Home EstudosLivros Netto perde sua alma, de Tabajara Ruas

Netto perde sua alma, de Tabajara Ruas

by Lucas Gomes

O livro Netto perde sua alma, de Tabajara Ruas, vem desvendar um personagem
misterioso, o General Netto, responsável pela Proclamação
da República Rio-Grandense.

Neste livro, Tabajara Ruas recuperou uma época ao imaginar a vida do
herói farroupilha que participou de todas as guerras de fronteira e das
revoluções que tumultuaram a região sul do Brasil no século
XIX. Contudo, segundo o autor, as notas biográficas a seu respeito não
são exatas. É antes de tudo, uma ficção histórica
sobre um tempo histórico.

O livro foi escrito em 1995 e mistura personagens reais e dados ficcionais,
contando a história de Antônio de Sousa Netto (1803 – 1866),
general que lutou na Revolução Farroupilha e, mais tarde, na Guerra
do Paraguai.

Assim como outros livros gaúchos que tratam da Revolução
Farroupilha, este também mitifica a Guerra e seus personagens –
quase sempre transformados em heróis. Em um trecho de uma carta mandada
por Garibaldi anos após a Revolução para o General Netto,
pode-se ver claramente a mitificação dos guerreiros da revolução:

“Eu vi batalhas mais disputadas, mas nunca vi em nenhuma parte
homens mais valentes nem cavaleiros mais brilhantes que os da cavalaria
rio-grandense, em cujas fileiras comecei a desprezar o perigo e combater
dignamente pela causa sagrada das gentes”.

Na maioria dos livros sobre a Revolução Farroupilha, os aspectos
econômicos e interesses dos estancieiros que moveram a Guerra são
ignorados e a situação pós-revolução ganha
pouco espaço. Em Netto Perde Sua Alma, o autor procura retratar
um pouco as injustiças feitas com os negros após a guerra, pois
a maioria não foi libertada, como os generais prometiam.

No livro pode-se identificar seqüências metafóricas belíssimas:

“(Como eram formosos os cavalos à luz da lua, e como eram
formosos à luz da madrugada, como eram formosos quando a cerração
do inverno cobriu os campos e expeliam pelas narinas fumaradas de vapor
esbranquiçado, e como eram formosos ao crepúsculo do verão,
vistos através da poeira avermelhada, e como eram formosos dando
corridas e pulos e relinchos alegres num meio-dia de primavera.)”

Tabajara Ruas mostra seu diferencial no livro, montando a sua obra com recursos
cinematográficos, como a narrativa em flashes e a descrição
detalhada das paisagens. Em alguns trechos, parece que o leitor está
“assistindo” às cenas, em vez de lê-las somente.

A idéia-mestra do autor é sua firme oposição à
violência, não apenas a violência explicitada, traduzida
na guerra, quanto a violência institucionalizada, presente no sistema
social então vigente, o império e, especialmente, a escravatura.
É por isso que ele escolhe dois personagens negros – dois escravos –
para constituírem o contraponto à figura de Netto. Porque Netto
luta por idéias e princípios, Caldeira e Milonga lutam por suas
próprias vidas. Tabajara Ruas, contudo, é mais sutil, e faz uma
diferenciação entre Caldeira e Milonga: este possui uma consciência
ingênua, enquanto que o outro entende melhor os meandros da política.
Eis que, então, se cria uma gradação objetiva: Milonga,
na base; Netto, no cume, e, entre ambos, Caldeira. É este triângulo
que sustenta a narrativa.

Estrutura

O romance organiza-se em seis diferentes blocos narrativos, antecipado por
uma espécie de pré-texto. Este pré-texto apresenta a morte
do General Netto. Cada bloco está situado e datado:

– Corrientes, 1º de julho de 1866: reúne cenas
que se passam pouquíssimos instantes antes da cena anterior e apanha
Netto ao longo de sua permanência no hospital, criando o clima de desagregação
e decadência que o rodeia.

– Reunião no morro da Fortaleza, 8/4/1840: focaliza
os longos anos da guerra. Neste caso, se está justamente em meio à
revolução. São decorridos cinco anos; sabemos que mais
cinco irão se passar. É o momento em que dois personagens-chave
serão introduzidos: o sargento Caldeira, um negro que acompanhará
Netto até o final, e para quem o general transmite sua crença
sobre os fatos políticos (p.75), em especial, o fato político
que é a declaração da república; e o menino Milonga,
negrinho escravo que foge da fazenda para juntar-se às tropas e que,
frustrado, ao final da revolução, tendo ficado aleijado, sente-se
traído por Netto e tenta matá-lo, depois de desertar com alguns
companheiros, sendo morto por Caldeira (p.87, p.122, p.132).

