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D. Pedro II: o rei e a república

by Lucas Gomes


O IMPÉRIO DA SELVA
Dom Pedro II (em foto de 1883, com detalhe do cetro de
dragão alado): estadista tão singular quanto a experiência
monárquica no Brasil, tinha simpatias republicanas. “A
ocupar posição, preferiria a de presidente da República ou
ministro à de imperador”, escreveu em seu diário

Dois trajetos de carruagem no meio da noite, rumo a um destino desconhecido, marcaram as dramáticas guinadas da vida de Pedro,
o segundo e último imperador do Brasil. Aos 5 anos, foi tirado do único lar que conhecia e levado para um desfile festivo pelas
ruas do Rio de Janeiro. Seu pai, Pedro I, ia-se embora do Brasil e deixava para trás o menino que, em prantos, sem noção do que
acontecia, era aclamado como o pequeno imperador. Na madrugada de 17 de novembro de 1889, aos 63 anos, mas aparentando mais,
perfeitamente consciente do que se passava, ele se apertou com a família no coche que o levou para o cais de onde rumaria ao
exílio. O embarque noturno era uma exigência dos representantes da República recém-proclamada – não queriam manifestações de
apoio que pudessem redundar em repressão e derramamento de sangue. Provocou uma das poucas reclamações do imperador deposto.
“Não sou nenhum fugido”, repetiu duas vezes. No mais, “nobre dignidade e perfeita segurança de si mesmo caracterizaram a
compostura de Sua Majestade; nem ao menos uma palavra de queixa ou reprovação saiu de sua boca”, segundo descrição do embaixador
da Áustria, conde Weisersheimb, que no dia seguinte acompanhou os netos do imperador até o navio que os levaria para a Europa.
Manteve a mesma atitude até a morte, dois anos depois, num hotel simples de Paris.

Os fatos assim resumidos fazem parte da história que para a maioria de nós está num escaninho da memória rotulado de “escola”
e invariavelmente associado ao adjetivo “chato”. Na fração de segundo que decorre entre uma palavra e outra, vêm-nos à mente
as imagens de um velho barbudo que deu uma festa daquelas, o baile da Ilha Fiscal, seis dias antes de aparecerem uns caras
com nomes de rua gritando “perdeu”. Daí, ele dançou e todo 15 de novembro – uma licença histórica, pois a República só foi
proclamada oficialmente no dia seguinte – temos um feriado, de preferência feriadão. Isso para nós, leigos indiferentes.
Para historiadores, Dom Pedro II continua mais vivo do que nunca: em qualquer lista que se faça sobre as personalidades mais
influentes dos 500 anos de história do Brasil, e quer o opinador se alinhe na corrente crítica ao último imperador ou na dos
admiradores de seu reinado, ele costuma disputar o primeiro lugar com Getúlio Vargas. A segunda corrente ganhou recentemente
um reforço extraordinário por meio da biografia escrita por José Murilo de Carvalho para a série Perfis Brasileiros, da editora
Companhia das Letras. No retrato apaixonado traçado pelo historiador, o homem que governou o Brasil por meio século com “os
valores de um republicano, com a minúcia de um burocrata e com a paixão de um patriota” deixou um exemplo de senso de dever,
tolerância, liberalidade e quase inacreditável respeito pela liberdade de imprensa.


INFÂNCIA INFELIZ
Com 1 ano, o pequeno príncipe ficou órfão de mãe; aos 5 (como
aparece no retrato menor, do francês Arnaud Julien Pallière), o
pai voltou para Portugal, deixando-lhe o império do Brasil.
Casou-se aos 17, por procuração, com Teresa Cristina, uma
princesa vinda de Nápoles. Os dois filhos homens morreram; ficaram
as meninas: Isabel, a herdeira, e Leopoldina (o retrato da família
é de outro francês radicado no Rio, François-René Moreaux)

De todas essas características, a mais surpreendente é a fé republicana. Como um monarca, de coroa, cetro e manto,
além de mais poderes constitucionais do que sua prima e contemporânea, a rainha Vitória (o Poder Moderador, mas não
vamos nem falar nisso para não lembrar dos tempos de escola), poderia defender um sistema de governo que implicava
sua própria extinção? Em defesa da tese republicana, pesam escritos do próprio Pedro II. “Nasci para consagrar-me às
letras e às ciências, e, a ocupar posição política, preferiria a de presidente da República ou ministro à de
imperador”, escreveu ele numa espécie de auto-retrato feito em 1861 no diário habitualmente dedicado a registrar
fatos mais rotineiros. Outros trechos reveladores:

• “Jurei a Constituição; mas ainda que não a jurasse seria ela para mim uma segunda religião”.

