lá. (1.1)
Os nomes já vêm com unha? (1.2)
A chuva atravessou um pato pelo meio (1.6)
A chuva deformou a cor das horas. (1.6)
Um besouro se agita no sangue do poente. (2.4)
O acaso me ampliou para formiga. (2.7)
Uma sabiá me aleluia. (3.6)

O efeito de versos como esses é um grande estranhamento, pois eles fazem a língua
delirar em todos os sentidos. A sintaxe delira, os termos mudam de categorias,
substantivos ganham qualidades inusitadas, gerando um sentido completamente
novo, totalmente “desacostumado”.

A questão da origem, de que já se falou anteriormente, surge de maneira marcante.

A enchente que leva o canoeiro a navegar três dias seguinte remete evidentemente
ao dilúvio bíblico, texto que trata das origens, por excelência. As imagens
de origem são semeadas ao longo dessa segunda parte, sendo as principais o ovo,
a água (elemento sempre ligado à origem), o limo (espécie de lama, de lodo,
ambiente úmido que sempre remete a uma origem), assim como bichos que lembram
as coisas do chão, que se ligam diretamente a um universo mais primitivo, mais
telúrico, muitas vezes aquático – lagarto, formiga, coruja, peixe, besouro,
vaga-lume, osga (espécie de réptil), aranha, rã, cágado.

Todos esses bichos são diretamente ligados a um mesmo universo mais remoto,
às vezes “sujo”, viscoso, ou, no mínimo, obscuro, das trevas, silencioso.

Essa idéia do “sujo” também surge mais explicitamente, não só na Segunda como
também na primeira parte do livro, já que os ambientes úmidos, primitivos, pantanosos
têm uma aparência (e só aparência) de imundície, sendo lugares orgânicos por
excelência.

3. “Mundo Pequeno”.

Nesta terceira parte, “Mundo pequeno”, o autor traz as mesmas questões eleitas
por Manoel de Barros, sendo que o primeiro poema já rompe com a gramática da
língua, conforme já vimos em outros poemas. Nos versos seguintes, os substantivos
transformam-se em verbos.

Traz também as mesmas questões eleitas por Manoel de Barros, sendo que
o primeiro poema já rompe com a gramática da língua, conforme já vimos em outros
poemas. Nos versos seguintes, os substantivos transformam-se em verbos:

Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos.

Coisa, rã e árvore, que, gramaticalmente, são substantivos, tornam-se verbos,
mostrando um desrespeito do poeta pelas regras gramaticais. O verso final aponta
para essa inversão de categorias, representada pela figura do velho que, com
sua flauta, inverte os ocasos, assim como o poeta inverte a língua.

A busca pela coisa é, mais uma vez, objeto de poesia, propositalmente no poema
que encerra o livro (XIV), antes do “Auto-retrato falado”: “Todas as minhas
palavras já estavam consagradas de pedras”. Esse verso parece apontar para um
fim de trajeto, em que as palavras foram sendo desvestidas de seus significados
até chegarem ao estado de coisa, de pedra.

Os versos seguintes a esse elucidam ainda mais essa idéia:

Não era mais a denúncia das palavras que me
importava mas a parte selvagem delas, os seus
refolhos, as suas entraduras.
Foi então que comecei a lecionar andorinhas.

A busca do poeta é pela “parte selvagem” das palavras, pelas suas reentrâncias,
o que a aproxima de uma árvore, de uma pedra, de um bicho. No fim, não se lecionam
palavras, mas andorinhas, ou seja, ao invés de o poeta mostrar as coisas através
de palavras, ele as mostra através delas mesmas, alcançando, como já se disse,
a “coisidade” da coisa, a coisa em si mesma.

Essas idéias se repetem, mais uma vez, com a imagem da árvore, tão presente
na poesia de Barros, fazendo com que as pessoas se transfigurem em árvores:
“Bernardo é quase árvore.” (XII), “Estou atravessando um período de árvore.”
(XIII), ou o já citado “Ele me árvore.” (I).

