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São Bernardo, de Graciliano Ramos

by Lucas Gomes

Análise da obra

Publicado em 1934, São Bernardo está entre o que de melhor o romance brasileiro
produziu. Num primeiro instante pode até parecer uma história de vitória de seu
narrador-protagonista, Paulo Honório, que foi de guia de cego na infância até
se tornar latifundiário do interior de Alagoas. No entanto, a questão principal
é muito mais aguda e amarga.

Para alcançar sua ascensão social, o narrador paga um preço altíssimo, que é a destruição do seu caráter afetivo. Na verdade, a perda de sua humanidade pode ser entendida como fruto do meio em que vivia. Massacrado por seu mundo, acaba tornando-se um herói problemático, defeituoso (parece haver aqui um certo determinismo, na medida em que o homem seria apresentado como fruto e prisioneiro das condições mesológicas).

Há um aspecto que atenta contra a sua verossimilhança, que é um célebre problema
de incoerência: como um romance tão bem escrito como pôde ter sido produzido por
um semi-analfabeto como Paulo Honório. É uma narrativa muito sofisticada para
um narrador de caráter tão tosco.

Quando se menciona que a narrativa é sofisticada, não se quer dizer que haja rebuscamento.
A linguagem do romance, seguindo o estilo de Graciliano Ramos, é extremamente
econômica, enxuta, mas densa de beleza.

Outra beleza pode ser percebida pela maneira como o tempo é trabalhado. Há o tempo do enunciado (a história em si, os fatos narrados) e o tempo da enunciação (o ato de narrar, de contar a história). O primeiro é pretérito. O segundo é presente. Mas há momentos magistrais, como os capítulos 19 e 36, em que, em meio à perturbação psicológica em que se encontra o narrador, os dois acabam-se misturando.

Todos esses elementos, portanto, fazem de São Bernardo uma obra do mais alto quilate, facilmente colocada entre os cinco melhores romances de nossa literatura.

Enredo

Paulo Honório, homem dotado de vontade férrea c da ambição de se
tornar fazendeiro, depois de atingir seu objetivo, propõe-se a escrever um
livro, contando a se vida, de guia de cego a senhor da
Fazenda São Bernardo,

Movido mais por uma imposição psicológica, Paulo Honório
procura uma justificativa para o desmoronamento da sua vida e do seu fracassado
casamento com Madalena, que se suicida.

No livro, ao mesmo tempo em que faz o levantarnento existencial
de uma vida dedicada à construção da Fazenda São Bernardo, Graciliano
Ramos desnuda o complexo destrutivo que Paulo Honório representa:

Cinqüenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa
a vida inteira sem saber por quê! Comer e dormir como um porco! Como um pomo!
Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois
guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que
estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo?

Comentários

São
Bernardo
é um romance de confissão, aparentado com Dom Casmurro.
Narrado em primeira pessoa, é curto, direto e bruto. Poucos,
como ele, serão tão honestos nos meios empregados e tão despidos de recursos;
e esta força parece provir da sólida unidade que o autor lhe imprimiu. As personagens
e as coisas surgem como meras modalidades do narrador, Paulo Honório. ante cuja
personalidade dominadora se amesquinham, frágeis e distantes. Mas Paulo Honório,
por sua vez, é modalidade duma força que o transcende e em função da qual vive:
o sentimento de propriedade. E o romance é, mais que um estudo analítico, verdadeira
patogênese desse sentimento.

De guia de
cego, filho de pais incógnitos, criado pela preta Margarida, Paulo Honório se
elevou a grande fazendeiro, respeitado e temido, graças à tenacidade infatigável
com que manobrou a vida, ignorando escrúpulos e visando
atingir o seu alvo por todos os meios.


O  “teu fito na vida foi apossar-me das terras de São Bernardo,
construir esta casa, plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e o
descaroçador introduzir nestas brenhas a pomicultura e a
avicultura, adquirir um rebanho bovino regular

É um homem
que supervaloriza a propriedade, tipo de gente para quem o mundo se divide em
dois grupos: os eleitos, que têm e respeitam os bens
materiais, e os réprobos, que não os têm ou não os respeitam.

Daí
resultam uma ética, uma estética e até uma metafísica, De fato, não é à toa que
um homem transforma o ganho em verdadeira ascese, em questão definitiva de vida
ou morte.

A
princípio o capital se desviava de mim, e persegui-lo sem
descanso, viajando pelo sertão, negociando com redes, gado, imagens, rosários,
miudezas, ganhando aqui, perdendo ali, marchando no fiado, assinando letras,
realizando operaçôes embrulhadíssimas.
Sofri sede e fome, dormi na areia dos rios secos, briguei com gente que fala aos
berros e efetuei transações de armas engatilhadas.