– Dorsal das Encantadas, 11/9/1836: fixa o momento central
dos episódios históricos, pois se passa a apenas nove dias antes
da declaração de independência (20 de setembro), por iniciativa
de Netto, seguindo sugestão de alguns de seus comandantes. É significativo
que estes dois capítulos estejam organizados em sucessão, porque
eles evidenciam uma estrutura muito claramente pensada para o romance; eles
se complementam e se articulam, em oposição com os dois seguintes
que, por seu lado, igualmente se articulam e opõem a estes dois primeiros.
Assim, os quatro capítulos formam o miolo do romance, enquanto o primeiro
e o sexto – que aliás têm o mesmo título – enfocam ações
que se passam num mesmo momento e, na verdade, formam uma só unidade,
quebrada apenas por força da economia da narrativa romanceada. Funcionam
como uma espécie de passe-partout da cena principal, que é a narrativa
propriamente dita da vida e das lutas de Netto. Mas é este capítulo
que na verdade dá ao texto sua característica verdadeiramente
literária. É aqui também que a revolução
será declarada, mas a ação é apenas sugerida.

– Último verão no Continente, 2/3/1845: se
desenrola já terminada a revolução e derrotados os revoltosos.
Netto prepara-se para dirigir-se às suas terras. Caldeira ainda o acompanha.
Milonga e seus companheiros desertam, o menino – agora homem, guerreiro frustrado
e aleijado – tenta assassinar Netto e acaba morto por Caldeira. O capítulo
se encerra com uma simples frase do sargento: “– Milonga, negrinho
burro, matar um general não é mais um fato político

(p.139). A frase, irônica, resume toda a idéia central do romance.

– Piedra Sola, 25/6/1861: reúne dois movimentos contrários
e complementares. De um lado, o diálogo de Netto com o embaixador inglês;
de outro, o diálogo de Netto com Maria Escayola, sua futura mulher. Do
ponto de vista estrutural, os dois diálogos se opõem e ao mesmo
tempo se complementam: trata-se da vida pública – aquela que anima as
idéias e as ações de Netto no espaço público
e o levam à guerra; de outro, o espaço privado, em que o general
trata de constituir família. O capítulo se encerra, contudo, evidenciando
que ambas não se encontram assim tão distantes. A mulher, que
já perdera o primeiro marido na guerra, e que agüentara ainda o
penar do homem sobre uma cama, até a morte, indaga do futuro companheiro:
– Vem aí outra guerra. Não vem aí outra guerra?
(p.176). A resposta a esta indagação o leitor já a tem
através da História. Já se sabe que, de fato, Netto alistar-se-ia
ainda muitas outras vezes e que, numa dessas, na Guerra do Paraguai, viria a
morrer, quer por força de uma febre maligna, quer por força de
um ferimento infeccionado. Este capítulo de Piedra Sola, assim, é
uma explicação teórica para eventos como o da Guerra do
Paraguai e o que eles significam – o imperialismo britânico na América
do Sul – e um intermédio lírico entre as cenas de batalha e de
luta, ou seja, de violência, que constituem o grosso da narrativa. Serve,
igualmente, para evidenciar um outro lado do personagem, humanizando-o, pois
admite que um general também é capaz de amar. Serve, enfim, para
mostrar estes lados invisíveis da guerra: seus motivos políticos
e financeiros, como os da Inglaterra, mas também os danos que causa à
vida dos indivíduos, a destruição de lares e a infelicidade
familiar.

– Corrientes, 1º/7/1866: retoma a mesma cena inicial
e a continua. Netto, em delírio, imagina a chegada do sargento Caldeira.
Com sua ajuda, mata o capitão Ramirez, chefe argentino vingativo e violento,
e o tenente-coronel Philippe Fontaineblaux, a quem atribui a desnecessária
amputação das duas pernas do Capitão de los Santos. Depois,
exausto, sucumbe à doença e aceita o convite de Caronte, entrando
em sua barca, com o que se encerra o volume:

“Olhou para o céu escuro. Lembrou-se da lua no dorso dos
cavalos. Procurou a lua, mas só encontrou o reflexo prateado do seu
resplandor. Aproximou-se da canoa pisando vagaroso a areia macia, já
sem pressentimentos, sem cautela, sem olhar para o Vulto, sentindo a mordida
fria do ar, dominando o narcisismo desatento, recuperando com satisfação
a tolerância, a paternalidade, sentindo-se sagaz e dissimuladamente
majestoso. Olhou a praia deserta. (Agora, o vento estava a favor). Netto
empurrou a canoa e saltou para dentro dela.”

Fonte parcial: Antonio Hohlfeldt, Revista Eletrônica PUC-RS

Posts Relacionados