A recusa a definições ressurge, como no poema III, em que se fala de um vaqueiro,
de um “peão de campo:”

Gostava de desnomear:
Para de falar barranco dizia: lugar onde avestruz esbarra.
Rede era vasilha de dormir.
Traços de letras que um dia encontrou nas pedras de
uma gruta, chamou: desenhos de uma voz.
Penso que fosse um escorço de poeta.

O peão do poema faz poesia sem que saiba. A sua recusa em definir, em conceituar,
ou, mais do que recusa, a sua ignorância dos conceitos, faz dele um poeta, no
sentido que Manoel de Barros dá à poesia. Ao contrário do homem que chamou de
“enseada” a imagem do rio que passa por detrás da casa, o peão não conceitua,
ele cria imagens a partir das próprias coisas, não a partir de conceitos, criando,
assim, belas imagens poéticas.

Em O livro das Ignorãças, também há a proposta de, além de tornar-se
coisa, “desacostumar as coisas”, assim como se deve “desacostumar as palavras”.
Do mesmo modo que se deve livrar as palavras de seu estado normal, fazendo-as
delirar, há também a necessidade de livrar as coisas de sua utilidade usual,
tirando-as do uso que elas têm no dia-a-dia. É o que o poeta chama de “desinventar
objetos.

Sob a aparência surrealista, a poesia de Manoel de Barros é de uma enorme racionalidade.
Suas visões, oníricas num primeiro instante, logo se revelam muito reais, sem
fugir a um substrato ético muito profundo.

Assim, esse é o percurso da poesia de Manoel de Barros: da palavra à coisa,
do ser à natureza, do agora ao original, dá página à pedra. O peão do poema
pode ser visto como um duplo do poeta, como uma extensão sua, já que é dessa
maneira que o poeta tenta fazer poesia: partindo das coisas, dos bichos, das
pedras, de um universo primeiro, situado nas origens: Assim é que o poeta pode
“voar fora da casa”, pode alcançar os deslimites da palavra, o além da linguagem,
o cerne das coisas – sua matéria é, enfim, o que escapa à expressão por meio
de palavras.

Poema escolhido

Mundo Pequeno

I

O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.

II

Conheço de palma os dementes de rio.
Fui amigo do Bugre Felisdônio, de Ignácio Rayzama
e de Rogaciano.
Todos catavam pregos na beira do rio para enfiar
no horizonte.
Um dia encontrei Felisdônio comendo papel nas ruas
de Corumbá.
Me disse que as coisas que não existem são mais
bonitas.

IV

Caçador, nos barrancos, de rãs entardecidas,
Sombra-Boa entardece. Caminha sobre estratos
de um mar extinto. Caminha sobre as conchas
dos caracóis da terra. Certa vez encontrou uma
voz sem boca. Era uma voz pequena e azul. Não
tinha boca mesmo. “Sonora voz de uma concha”,
ele disse. Sombra-Boa ainda ouve nestes lugares
conversamentos de gaivotas. E passam navios
caranguejeiros por ele, carregados de lodo.
Sombra-Boa tem hora que entra em pura
decomposição lírica: “Aromas de tomilhos dementam
cigarras.” Conversava em Guató, em Português, e em
Pássaro.
Me disse em Língua-pássaro: “Anhumas premunem
mulheres grávidas, 3 dias antes do inturgescer”.
Sombra-Boa ainda fala de suas descobertas:
“Borboletas de franjas amarelas são fascinadas
por dejectos.” Foi sempre um ente abençoado a
garças. Nascera engrandecido de nadezas.

VI

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença
delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
– Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável,
o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida
um certo gosto por nadas…
E se riu.
Você não é de bugre? – ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em
estradas –
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas
e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
gramática.

VII

Toda vez que encontro uma parede
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das
lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou
de mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesma só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.

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