O próximo
lhe interessa na medida em que está ligado aos seus negócios, e na ética dos
números não há lugar para o luxo do desinteresse.

(…) esperneei
nas unhas do Pereira, que me levou músculo e nervo, aquele malvado. Depois,
vinguei-me: hipotecou-me a propriedade e tomei-lhe tudo,
deixei-o de tanga.

(…) levei
Padilha para a cidade, vigiei-o durante a noite. No outro dia cedo, ele meteu
o rabo na ratoeira e assinou a escritura. Deduzi a
dívida, os juros, o preço da casa, e entreguei-lhe sete contos quinhentos e
cinqüenta mil-réis. Não tive remorsos.

Uma só vez age em obediência ao sentimento de gratidão,
recolhendo a negra que o alimentou na infância e que ama com uma espécie de
ternura de que é capaz. Ainda assim, porém, as relações afetivas só se
concretizam numericamente:


A velha Margarida mora aqui em São Bernardo, numa casinha limpa,
e ninguém a incomoda. Custa-me dez mil-réis por semana, quantia suficiente para
compensar o bocado que me deu.

Com o
mesmo utilitarismo estreito analisa a sua conduta: A
verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons e
quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins
que me deram lucro.

Até quando
escreve, a sua estética é a da poupança:

É o
processo que adoto: extraio dos acontecimentos algumas
parcelas; o resto é bagaço.

A aquisição e a transformação da Fazenda São Bernardo levam,
todavia, o instinto de posse de Paulo Honório a arraigar-se num sentimento
patriarcal, naturalmente desenvolvido –
tanto é verdade que o seu modo de agir depende em boa parte das relações com as
coisas.


Amanheci um dia pensando em casar Não me ocupo com amores, devem ter notado, e
sempre me pareceu que mulher é um bicho esquisito,
difícil de governar
(…) O
que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de São Bernardo.

A partir desse momento, instalam-se na
sua vida os fermentos de negação do instinto de propriedade, cujo
desenvolvimento constitui o drama do livro.

Com efeito, o patriarca à busca de herdeiro termina apaixonado,
casando-se por amor; e o
amor em vez de dar a demão final na luta pelos bens,
revela-se, de início, incompatível com eles. Para adaptar-se, teria sido
necessária a Paulo Honório uma reeducação afetiva impossível à sua mentalidade,
formada e deformada. O sentimento de propriedade,
acarretando o de segregação dos homens, o distancia das pessoas, porque origina
o medo de perder o que já conquistou, e o seu convívio
com outros resume-se em relações de mera concorrência. O
amor, pelo contrário, unifica e totaliza. Madalena, a mulher –
humanitária, mão-aberta -, não concebe a vida como uma
relação de possuidor e coisa possuída. Daí o horror com que Paulo Honório vai
percebendo a sua fraternidade, o sentimento, para ele incompreensível, de
participar na vida dos desvalidos.

Nessa luta, porém, não há vencedores.
Acuada, vencida, Madalena suicida-se. Paulo Honório,
vitorioso, de uma maneira que não esperava e não queria, sente, no admirável
capítulo XXXVI, a inutilidade do violento esforço da sua vida:


Sou um homem arrasado
(…)
Nada disso me traria satisfação
(…) Quanto às vantagens restantes
— casas, terras, móveis, semoventes,
consideração de políticos, etc.
é preciso convir
em que tudo está fora de mim. Julgo que me desnorteei numa errada

(…) Estraguei minha vida
estupidamente
(…)
Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos
e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.

Vencendo a vida, porém, foi de certo modo vencido por ela;
imprimindo-lhe a sua marca, ela o inabilitou para as aventuras da afetividade e
do lazer. Nesse estudo patológico de um sentimento, Graciliano
Ramos – juntando mais um dado à psicologia materialista
esposada em Caetés – parte
do pressuposto de que a maneira de viver condiciona o modo de ter e de pensar:


Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é
que me deu qualidades tão ruins. E a desconfiança terrível que
me aponta inimigos em toda a parte! A desconfiança é também uma conseqüência da
profissão.


Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo
ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes
dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.

O seu caso é dramático, porque há fissuras de sensibilidade que
a vida não conseguiu tapar, e por elas penetra uma ternura engasgada e
insuficiente, incompatível com a dureza em que se encouraçou. Daí a angústia
desse homem, cujos sentimentos eram relativamente bons, quando escapavam à sua
tirania, ao descobrir em si mesmo estranhas sementes de moleza e lirismo, que é
preciso abafar a todo custo.


Emoções indefiníveis me agitam
—
inquietação terrível, desejo do/do de ‘oltar de
tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os
dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é antes desespero, raiva, um peso
enorme no coração.

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