• “A nossa principal necessidade política é a liberdade de eleição; sem esta e a de imprensa não há sistema
constitucional na realidade, e o ministério que transgride ou consente na transgressão desse princípio é o maior
inimigo do estado e da monarquia”.

• “Leio constantemente todos os periódicos da corte e das províncias. (…) A tribuna e a imprensa são os melhores
informantes do monarca”.

Também se atribui a Pedro ter dito: “Eu sou republicano. Todos o sabem. Se fosse egoísta, proclamava a República para
ter as glórias de Washington”. Está aí uma das explicações para a sua “estranha simpatia” republicana, segundo José
Murilo de Carvalho: na visão dele, a monarquia era necessária como uma “fase de preparação” do país para um futuro mais
evoluído. Ou seja, apesar da índole tolerante e da inclinação republicana, o imperador, pelo menos em seu apogeu, exercia
suas funções com plena segurança de que fazia o melhor para o país – segurança até excessiva, na opinião de críticos
contemporâneos como Rui Barbosa. “Mercê do seu espírito contemporizador e da sua prodigiosa dissimulação, conservou, na
mão de ferro enluvada em veludo, um poder sem contrapeso nem limite”, escreveu Rui, que virou republicano e ministro –
ruinoso – da Fazenda em questão de dias, uma vez proclamado o novo regime.

O imperador tinha opiniões honrosas sobre praticamente todos os assuntos importantes. Era a favor de eleições livres e
ardoroso defensor da educação como instrumento democrático. “Sem bastante educação popular não haverá eleições como todos,
e sobretudo o imperador, primeiro representante da nação, e, por isso, primeiro interessado em que ela seja legitimamente
representada, devemos querer”, escreveu ele à filha e herdeira, Isabel, ao partir para a primeira de suas viagens ao
exterior – a paixão por conhecer o mundo era tanta que se transformou num de seus pontos fracos, politicamente. No mesmo
documento ele prega a nomeação de funcionários “honestos e aptos para os empregos” públicos, embora reconhecendo que
“os interesses eleitorais contrariam, no estado atual, direta ou indiretamente, o acerto dessa nomeação”. Apesar do
processo terrivelmente lento para acabar com a nódoa mais abominável de seu reinado, a escravidão, chegou a ser criticado
por se “precipitar” em defender a abolição em plena Guerra do Paraguai. “A escravidão é uma terrível maldição sobre qualquer
nação, mas ela deve, e irá, desaparecer entre nós”, escreveu para a mulher com quem manteve a mais permanente relação
amorosa de sua vida, Luísa Margarida Portugal de Barros, a condessa de Barral. (Houve outras, pois Pedro “era cauto, não
casto”, segundo um crítico de então. Por Luísa, além de amor tinha admiração intelectual, elemento ausente na aventura
com Ana de Villeneuve, a quem escreveu, mais ousadamente: “Que loucuras cometemos na cama de dois travesseiros!”.)


O IMPERADOR-CIDADÃO
Pioneiro do daguerreótipo, o processo precursor
da fotografia, Pedro II fotografava e se
deixava fotografar. Usava sempre casaca;
coroa ou a farda imperial (como na tampa da
tabaqueira com alegoria indígena) só nas
grandes cerimônias de estado. Era um monarca
constitucional, por obrigação e convicção: “Jurei
a Constituição; mas ainda que não a jurasse
seria ela para mim uma segunda religião”

Repetindo a reclamação imemorial de personalidades famosas envolvidas em escândalos, Luísa certa vez queixou-se a
Pedro: “A liberdade da imprensa de nossa terra não respeita ninguém!”. Estava certa, embora no caso dela a mídia
golpista até pegasse leve. Os pasquins estavam então repletos de republicanos, muitos deles partidários da derrubada
imediata do regime. “Não é por certo / Boa moral / Trair a esposa / Com a Barral”, dizia uma conhecida quadrinha.
Outro jornal militante, O Facho da Civilização, de nome tão pomposo quanto errática era a circulação, aproveitou o
Carnaval para fazer chacota com o imperador: “Eis o sota escravocrata / Do reinado da patota / Deste reino patarata /
Eis o sota escravocrata! / Na sua nádega chata / Fotografou-se o idiota”
– segundo reproduzido no livro As Barbas
do Imperador
, de Lilia Moritz Schwarcz. Pedro mantinha sempre a regra estabelecida no mencionado Conselhos à Regente:
“Os ataques ao imperador não devem ser considerados pessoais, mas apenas manejo ou desabafo partidário”. Não
mudava de opinião nem com o fogo pesado dirigido a seu genro, o príncipe francês Gastão de Orleans. O jornalista e
militante republicano Antônio da Silva Jardim chegou a pedir o fuzilamento do marido de Isabel, o impopular conde d’Eu.
(Silva Jardim também não fez nada para concretizar a retórica e teve uma morte bizarra: caiu na cratera do Vesúvio,
durante visita ao vulcão napolitano.)

