Chamam-se de POPULISMO uma série de movimentos políticos que propõem-se a colocar, no centro de toda ação política, o povo enquanto massa, em oposição – ou ao lado – dos mecanismos de representação próprios da democracia representativa. |
A sedução do populismo
Às vésperas do ano 2000, |
Chávez faz demagogia e adia medidas concretas
Na recente mania de reeleição que tomou conta da política sul-americana, os
presidentes pelo menos tentaram mostrar serviço antes de fazer planos de espichar
a permanência no poder. Hugo Chávez, da Venezuela, nem sequer isso. Em apenas
seis meses no governo, ele propôs oficialmente que seu mandato passasse de cinco
para s eis anos, com direito a repetir a dose. Foi uma das contribuições do
coronel para a Assembléia Constituinte eleita em 25 de julho de 1999, na qual
a coalizão de partidos que o apóiram obteve uma estonteante maioria de 121 das
131 cadeiras. Outra “sugestão” de Chávez foi ressuscitar um projeto político
de Simon Bolívar, o herói da independência da América espanhola, de quem pretendia
ser seguidor. A proposta era inscrever na nova Constituição a criação de mais
dois poderes, além do Executivo, Legislativo e Judiciário, ambos com o objetivo
de zelar pela ética na política. Um seria o Poder Eleitoral, que emanaria do
povo. Outro seria o Poder Moral, que emanaria de Deus. Como detalhar planos
não era o forte do coronel, supõe-se que ele mesmo se encarregaria de interpretar
os desígnios divinos.
Eleito graças a uma plataforma de protesto por uma população empobrecida e farta
de décadas de corrupção e concentração de renda, Chávez vinha conseguindo manter
o prestígio a golpes de teatro. Ameaçou várias vezes fechar o Congresso, que,
de tão desgastado, concordou em antecipar seu recesso assim que a Assembléia Constituinte
fosse eleita. Em um discurso, na época, o presidente ofereceu sua renúncia e até
o sacrifício da própria vida, se necessário, para garantir a limpeza moral da
política venezuelana. Os partidos tradicionais, na prática, já haviam sido dizimados
nas urnas e o cenário rumava para o mais perigoso personalismo.
A questão era saber até quando Chávez conseguiria manter-se intocável sem
encarar de frente os problemas que realmente afligiam a população. Desde o início
de 1999, 500.000 desempregados engrossaram estatísticas em torno de 20% e os
investidores estrangeiros continuaram passando ao largo da Venezuela, em parte
porque o presidente se inflamava em discursos nacional-populistas e não parecia
tão convicto quando acenava para o mercado global. À frente de uma economia
dependente do petróleo, e de seus preços declinantes, Chávez precisaria de apoio
urgente vindo de fora. Seus eleitores teriam razão se se sentissem enganados.
O Congresso é fechado, a economia vai de mal a pior e Chávez se aproxima
do ponto de ruptura
Hugo Chávez em 1999
A Venezuela já passou do ponto sem retorno, da fronteira que a transformaria
numa “ditadura eleita”? Do ponto de vista formal, pode-se dizer que sim. Ou,
na hipótese mais otimista, está chegando perigosamente perto do limite. Em agosto
de 1999, o presidente Hugo Chávez fechou o Congresso. No tempo das ditaduras
militares na América Latina, era essa a primeira medida depois do golpe de Estado,
e a paulada fatal na democracia. O processo que estava em curso na Venezuela
era de outra família o que não significa que os resultados não acabariam por
se tornar parecidos. Montado nos poderes da “soberaníssima” Assembléia Constituinte,
Chávez encontrou uma fachada de legitimidade para acumular poder e desmontar
o sistema político venezuelano. Oficialmente, o Congresso, no qual a oposição
contava com ligeira maioria, teve suas funções temporariamente suspensas e transferidas
para a Constituinte, em que 93% dos representantes apoiaram o presidente. Na
prática, não havia mais Legislativo, nem Judiciário independente, nem partidos.
Ao esboçar uma reação os oposicionistas do Congresso, já enfraquecidos por um
recesso voluntário, provocaram alguma confusão nas ruas e uma rápida bolha política,
ameaçando rejeitar viagens presidenciais ao exterior e um pacote de suplementos
orçamentários. Irritaram os constituintes e Chávez, de malas prontas para visitar
o Panamá e o Brasil. Numa penada, a Assembléia silenciou de vez o Congresso
e deu o sinal verde para as viagens e a dotação de verbas ao Executivo.
Nos dias seguintes, entre uma palavra de conciliação aqui e esforços de mediação
da Igreja acolá, os congressistas rosnaram melancolicamente, prometendo convocar
reuniões plenárias e votações à revelia. Mas o que se via nas ruas de Caracas
era a exacerbação do assembleísmo, com sucessivas manifestações de apoio a Chávez,
à sua “revolução pacífica” e à cruzada contra os corruptos, bandeiras que lhe
deram a vitória nas urnas e garantiram índices de aprovação em torno de 70%.
“Há poucos meses, a Venezuela era conhecida internacionalmente como um país
petroleiro, onde os presidentes viviam com suas amantes no palácio e a corrupção
dava as cartas”, discursou Chávez antes de partir para o Panamá. “Estamos assistindo
ao renascimento do país.” Com palavras assim, o coronel, preso e reformado depois
de liderar duas cruentas tentativas de golpe de Estado, construiu a imagem de
salvador da pátria. Seus programas semanais de rádio e televisão desencadeiam
frêmitos de entusiasmo. A idéia de fazer uma “limpeza geral” nas instituições
desembocava nas ruas com freqüência. Manifestantes que pediram intervenção nos
sindicatos, dominados pelos partidos tradicionais, alegremente tiraram a roupa
e se exibiram de cuecas e boinas vermelhas, símbolo da aventura golpista de
Chávez.
Héctor Ciavaldini
Amigo na estatal
“A efervescência e os discursos antagônicos
podem dar a impressão de que houve um golpe de Estado e de que já vivemos numa
ditadura”, disse o presidente da maior central patronal do país, Vicente Brito.
“Mas isso tudo está acontecendo num processo no qual as bases da democracia
ainda são respeitadas.” O problema da ponderada avaliação de um empresário que
não pode ser acusado de aliado chavista é a palavra “ainda”. O discurso moralizante
do presidente apoiou-se no truque de atribuir responsabilidade pelas mazelas
conjunturais venezuelanas aos pilares da democracia mais duradoura da América
Latina. Durante a campanha, conseguiu convencer pelo menos parte do eleitorado
de que a Constituição do país, em vigor desde 1961, deveria ser reduzida a letra
morta por ser um instrumento de corrupção. No poder, Chávez avançou contra a
própria existência dos poderes Legislativo e Judiciário, aproveitando-se da
má reputação de seus atuais ocupantes. Interveio no comando das Forças Armadas
e pôde fazer o mesmo na polícia e nas centrais sindicais. Promoveu a presidente
da estatal do petróleo um amigo, Héctor Ciavaldini. Decisões assim, voluntaristas,
afugentaram investidores e aprofundaram a penúria no país. O desemprego estava
em torno de 20%, a economia deveria registrar uma contração de 6% neste ano
e, segundo Vicente Brito, “entre 70% e 80% das empresas estão operando com perdas”.
Até mesmo o preço do barril do petróleo, que havia dobrado, deu sinais de queda
depois da nomeação de Ciavaldini.
Foi neste ponto que a turbulência política venezuelana começou a irradiar preocupações
para valer pelo mundo. Depois de meses de cautela, o governo americano externou
preocupações oficiais com as atitudes autoritárias de Chávez e seus constituintes.
A Venezuela era a maior fornecedora de petróleo aos Estados Unidos, responsáveis
por 17% do total de importações do produto. Chávez não era tolo e sabia que,
se o trator das reformas avançasse pelo caminho da ruptura total, perderia legitimidade
internacional. Para consumo popular, atribuiu tudo, desde as críticas até os
males mais antigos do país, ao “neoliberalismo selvagem”. Curiosamente, de todos
os países da América Latina, a Venezuela e o Equador, os dois grandes produtores
de petróleo na região, foram os únicos que não passaram pelas reformas em curso
no mundo nas últimas três décadas. Confundir estagnação com efeitos nocivos
de uma política não adotada em seu país era mais um dos truques espertos de
Chávez, El Supremo.
Novo projeto de Constituição amplia os poderes e a permanência do presidente
A Assembléia Nacional Constituinte venezuelana entregou a Hugo Chávez em 1999,
uma nova Constituição, que faz da Presidência da Venezuela o cargo dos sonhos
de qualquer caudilho latino-americano. Em seus 350 artigos (100 a mais do que
os contidos no calhamaço brasileiro), regulamentou-se de tudo. Mas o que realmente
interessava eram as amplas prerrogativas dadas à figura do presidente, no caso
Chávez. O mandato do chefe de Estado passou de cinco para seis anos, com direito
a reeleição. Extinto o Senado, o presidente teria de negociar apenas com uma
Casa, a Assembléia Nacional. E ele ainda indicaria um vice-presidente executivo,
que funcionaria como um primeiro-ministro, coordenando o gabinete ministerial
e dialogando com a Assembléia.