Não é preciso ser admirador de Pedro II nem ignorar os pontos negativos de seu reinado para reconhecer que ele foi um
estadista de valores elevados e idéias do lado nobre do espectro político. Como conciliar esse homem com o Rei Caju
(por causa do queixo proeminente) ou o Pedro Banana (diabético, no fim do reinado dormitava em público) das caricaturas
que se perpetuaram? Dom Pedro II e a monarquia em geral são ridicularizados há quase dois séculos como anacrônicos,
absurdos e pretensiosos, além, é claro, de perversos exploradores do povo. Há nisso muito das distorções históricas
responsáveis pela síndrome de rejeição que impede, se não apreciar, pelo menos tentar compreender melhor a singularidade
da história brasileira, que começou com a inédita transferência de um governo inteiro, o de Portugal, da Europa para o
Novo Mundo. Por causa da vinda do príncipe que depois virou o rei João VI, seu filho, o primeiro Pedro, fez uma ruptura
sem violência com a potência colonial, exceção no continente americano. E o filho dele, o segundo Pedro, legou, no mínimo,
a continuidade territorial de um país-continente e a unidade nacional que hoje parecem atributos naturais do Brasil, mas
que então foram quase miraculosos.


A MÍDIA GOLPISTA
Chamado de Rei Caju, por causa do queixo saliente, ou de Pedro Banana, em razão da sonolência provocada pelo
diabetes, o imperador era criticado tanto por jornais monarquistas quanto republicanos, em que grassava a
militância pela mudança de regime. Não se deixava abalar: “Os ataques ao imperador não devem ser considerados
pessoais”

O destino de Pedro II foi selado com aquela primeira viagem noturna mencionada no começo desta reportagem. Mesmo para os
padrões da realeza, que produzia filhos para o estado, ele era um menino excepcionalmente infeliz. Órfão de mãe desde que
tinha apenas 1 ano, naquela noite já estava abandonado pelo pai, que deixava o trono e a coroa e voltava para Portugal,
premido por um clima de insatisfação geral (se pudessem, escreveu, os brasileiros “fariam os portugueses em postas”). A
experiência monárquica no Brasil poderia ter acabado ali. No ambiente de alta instabilidade, porém, as simpatias se voltaram
para o menino de 5 anos que Pedro I deixava para trás. Políticos e populares foram até o palácio residencial da família
real, onde embarcaram o pequeno herdeiro numa carruagem, acompanhado apenas por sua babá, a portuguesa Mariana de Verna.
Seguiram pelas ruas do Rio, primeiro para uma missão de ação de graças, depois para o palácio de, digamos, trabalho, o
Paço da Cidade. “Ondas de povo se haviam reunido para o verem passar. Apenas despontou em um coche, puxado por inúmeros
braços, rebentou uma imensidade de vivas”, escreveu o padre Joaquim Pinto de Campos. Uma criança de 5 anos não poderia
compreender o que se passava e tudo aquilo parecia aterrorizante. O país onde viria a reinar também estava na infância.
Fora o fato de contar com uma Constituição (a de 1824), “o Brasil não tinha nenhum outro atributo de um estado-nação”,
escreveu Roderick J. Barman, historiador britânico hoje baseado no Canadá, em seu livro sobre dom Pedro, Citizen Emperor –
o Imperador-Cidadão.

Quando foi coroado imperador, também em clima de aclamação popular, o “pupilo da nação” ainda era um garoto de 15 anos,
obviamente sem a barba patriarcal e a altura imponente – 1,90 metro – da imagem que ficaria mais conhecida. Tinha paixão
pelos estudos, provável refúgio para a desolação emocional. Quando começou a viajar ao exterior, já tarde na vida, procurou
conhecer seus ídolos, vultos intelectuais como Victor Hugo, Wagner, Alessandro Manzoni, Ernest Renan. Interessava-se por
tudo, do Egito antigo aos Estados Unidos modernos, a pátria-mãe do republicanismo, onde seu horror a pompas, e a gentileza
que sempre adoça os humores dos jornalistas, deixou boa impressão. “Conheci muitos figurões, mas nunca vi um cujo tratamento
igualasse o de dom Pedro em cortesia”, escreveu o autor de seu obituário no The New York Times.