O que dizia a nova Carta | Quais eram os riscos? |
O nome do país muda para República Bolivariana da venezuela | Gastos inúteis com a alteração de documentos oficiais e do papel-moeda |
O mandato do presidente passa de cinco para seis anos, com direito à reeleição |
Chávez pode ficar no governo por doze anos seguidos, o que facilitaria o abuso do poder |
Não há mais Senado; o Congresso se resume à Assembléia Nacional |
Aumentariam as possibilidades de votações legislativas na base do “rolo compressor” |
Cria-se a figura do vice-presidente executivo, uma espécie de primeiro-ministro escolhido pelo presidente. Se a Assembléia destituir três vices, o presidente pode dissolvê-la |
O Executivo ganharia prerrogativas excessivas, causando desequilíbrio entre os poderes. |
O Banco Central terá de prestar contas de metas e resultados à Assembléia Nacional. |
Perder-se-iaa autonomia das políticas monetária e cambial. |
A exploração e o refino do petróleo mantém-se sob monopólio estatal. |
Inibição de reformas econômicas e investimentos estrangeiros. |
Para leis novas, novos mandatos. No início de 2000, haveria eleições gerais, inclusive
para presidente, pouco mais de um ano depois do pleito vencido por Chávez. O coronel,
que por meio das armas tentou tomar o poder em 1992 em duas tentativas de golpe
sangrentas, não perdeu tempo e apresentou-se mais uma vez como candidato à Presidência,
cargo que pretendia ocupar pelo menos até 2011. Antes disso, a nova Carta teria
de ser aprovada em plebiscito. Apesar da penúria nacional, o eleitorado deu apoio
maciço ao presidente e não decepcionou-o em momento tão decisivo. Tentando fazer-se
ouvir em meio ao alarido, existiam também os adversários da chamada revolução
pacífica que Chávez iniciou contra o neoliberalismo. Reunidos, os principais empresários
da Venezuela decidiram rejeitar a Constituição, por considerá-la estatizante.
O mesmo rumo tomou a associação que congregava os prefeitos do país. As vozes
descontentes receberam uma pequena ajuda do próprio Chávez, quando ele declarou
em Cuba, que o caminho do povo venezuelano acompanharia as diretrizes vigentes
na ilha de Fidel Castro. O coronel teve depois de negar que pretendia seguir os
passos do ditador cubano e se perpetuar no poder.
Confusão de poderes Caso tudo ocorresse como previu a base
de apoio do governo, que ia de esquerdistas históricos a militares da linha
dura, a Venezuela adotaria uma nova ordem ao fim de 1999. Além de Executivo,
Legislativo e Judiciário, dois outros poderes seriam criados:
1. O Poder Cidadão que seria um canal aberto à população e teria de fiscalizar
o governo e o respeito aos direitos humanos.
2. O Poder Eleitoral que seria o senhor das regras de toda e qualquer eleição.
Trocando em miúdos, todo mundo poderia meter o bedelho na seara alheia, numa
concepção oposta à do filósofo francês Montesquieu, o criador do princípio de
independência e equilíbrio entre os poderes. Um exemplo da confusão na nova
Carta venezuelana: os magistrados do Supremo Tribunal de Justiça poderiam ser
removidos por decisão dos deputados, e assim a Corte deixava de ser suprema.
Além disso, os membros da Assembléia poderiam afastar do cargo o vice-presidente,
mas trabalhariam sob constante ameaça. O presidente da República teria a prerrogativa
de fechar a Assembléia Nacional e convocar eleições se os deputados destituíssem
o vice por três vezes. “Num regime presidencialista, isso é extremamente grave”,
protestou o cientista político Angel Alvarez.
Logo depois de sua eleição, que arrancou do poder uma elite responsável por
décadas de corrupção e desastres econômicos, Chávez deixou claro que seu objetivo
ia muito além de um simples mandato presidencial. Aproveitando a enorme popularidade,
ele conseguiu, com um plebiscito, convocar eleições para a formação da Constituinte.
A população lhe deu 90% das cadeiras, e o novo órgão rapidamente calou o Congresso
e o Judiciário. Os protestos de juízes e parlamentares foram em vão, e o apoio
popular falou mais alto. A nova Carta, concluída em apenas três meses, metade
do tempo previsto, foi o resultado dessa trajetória e expunha o projeto político
pessoal do neocaudilho. “A Constituição está ligada ao governo de Chávez”, disse
à revista VEJA o cientista político Luís Gomez, do Centro de Estudos
de Desenvolvimento da Universidade Central da Venezuela. “Os constituintes não
pensaram em um projeto de país de longo prazo.” Para os membros da Assembléia,
o que importava era que o presidente havia gostado. Para a Venezuela, a nova
Constituição poderia ser um símbolo de orgulho nacional, incorporando ao nome
oficial do país o de Simon Bolívar, o herói da independência. Mas tudo, como
antes, dependia apenas de Chávez.
A Constituição foi aprovada por mais de 70% dos votos.