A ÚLTIMA VIAGEM
Quando descobriu o mundo, Pedro II não quis mais parar
(na foto de 1887, sentado entre a mulher e o neto Pedro
Augusto, que depois foi internado com esquizofrenia, ele
segue para a viagem derradeira como imperador). Em lugar
de chefes de estado, procurava seus ídolos: Wagner,
Victor Hugo, Manzoni

Historiadores de diferentes correntes concordam, excepcionalmente, em atribuir à simplicidade espartana de Pedro II um
dos fatores de dissolução do prestígio da monarquia – até os “reis de bicicleta” das monarquias escandinavas contemporâneas
mantêm os palácios, as guardas de honra, os uniformes de gala dos reis, as roupas e os chapéus que nenhuma outra mulher
usaria se não fosse rainha. O país “o queria mais ver de cetro, reinando a cavalo, como um São Jorge de verdade, do que
lhe ouvir os discursos e as frases de censor moral, de Marco Aurélio medíocre, de literato de terceira ordem”, ironizou
Gilberto Freyre. Ao contrário da imagem de luxo desmedido deixada pelo baile da Ilha Fiscal – uma exceção no descarnado
mundo social da corte –, o imperador vivia mal. Cortava gastos, fazia empréstimos para as viagens ao exterior e usava a
verba oficial que recebia do estado em obras benemerentes. No fim do reinado, não queria saber de festas e achava os
bailes “uma maçada”. A decoração e a comida no palácio residencial eram igualmente desanimadoras. A situação piorava
no Paço da Cidade. “Seu velho palácio na cidade é uma barraca. Velho, podre, arruinado, maltratado, nunca pintado de
novo”, relatou o jornalista alemão naturalizado brasileiro Karl von Koseritz.

A obsessão pela simplicidade de Pedro beirava o esnobismo invertido. Era como se fosse tão importante que precisasse o
tempo todo se esforçar para agir como um sujeito comum, qualidade impossível para um homem cujos avós haviam sido o rei
de Portugal e o imperador da Áustria; os bisavós, reis da Espanha e de Nápoles; que era primo em algum grau das cabeças
reinantes de Reino Unido, França, Baviera e Sardenha, com ascendência remontando a Luís XIV, o Rei Sol, entre outros. A
aversão ao fausto significou, claro, uma gota no mar de mudanças que levaram ao fim dos 49 anos de seu reinado e da
monarquia, impulsionado pelas elites republicanas – uma minoria – e pelos militares em ascensão, prestes a assumir o
papel de instituição preponderante que teriam no país pelos 100 anos seguintes. Ainda assim, a proclamação da República
foi um golpe de estado relutante: uma das idéias persistentes entre os republicanos era esperar Pedro morrer para instaurar
um novo regime no país.

Da mesma forma que o imperador tinha simpatias republicanas, o marechal Manuel Deodoro da Fonseca simpatizava com a
monarquia. “Eu queria acompanhar o caixão do imperador, que está velho e a quem eu respeito muito”, dizia. “Manuel Deodoro
é meu amigo, tenho-o protegido e a toda a família”, respondia Pedro, teimoso, quando avisado da agitação que tomava os
quartéis – o marechal provinha de uma importante família de militares. No 15 de novembro de 118 anos atrás, Deodoro
acedeu ao apelo dos oficiais republicanos, dissolveu o governo e foi para casa dormir, com dispnéia, um tipo de falta de
ar associado a doenças pulmonares ou cardíacas. Só no dia seguinte o aviso oficial chegou ao imperador, que havia descido
com a família de Petrópolis para o Paço da Cidade. Isabel chorou e Teresa Cristina, a imperatriz, afligiu-se quando Pedro
comunicou o teor da mensagem que havia recebido: ele estava destituído, a República, proclamada, e a família real tinha 24
horas para deixar o país. “Pois, se tudo está perdido, haja calma. Eu não tenho medo do infortúnio”, disse, recuperando o
controle depois de receber, na madrugada, o aviso de que teriam de sair de imediato, sob o manto da escuridão. Um mês e
meio depois do golpe, Deodoro implantou a censura à imprensa, que havia sido tão importante para o movimento republicano.
Foi eleito presidente pelo Congresso Constituinte em fevereiro de 1891 e forçado a renunciar no fim do mesmo ano. Afligido
pela dispnéia, morreu em agosto de 1892, oito meses depois de Pedro, o último imperador. Neste feriadão, se por acaso
alguém pensar nos personagens históricos que lhe deram origem, a imagem evocada provavelmente será a de Pedro II, e não a
do protegido que o derrubou. Se essa imagem não fosse apenas a do velho barbudo.

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